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A noiva de Odessa
Não tem filhos, não conhece os filhos distantes dos muitos primos dispersos por distintos países, levados por novos ventos de rigor e de medo
Edgardo Cozarinsky | Edição 19, Abril 2008
Numa tarde de primavera de 1890, um jovem observava dos altos do bulevar Primorsky o movimento dos barcos no porto de Odessa.
Em seus trajes domingueiros, contrastava tanto com a desenvoltura cotidiana da maioria dos transeuntes como com o exotismo de outros. É que o jovem estava vestido para empreender uma grande aventura: os sapatos de couro envernizado eram presente da mãe; o tio, alfaiate de ofício, só terminara o terno sob medida um dia antes da partida; por fim, o chapéu era o mesmo que o pai estreara 22 anos antes, no dia de suas bodas, e não tivera mais que cinco ou seis ocasiões de usar.
Nesse momento, faltavam-lhe três dias para começar de verdade a grande aventura, mas para ele as 400 verstas que separavam Kiev de Odessa e essa primeira visão de um porto e do mar Negro (que desembocaria no Mediterrâneo, que desembocaria no oceano Atlântico) eram já parte da travessia que faria dele um homem novo.
Mesmo assim, um véu de tristeza turvava o entusiasmo com que devorava todos os aspectos da cidade grande e do porto. Carecia de toda educação sentimental, e sua primeira tribulação amorosa lhe fatigava o pensamento a ponto de impedir que desfrutasse da realização iminente de seu projeto mais audacioso. Para afastar esse sofrimento que não sabia como apagar, ele seguia com o olhar cada pessoa que passava; todas estampavam algum traço capaz de lhe despertar o interesse: uma babá graciosamente uniformizada empurrava sem muita gana o carrinho do qual assomava, entre profusas rendas, um bebê enfezado; dois homens de opulento ventre evidenciado por correntes de ouro de invisíveis relógios caminhavam sem pressa, discutindo os preços do trigo e do girassol nos mercados europeus; um marinheiro negro, a primeira pessoa dessa cor que ele via, observava, tão curioso quanto ele, tudo que o rodeava; outro marinheiro, que mais parecia um ator vestido de marinheiro, exibia uma argola dourada na orelha e, em cima do ombro, um papagaio que tentava sem êxito vender.
Sobre o granito cor-de-rosa da Escadaria Potemkin, poucos metros mais abaixo, reparou numa moça absorta na paisagem, com um olhar não menos triste que o seu. Sentara-se num degrau e depositara ao lado duas grandes caixas redondas, uma em cima da outra; ambas levavam uma fita de seda azul, e um simples barbante as unia; no cartão, podia-se ler, impresso em caracteres latinos: Madame Yvonne. Paris-Viena-Odessa.
Uma brisa refrescava o ar e, ao longe, sobre o mar, deslocava de leste a oeste nuvens de formas caprichosas, dragões e arcanjos que pareciam propiciar um encontro feliz. O jovem, que chamaremos de Daniel Aisenson, não conhecia palavras nem expressões próprias para abordar uma desconhecida. Aproximou-se da moça e ficou a seu lado, sorrindo em silêncio. Quando começou a se cansar de fingir que ignorava sua presença, ela lhe dirigiu um olhar severo, que logo suavizou: havia algo nele que declarava sua inocência, algo que faltava aos muitos sedutores, grosseiros ou refinados, que ela aprendera a reconhecer na cidade grande.
Nunca saberemos quais foram as primeiras palavras que trocaram nem quem as pronunciou, mas não é incongruente que tenha sido ela a vencer a timidez do jovem. Daniel nascera num shtetl; com 5 anos, os pais instalaram-se num subúrbio da cidade de Kiev, a “santa entre as santas”, da qual conhecia pouco mais que o mercado chamado Bessarábia e, nele, o comércio de passamanaria da família. Mais de uma vez, adolescente, parara para admirar os ouros e volutas da Catedral de Santa Sofia, as cinco cúpulas resplandecentes da Igreja de Santo André e, ainda mais alto, o campanário do monastério Lavra de Petchersk.
Não podia se impedir de comparar esse esplendor com a modesta sinagoga que, sem grande devoção, freqüentavam os pais e à qual era obrigado a acompanhá-los. Sentia-se culpado por essa comparação. Uma injustiça divina – assim sentia ele – privara-o de uma religião opulenta e protetora, condenara-o a outra, austera, cruel, cujo corolário natural parecia ser o perigo sempre latente de um pogrom: os cossacos haviam cortado as pernas do avô com um golpe de sabre quando ele rogava piedade ao hetmane; quase todos os tios tinham visto arder as casas assinaladas com a estrela de seis pontas, o símbolo sagrado que, em vez de protegê-las, marcara-as para o massacre.
