Em 1824, num livro do alemão Johann von Spix, publicou-se pela primeira vez a imagem da ave FOTO_REPRODUÇÃO DO LIVRO AVIUM SPECIES NOVAE_ARCHIVE.ORG
A revoada
Maior lote mundial de ararinhas-azuis deixa o Catar
Roberto Kaz | Edição 142, Julho 2018
As vinte ararinhas-azuis chegaram em caixas de madeira ao aeroporto de Doha, no Catar. Passaram parte da madrugada no terminal de cargas até serem alojadas no porão de um avião de passageiros. O voo de seis horas, para Berlim, decolaria no amanhecer daquela quinta-feira, 22 de março. “Fiquei bastante tenso”, relembrou o veterinário sul-africano Cromwell Purchase, responsável pelas aves. “Tínhamos planejado a viagem durante três meses.” Nas semanas seguintes, outros cinco aviões partiriam com mais cem ararinhas rumo à Europa.
A ararinha-azul não existe na natureza desde o início deste século. As 159 que sobraram se encontram quase todas em três criadouros – um no Catar, outro na Alemanha e o terceiro no Brasil, de onde a espécie é nativa. O criadouro Al Wabra, no país árabe, sempre foi o mais importante. Isso até o seu mantenedor, o xeque Saud bin Mohammed al-Than, morrer em 2014, deixando uma coleção gigante de fósseis de dinossauros, quadros, esculturas, livros raros, joias, carros antigos e animais exóticos. Entre os bichos, havia um tesouro genético: o maior grupo vivo de ararinhas-azuis.
A ararinha já era rara em 1819, quando o naturalista alemão Johann Baptist von Spix coletou um exemplar, para catalogação, no interior da Bahia. Ele rodava o Brasil recolhendo animais para enviar à coroa austríaca. A oferta escassa – associada à elegância da penugem, em tons de azul-claro – logo transformou a ave num símbolo de status. O marechal Tito, que unificou a Iugoslávia no século xx, possuía uma. Assis Chateaubriand, o Chatô, fundador dos Diários Associados, também. Caçada à exaustão, a espécie acabou definhando. Em 2002, o governo brasileiro a declarou extinta na natureza.
Por coincidência, 2002 foi também o ano em que o xeque Al-Than – então ministro da Cultura – ganhou seu primeiro casal de ararinhas. As aves pertenciam a Antonio de Dios, empresário filipino que criava 6 mil papagaios, de 160 espécies, com intuito comercial. Nos três anos seguintes, o xeque ainda receberia outras 25 ararinhas do mesmo criador e mais onze do suíço Roland Messer. A linha entre colecionador e traficante revela-se sempre tênue quando se trata de aves cuja venda é proibida. Não à toa, pelo menos no passado, o comércio de ararinhas se travestiu muitas vezes de “doação”.
Em Doha, as ararinhas passaram a viver em grupos, dentro de aviários climatizados, que as protegiam do verão de 50 graus. Sob cuidados veterinários, começaram a procriar em ritmo lento, já que enfrentam dificuldade semelhante à dos pandas para se reproduzir em cativeiro. A partir de 2016, o plantel do Al Wabra ultrapassou as cem aves.
O adeus das ararinhas-azuis ao Oriente Médio se deveu não apenas à morte do xeque, mas também a um imbróglio diplomático. No ano passado, Egito, Barém, Arábia Saudita e Emirados Árabes impuseram um embargo econômico ao Catar, sob a estranha alegação de que o país – aliado dos Estados Unidos – apoiava grupos terroristas como o Hezbollah. Para dar fim ao bloqueio, exigiram que as autoridades cataris fechassem a rede de tevê Al Jazira, espécie de cnn do mundo árabe, com uma cobertura nem sempre simpática às nações vizinhas. Não houve acordo entre as partes.
“O embargo acabou contribuindo para que a família do xeque abrisse mão das aves”, contou Cromwell Purchase, que cuidou das ararinhas em Doha, nos últimos oito anos. “O manejo delas custava 180 mil dólares por mês, e o dinheiro do xeque ainda está preso em inventário.” Além disso, havia a preocupação com a crise diplomática. “A tensão tem crescido. Se ocorresse uma guerra, seria impossível tirar os bichos do Catar.”
Em janeiro, o veterinário procurou o criador alemão Martin Guth, dono da ACTP – sigla em inglês para Associação de Conservação dos Papagaios Ameaçados. Apesar da fama ruim, que já o ligou ao tráfico de animais, Guth era proprietário do único local capaz de receber as 120 ararinhas em tempo hábil. Ele também exibia uma trajetória de sucesso no manejo da espécie: conseguira fazer três casais procriarem na Europa.
O alemão construiu quatro aviários para acolher as ararinhas, cada um numa sala diferente. “Assim, diminuímos o risco de uma epidemia”, explicou Purchase, que, a exemplo das aves, trocou o criadouro Al Wabra pelo de Berlim, onde passou a trabalhar. A precaução é necessária porque, agora, 90% das ararinhas do planeta se encontram na Alemanha. Seis filhotes ficarão no Catar até que atinjam uma idade segura para viajar.
“A mudança não impõe risco maior que o de antes, quando praticamente todas as aves do mundo estavam em Doha”, avaliou o biólogo brasileiro Ugo Vercillo, diretor de Conservação e Manejo de Espécies no Ministério do Meio Ambiente. “Mesmo assim, deixamos claro que só apoiaríamos a transferência se parte das ararinhas viesse para o Brasil em 2019.” Guth concordou de pronto. “Ele sabe que manter os bichos por muito tempo sairá bem caro.”
No governo, Vercillo é o responsável pela interlocução com os criadores internacionais. “Não temos o poder de intervir nas escolhas deles. Mas participamos das decisões, pois existe um plano de reintrodução da ararinha nas matas brasileiras, do qual o Al Wabra e a ACTP fazem parte.” Segundo o biólogo, o Brasil abdicou de receber as aves do xeque neste momento por não haver ainda um tratado que permita o trânsito de animais entre o país e o Catar.
O plano, agora, é que cerca de cinquenta ararinhas cruzem o Atlântico no ano que vem. “Ainda não definimos quais serão. Sei que não podemos pôr em risco os casais férteis e os machos, que estão em número menor”, afirmou Vercillo. Quando chegarem, as aves irão para uma unidade de conservação em Curaçá, município baiano onde a espécie vivia antes de ser dizimada. Passarão alguns meses em aviários, adaptando-se à alimentação selvagem, e depois serão soltas em pequenos grupos. “Acompanho o processo de reintrodução há dez anos. Estou muito ansioso”, admitiu o biólogo. “A comunidade de Curaçá também está. Temos que devolver para a natureza o que a gente tirou.”
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