ILUSTRAÇÃO: CÁSSIO LOREDANO_2012
A reciclagem do Lulismo
O mensalão não influenciou o resultado da eleição, mas orientou a escolha do candidato do PT
Fernando de Barros e Silva | Edição 74, Novembro 2012
Com Serra, as coisas se passaram por assim dizer ao contrário: primeiro como farsa, depois como tragédia.
O político que a vida toda fez questão de associar sua imagem a posições de esquerda, muitas vezes em dissonância com seu próprio partido, chega ao fim da linha carimbado como um conservadorzão sem muitos escrúpulos, alguém capaz de fazer qualquer coisa para alcançar seus objetivos.
O candidato que insuflou a família católica contra o aborto em 2010 foi o mesmo que arrastou o sentimento homofóbico para o centro da campanha em 2012. O tucano que na antevéspera da derrota para Dilma prometeu elevar o salário mínimo para 600 reais e pagar o décimo terceiro salário aos beneficiários do Bolsa Família foi o mesmo a anunciar agora, quase na boca da urna, que iria dobrar as horas de validade do Bilhete Único.
Oscilando entre as figuras do prócer da reação e do populista de ocasião, Serra se transformou numa espécie de Zelig involuntário da direitona que sempre abominou, e à qual, a rigor, nunca pertenceu.
Registre-se tudo isso porque o personagem em questão não é um qualquer. Poucos políticos foram tão reconhecidos ao longo da vida por sua capacidade e visão abrangente dos problemas. A verdade, porém, é que daqui em diante interessa pouco saber se José Serra se descaracterizou a ponto de ficar irreconhecível ou, pelo contrário, apenas revelou ser quem sempre foi. Haveria, de qualquer forma, outras maneiras de perder. E Serra escolheu duas vezes a pior – farsa e tragédia.
Seu ocaso pessoal, no entanto, também é sintoma de coisas maiores. A oposição ao governo federal encolheu e foi ainda mais para a defensiva. O PSDB se fragilizou como líder do contraponto ao lulo-petismo. Hoje a grande voz dos tucanos contra Dilma talvez seja o senador… Alvaro Dias. (Há pouco Arthur Virgílio disse que sua vitória em Manaus representou o maior feito eleitoral do partido. E o pior é que estava certo.)
Além disso, a derrota de Serra exemplifica, como nenhuma outra, a renovação geracional em curso nos postos de comando da política. Isso vale para Fernando Haddad, mas também, no extremo oposto,para a vitória de ACM Neto na Bahia, por exemplo. Vale ainda para entender o apelo quase fatal do telepopulismo de Celso Russomanno, o Menino Malufinho.
É curioso, no caso do PT, que essa renovação tenha sido precipitada em grande medida pelo escândalo do mensalão – como Dilma, Haddad não existiria se não houvesse Roberto Jefferson no meio do caminho. É evidente que o petismo estava em pânico com os possíveis efeitos do julgamento sobre o processo eleitoral. O resultado proclamado pelo STF foi devastador para os réus, mas a condenação espetacular de figuras manjadas da antiga cúpula partidária e do governo Lula não impediu a vitória decisiva em São Paulo. A população separou as coisas.
Isso não quer dizer que a questão moral não tem nenhum peso na política. Nem – com o perdão da obviedade – que a maioria dos paulistanos que elegeu Haddad seja menos ética que seus concidadãos derrotados.
Desde que o PT se misturou com gosto ao padrão corrompido da política nacional, a ideia de um partido que, embora participando do processo eleitoral para valer, fosse diferente dos demais se perdeu. Depois disso, nenhuma outra legenda conseguiu convencer o eleitor ao empunhar e reivindicar para si a bandeira da ética.
Muito mais do que interferir na hora do voto, o processo do mensalão orientou lá atrás a escolha do candidato. E o placar paulistano tornou ainda mais incontrastável a tutela do ex-presidente sobre seu partido.