Ela, cujo nome jamais saberemos, era por sua vez uma filha de Odessa, onde os gregos, armênios, turcos e judeus eram tão comuns quanto os russos. Não falava ucraniano, mas um russo elementar, a que haviam aderido algumas palavras de iídiche: não era judia, mas vivia e trabalhava entre judeus. Entre judias, melhor dizendo: a temível madame Yvonne, cujo verdadeiro nome era Rubi Ginzburg, e as três assistentes que, sob suas ordens, confeccionavam chapéus num ateliê da rua Deribassovska. Todas elas vinham da Moldavanka, mas fazia anos que, com esforços denodados, tinham conseguido simular alguma distância em relação ao bairro que apenas dez ruas separavam do ateliê. Na ausência de clientes ou fornecedores, rebentava o iídiche, veículo de repreensões e insultos de madame Yvonne às empregadas, bem como de críticas destas às senhoras que provavam uma dúzia de chapéus e partiam sem ter comprado nenhum.
No ateliê, a moça era a shikse, palavra atroz que designava ao mesmo tempo a criada e a não judia, a gói. Era tarefa da shikse cuidar da limpeza, preparar o chá, entregar em domicílio os chapéus comprados e executar diversas tarefas e serviços miúdos. A paga era um leito na cozinha, uma comida frugal e a ocasional gorjeta na porta dos fundos de alguma cliente.
O entardecer do dia seguinte deu com os dois sentados num banco, sob as acácias do parque Tchevchenko. O rumor da cidade chegava amortecido até eles, e ao longe podiam entrever o mar e os barcos, promessa indefinida que cada um entendia a seu modo.
Ela confessou que era órfã, que, estudando as revistas francesas das quais madame Yvonne copiava seus modelos, aprendera que a vida é a mesma em Paris, Viena ou Odessa, que sem dinheiro só se pode ser criada e que o mundo se divide entre os que têm e os que não têm. Ele explicou que isso é verdade na Europa, mas que do outro lado do oceano há uma terra de pura possibilidade, um país jovem, onde um judeu como ele pode chegar a possuir um pedaço de terra. Atropeladamente, falou do barão Hirsch, da colonização, de Santa Fe, de Entre Ríos. Ela ouviu, pela primeira vez, coisas cuja existência ignorava: que um judeu podia querer cultivar a terra, que podia temer os cristãos como ela temia as judias do ateliê, que ele podia lhe falar de outra coisa além do presente que lhe daria caso consentisse em acompanhá-lo uma noite a certo hotelzinho da praça Privakzalnaia.
Terá sido durante esse segundo encontro que ele lhe revelou o motivo da tristeza, aparentemente inexplicável, que o dominava às vésperas de cruzar o Atlântico rumo a uma vida nova? Esse motivo tinha nome: Rifka Bronfman.
Conheceram-se por intermédio das famílias quando completaram 14 anos, mas já estavam prometidos antes que se conhecessem, e se casaram cinco dias antes que ele deixasse Kiev. Tinham-se visto a sós não mais que dez vezes antes das bodas, e sempre com pais ou irmãos no cômodo ao lado ou à janela que dava para o magro jardim entre a casa e a rua.
Fazia um ano que Daniel começara a cogitar a idéia de emigrar. A delegação organizadora da Colonização Judaica da Argentina, de passagem por Kiev, promovera reuniões vespertinas na Associação Mutual Israelita, nas quais um conferencista eloqüente, com a ajuda de uma lanterna mágica e uma dúzia de placas de vidro, mostrara os campos férteis, intermináveis, que os esperavam na Argentina. Num mapa, assinalara a localização dessas terras e a distância até as metrópoles, Buenos Aires e Rosario, que outras placas tinham exibido para eles. Também agitara numa das mãos um fino volume encadernado em azul-celeste e branco, em cuja capa – explicara ele – estava impresso (em espanhol e, portanto, em caracteres latinos) Constitución de la República Argentina; desse volume ele lera em voz alta, traduzindo imediatamente para o iídiche, os artigos que prometiam igualdade diante da lei e liberdade de culto para todos que quisessem trabalhar aquela “terra de paz”.
