A travessia de Suez
Reinaldo Moraes | Edição 46, Julho 2010
“A Travessia de Suez” é uma novela, ou seja, um conto longo ou um romance curto, da qual damos aqui, em primeira mão, o primeiro capítulo. Resumo: um sujeito morre e, ao chegar nas altas instâncias celestiais, descobre que foi uma encarnação de Deus na Terra, sem jamais se dar conta disso. O texto completo aparecerá em breve, em livro, provavelmente, ou no próprio site da piauí, se for o caso.
“A cada segundo a Terra anda 30 quilômetros.”
Fato astronômico
Não se assuste, você não me conhece. Quer dizer, conhecer, conhece. Como todo mundo. Pode até não acreditar em mim, o que não é tão incomum nos dias de hoje, mas me conhece. Daí, por me conhecer, acreditando ou não em mim, você resolveu deixar as portas da percepção abertas e invocar meu nome. Não foi mais ou menos isso que aconteceu? Até sem acreditar em mim, todo mundo vive me invocando, a torto e a direito. Sinto – porque ainda consigo sentir algumas coisas – sinto em você uma dúvida: serei eu um deus ou um demônio oportunista que captou seu chamado no éter dos espíritos evoluídos e se infiltrou no seu canal – no bom sentido, claro?
Não, nada disso, sem essa de demônio, diabo, capeta, coisa-ruim, tinhoso, ou que outro nome se queira dar a essa entidade sulfurosa que nem sequer existe, senão nas fábulas de velhos e desacreditados pergaminhos. Só eu existo, que isto fique bem claro, ou pelo menos existia até um tempinho indefinido atrás. Como o demo, também atendi por nomes e pseudônimos muito diferentes em cada tempo e lugar da crosta da Terra e da História. Mas sou o mesmo de sempre, em cada crença, em cada mente, em cada coração.
A essa altura, meu nome mais genérico já veio à sua cabeça: Deus. Ou apenas deus, se preferir. (Nenhum deus que se preze dá muita bola pro fato de seu nome ser grafado com caixa alta ou baixa. Se fizer questão fechada de um D maiúsculo, é sinal de que não passa de um impostor presunçoso.) A dúvida em você persiste: posso não ser o demônio, mas quem lhe garante que eu não passe de um espírito biruta fisgado ao léu das pias invocações por suas antenas mediúnicas? Um espírito de porco, por exemplo, tentando se fazer passar por ninguém menos que Deus, algum simples mortal dotado de potência telepática que resolveu hackear as ondas mentais alheias. Bom, pense o que quiser, mas posso te garantir que não sou esse impostor. Quando vivi aí nesse mundo terreal, banal, real em que você labuta por se manter vivo a cada dia, nunca me passou semelhante ideia pela cabeça, muito embora muitas outras ideias de um estrambótico cabotinismo tenham de fato transitado pela minha cachola alucinada. Mas essa, especificamente, não. E, no entanto, acabo de saber que eu sou quem fui, ou melhor, fui quem sou, ou melhor…
Ou melhor: se eu não sou um impostor megalomitômano, então, quem sou, afinal? Deus em pessoa?! Sim ou não? (Não há, não pode haver meio termo nessa matéria.)
Veja, não estamos aqui diante de um problema teológico, embora, de longe, se pareça muito com um. A questão aqui, pelo menos pra mim, é que não sei mais quem sou, ou em que estou rapidamente me tornando, ou deixando de me tornar, embora tenha acabado de descobrir quem fui de fato, como acabo de dizer. Vai vendo só o imbróglio ontológico em que me meteram.
Quanto ao passado não tenho mais dúvidas. O passado é um livro aberto cujas páginas vão amarelecendo com rapidez espantosa diante das minhas vistas cansadíssimas, isso se não forem meus olhos que contraíram uma forma galopante de glaucoma pós-divina, ou bizarrice que o valha. O problema se resume a quem sou eu hoje, agora, aqui, neste evanescente presente do indicativo em que estou aprisionado. Se bem que por estes pagos a turma não usa muito dizer hoje nem ontem, e muito menos amanhã. Nada disso faz sentido por aqui. O tempo não conta, nem sequer passa, e todos os espíritos que um dia desfrutaram de algum tipo de existência começam a se dissolver, perder os contornos que os tornavam reconhecíveis na Terra, mal pisam neste chão incerto. Qualquer molusco esclerosado aí do velho planetinha azul – saudoso planetinha azul, eu diria – é mais alguém que você aqui. Resisto a reconhecer que eu talvez esteja virando uma espécie de ninguém. E o pior é a percepção desse processo autonulificante acabar afetando o próprio aparato cognitivo que te permite percebê-lo. Você vê que está virando um nada estagnado no vácuo, em tudo idêntico ao nada que te cerca. Não dói, esse processo. Às vezes quase te dá uma quase sensação quase desagradável e quase imperceptível. Nada de muito físico, nem de propriamente psíquico. Um dos sintomas dessa minha atual condição, se é que podemos usar aqui esses termos, sintomas, condição, atual, é um sentimento de evasão de todos os sentimentos, até o último em estoque na mais secreta dobra da minha mente, sendo que ela própria, a tal da minha mente, não passa agora de uma massa porosa, esponjosa, pedra-pomes em veloz erosão.