A política está sempre sujeita a contingências e acasos, mas, hoje, Fernando Haddad é o nome de Lula para suceder Dilma daqui a seis anos. Na hipótese, claro, de Lula não ser ele próprio o seu preferido. Antes, porém, resta saber quem irá confrontar o projeto de Lula – quem será, afinal, o adversário da presidente petista em 2014? Aécio Neves ou Eduardo Campos?
O senador mineiro parece prezar demais seu estilo de vida desfrutável. Gente próxima não acredita que Aécio vá trocar certas delícias da existência pela via-crúcis de uma campanha presidencial. Mas suas dificuldades não são apenas de ordem pessoal.
Ele se vê livre da sombra pesada de Serra no momento em que o PSDB tem seus horizontes rebaixados. Antes de pensar na candidatura presidencial, os tucanos terão de se esforçar para preservar o poder nos estados que ainda lhes garantem projeção nacional.
Em Minas, Antonio Anastasia não poderá disputar a reeleição em 2014 e não tem, até o momento, sucessor à vista. Em São Paulo, Geraldo Alckmin se prepara para enfrentar um ataque especulativo inédito na campanha pela reeleição. Além da capital, que desequilibra o jogo, o PT conquistou cidades estratégicas da Grande São Paulo e do interior do estado. No Paraná, Gustavo Fruet acaba de ser eleito prefeito de Curitiba com o apoio da ministra Gleisi Hoffmann, candidata certa à vaga do tucano Beto Richa.
Tudo somado, deixou de ser óbvio, e talvez até mesmo provável, que o PSDB vá se constituir em polo da disputa contra Dilma. Entre tantas especulações a respeito de 2014, já há a seguinte conversa circulando na cozinha tucana: Aécio Neves seria candidato ao governo de Minas, numa boa, e o PSDB apoiaria a candidatura presidencial de Eduardo Campos, tendo Anastasia como vice. É só uma especulação. Ainda há muitos russos a serem consultados e convencidos.
Seja como for, o governador de Pernambuco é a bola da vez. A revista The Economist acaba de dedicar a Eduardo Campos uma reportagem em que ele aparece como uma mistura de administrador moderno e político à moda antiga, como aliado formal do governo Dilma e potencial ameaça à sua reeleição.
Campos é exatamente isso. Um anfíbio de muitas habilidades. Seu PSB pode se aliar com o PT ou o PSDB país afora, a critério das conveniências, mas vai se projetando como opção de poder. Proporcionalmente, foi a legenda que mais cresceu. Ganhou em cinco capitais, mas pode contar com nove (um terço do país) se a elas forem somadas as três do PDT e mais uma do PSD de Gilberto Kassab. Os três partidos, com mais de 100 deputados, formam o chamado “bloquinho” na Câmara.
Eduardo Campos pode, é claro, sentir para onde sopra o vento da economia e avaliar que em 2014 ainda não terá chegado a sua vez. Mas sabe também que nunca será candidato à Presidência apoiado pelo partido de Lula. Até onde a vista alcança, o PT sempre terá seu próprio nome. A hipótese de que pudesse ser vice de Dilma, substituindo Michel Temer e o PMDB como aliado preferencial do lulismo, também caiu por terra. A eleição municipal cristalizou a chapa PT-PMDB e selou o casamento da dupla mais eletrizante da República.
Ninguém também deve imaginar que Aécio e Campos, a essa altura, possam compor uma chapa juntos, um como vice do outro. Sobrariam brejeirice e malemolência, não há dúvida, mas falta lógica a esse arranjo.
O lulismo acaba de cortar um pouco mais o oxigênio dos tucanos. A tendência – mas apenas isso – é a de que a força capaz de confrontá-lo surja dentro do próprio bloco do poder, onde há gente de mais e ar de menos, quando e se alguém acreditar que pode respirar melhor com o próprio nariz.
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