Daniel repetira essas palavras, descrevera detalhadamente essas imagens para Rifka. A prometida não compartilhava o mesmo entusiasmo. Aceitou segui-lo, acatando o preceito segundo o qual o lugar da mulher é ao lado do marido, mas aquele mundo novo não a fazia sonhar. Quando ele preencheu os papéis necessários, ela não fez nenhum reparo. Mas quando voltaram aprovados e timbrados pelo consulado argentino e leu neles seu nome, data de nascimento, cor dos cabelos e dos olhos, ela irrompeu em soluços veementes, renovados cada vez que o cansaço prometia extingui-los. As famílias julgaram que se tratava de um estado de excitação provocado pela véspera do casamento; um primo, que fizera vagos estudos de medicina, declarou que se tratava de uma moléstia da moda, chamada neurastenia. Vagamente aliviada com o diagnóstico, Rifka enfrentou dignamente a cerimônia na sinagoga, sob a peruca ritual que cobria seu crânio recém-raspado.
Naquela noite, Daniel teve de vencer a inexperiência e ela, o medo. Em meio ao sangue, descobriram, ele, o prazer; ela, a dor. Na manhã seguinte, ele despertou sozinho em meio aos lençóis manchados; de longe, chegavam-lhe gritos, choro, censuras, queixumes. Encontrou Rifka nos braços de sua sogra, cujo consolo ela recusava. Enquanto a senhora repetia incessantemente “vai passar, vai passar”, tentando encobrir a voz da jovem esposa, esta se fazia ouvir não menos incessantemente e cada vez com mais força: “Não vou, não vou, não vou.” Quando Rifka recobrou certa serenidade, conseguiu unir algumas palavras, formar frases:
– Estou com medo, estou com muito medo. Aqui eu conheço todo mundo, minha família, sua família, minhas amigas, a sinagoga, o mercado, tudo que eu conheço. E o que vamos encontrar por lá? Cobras? Índios? Plantas carnívoras?
Daniel tentava explicar que agora tinha um marido para protegê-la, mas Rifka parecia impermeável a todo argumento. Quando conseguiu enxugar as lágrimas, aceitou, junto com a taça de chá com mais açúcar que limão, a sugestão nada otimista, quase desesperada, da mãe: viajar dali a um ano, talvez seis meses, quando ele tivesse escrito, confirmando que estaria a salvo dos muitos perigos com que os romances de Emilio Salgari a ameaçavam.
Daniel não a tocou nas noites seguintes, que precederam a viagem. Rifka, talvez aliviada, não reclamou.
A moça escutou em silêncio. Do parque, caminharam lentamente em direção ao cenário de seu primeiro encontro. O céu cor-de-rosa do crepúsculo cedeu gradualmente a um azul cada vez mais profundo. Já é noite quando ele termina o relato, abrupto, desordenado, que os parágrafos anteriores tentam resumir.
Passam diante de cafés e confeitarias com nomes franceses e italianos, nos quais não podem se permitir entrar, e atrás de uma cortina de renda ela reconhece as flores de trapo, o pássaro embalsamado e remendado, as fitas de seda de um chapéu que ela viu ser armado peça a peça e que agora coroa uma cabeça invisível. Chegam à estátua do duque francês cujo nome não lhes diz nada e que é iluminada palidamente, intermitentemente, pelo esplendor das janelas do Hotel de Londres. Ao longe, os barcos ancorados no porto também concedem algum reflexo à água negra, sussurrante.
Quando ela fala, não é para comentar o relato que escutou com atenção.
– Quando você embarca?
– Amanhã. O barco parte às seis da tarde, mas os passageiros de terceira classe devem estar a bordo antes do meio-dia.
Ela olha para ele, esperando palavras que não chegam.
– E está pensando em viajar sozinho?
Ele olha para ela, entendendo, mas sem se atrever a acreditar no que está vislumbrando.
– Sozinho… que remédio…
Ela o segura com força pelos braços, plantada diante dele. Daniel sente que essas mãos pequenas podem apertar e quem sabe até bater, que não foram feitas apenas para segurar uma agulha.
– Leve-me com você! Sou quase loira, tenho olhos claros, quase azul-celeste, meço um pouco menos de um e sessenta e cinco e tenho 18 anos! O salvo-conduto vem com fotografia?
– Mas… – ele consegue balbuciar – não somos casados…
A gargalhada da moça ressoa na praça deserta, parece rolar escadaria abaixo e despertar um eco no porto.
– E como poderíamos ser casados se eu sou ortodoxa e você é judeu? Precisaríamos de meses até que um rabino aceitasse a conversão… Além do mais, você não disse que nesse país novo não importa nada do que nos escraviza aqui? Vamos!
Diante do olhar estupefato de Daniel, ela começa a rodopiar sobre si mesma, os braços estendidos, como um dervixe da Anatólia. Sem parar de rir, repete como uma invocação os nomes que há um momento ouviu mencionar pela primeira vez.
– Buenos Aires! Rosario! Entre Ríos! Santa Fe! Argentina!
Ri cada vez mais forte e não pára de rodopiar.
– Eu sou Rifka Bronfman!
Cento e dez anos depois, o bisneto desse casal, convalescente num hospital de Paris, recebe uma carta de sua tia Draifa, de Buenos Aires. “Sentindo todo dia mais próxima a hora de partir”, a anciã lhe conta esta história, segredo de família que as mulheres foram transmitindo entre si, a mais velha de uma geração à mais velha da geração seguinte. Se a tia o escolheu, é porque a distância geográfica lhe parece favorável para que ele preserve o segredo sem que ela deixe de cumprir a promessa da transmissão.
Enquanto espera os resultados de uma segunda biópsia de suas vértebras, deixa a memória vagar entre as poucas coisas que ouviu, quando criança, sobre aquele bisavô que jamais conheceu, cujos dez filhos nascidos na Argentina tiveram por mãe essa moça que, numa tarde de primavera de 1890, observava com tristeza os barcos que partiam do porto de Odessa.
Do bisavô, herdara uma imagem pitoresca de mulherengo ou, melhor, de inconstante, derivada – agora compreende – do episódio que a tia Draifa lhe revelou com sua carta. Mas não era um simples reflexo de sensatez esquecer uma mulher que não se atrevia a cruzar o Atlântico e substituí-la por outra com a coragem e a audácia de que ele precisava?
Dessa bisavó Rifka, cujo verdadeiro nome ninguém tem idéia, sabe que não lhe faltavam nem coragem nem audácia. Em 1902, com dois tiros certeiros, derrubara um casal de ciganos que rondavam a chácara, conhecidos como ladrões de crianças na região de Gualeguay. Em 1904, depois de ter parido um filho por ano, aceitara a décima gravidez contra os conselhos do doutor Averbuch, que a atendera em todos os partos. Deu à luz uma menina loira como ela, de olhos azul-celeste como os seus, e morreu horas mais tarde, de febre puerperal.
De um só golpe, seu bisneto entende por que as mulheres da família, ao menos as depositárias do segredo, em vez de sentir orgulho pela antepassada, haviam transmitido a história como um saber perigoso, talvez proibido. Não se inquietavam com noções ridículas de ilegitimidade ou superstição, mas, segundo a lei talmúdica, sabiam que a condição de judeu se herda pela mãe, e portanto os dez filhos daquela união…
O paciente do hospital, que 48 horas mais tarde saberá qual pode ser sua expectativa de vida, pensa no pai, na mãe. Quando se extinguira e quando se recuperara a pertinência à raça “eleita”? (O termo lhe soa mais do que nunca rodeado de um halo sombrio, sinistro.) Para ele, criado fora de toda religião, essa continuidade não se expressara em nenhum laço místico, em nenhuma tradição consoladora, tão-somente em ocasionais excursões gastronômicas. E, é claro, no “russinho de merda” escutado na escola primária e na freqüência das rondas e faxinas durante o serviço militar.
Está cansado demais para ter pena de si mesmo. Seus sentimentos se dirigem a uma pessoa sem rosto, àquela Rifka Bronfman, a verdadeira, a que preferiu a segurança ilusória da família e dos amigos. Se tinha uns 20 anos em 1890, estaria por volta dos 70 em 1941… Teria morrido em Babi Yar? Se ainda estava viva no momento da invasão alemã, saudada como libertação do jugo soviético pela maioria dos ucranianos, teria sido liquidada por um Einsatzgruppe da Wehrmacht, pela SS ou por algum grupo nacionalista, quem sabe até pelos vizinhos, tão sorridentes, tão amáveis, subitamente inimigos, justiceiros zelosos de erradicar a erva daninha semita do jardim da pátria?
Pensa também que não tem filhos, que não conhece os filhos distantes dos muitos primos dispersos por distintos países, levados por novos ventos de rigor e de medo. Pensa que ninguém lhe pedirá que preste contas por não ter transmitido a história. Mesmo assim, dois dias depois obedece a um impulso que não saberia explicar e começa a escrevê-la em forma de conto.
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