De qualquer forma, se estou chegando aos seus ouvidos, é seu dever me receber. Quando menos por educação, já que, quero crer, foi você quem me invocou. Não precisa se sentir possuído nem iluminado nem droga nenhuma do gênero. É tudo muito simples: continue mantendo os canais da sua consciência abertos, de jeito que você possa me ouvir com clareza, pelo tempo que for possível esta nossa comunicação. Use e abuse da sua potência mediúnica. Todo mundo tem alguma. Basta dar o primeiro passo para ativá-la, aliás, dois passos: acreditar e querer – ou desejar, como preferem outros. Acreditando e desejando, a mediunidade sempre se manifesta, em alguma medida. É como funciona a coisa. Um pouco como sexo, só que diferente. No sexo, o primeiro passo também é desejar e acreditar que vai rolar. Pode não rolar, mas sem desejo e crença é que não rola mesmo. É o que está escrito no grande pergaminho celestial, tanto quanto na bula dos inibidores da fosfodiesterase-5.
Mas, olha eu aqui deitando prosa sobre sexo. Sem falar que sexo não é fenômeno da ordem do saber, mas apenas e tão somente do sentir e do fazer, algo fora de cogitação para mim agora.
Olhe bem pra mim. Consegue me ver? Sua mediunidade é de última geração, em HD e 3-D? Ou apenas radiofônica? Não importa. Já estou muito, mas muito perto de ser o não-ser que hei de ser pela eternidade afora. E, acredite, isso não é uma tragédia. Isso não é nada. Nada. Nem pra mim, nem pra ninguém.
O importante neste momento é que você quis (desejou) e acreditou na sua potência mediúnica, por isso está me ouvindo agora. Sim, ouvindo. Ou lendo com os ouvidos, se preferir. Ouça com a visão, é o proverbial conselho que eu poderia lhe dar agora. Vai ouvindo. Os ouvidos é que são os verdadeiros olhos da alma, como bem sabia Nipper, o cachorrinho da logomarca da RCA Victor, que tem passado sua vida a encarar de cabeça inclinada pro lado a campânula de um gramofone.
De qualquer modo, seja você homem ou mulher, ou vice&transversa, aproveito para lhe dar os parabéns por estar aí, do lado A da vida, vivinho da silva, com suas antenas mediúnicas muito ativas, pelo que estamos vendo aqui. Ninguém tem dúvidas da sua existência, suponho. Família, colegas de variadas confrarias, atuais e passadas, amigos e desafetos, o bando vago de conhecidos, vizinhos, garçons de bandeja e conta na mão, atendentes de padaria, médicos, dentista e o diabo de plantão a quatro, todos poderiam dar testemunho positivo da sua existência. Aliás, gozada essa listinha que eu fiz aí. Não acaba. Pra todo lado que você olhar tem alguém cruzando a sua vida, de caixas de banco e supermercado a taxistas e ascensoristas, passando por malabaristas de farol, policiais, mendigos, santos e canalhas.
Digressões à parte, o fato é que você aí tem resistido ao cerco da morte e continua resistindo, isto é, existindo, o que é boa notícia para nós dois, eu por contar com um derradeiro interlocutor no mundo dos mortais ainda vivos, você por ser um desses mortais-vivos bem instalado – espero – no planeta e na sua vida particular, com direito a seguro-saúde, cartão de crédito, banda larga e TV a cabo.
Agora, se você está fazendo algo que preste da sua comprovada existência, essa é uma outra história. Tive minha chance neste quesito, quando compartilhava do seu mundo, mesmo não sendo exatamente o que você chamaria de um simples mortal, muito embora tenha dado de cara com a minha morte no devido tempo, nem um minuto antes, nem um segundo depois.
Um detalhe importante: não estou louco, não. Nem eu nem você, embora recomendo não sair por aí contando pra todo mundo que você andou conversando comigo. Não vai pegar bem, e alguém acabará te dando o telefone de um bom psiquiatra. Esse papo fica, portanto, entre nós – ou, para todos os efeitos, entre você e você mesmo.
***
Como você bem sabe, algumas existências são tão marcantes que logram adentrar o panteão da história humana, seja na ala das grandes glórias ou das pavorosas ignomínias, quando não das esplendorosas luxúrias. São bem poucas, essas existências destacadas, quando comparadas às multidões sem fim de vidinhas mixurebas que vêm se revezando nos majestosos pavilhões do anonimato, isso desde os tempos da macacada primeva, só cumprindo tabela no dia a dia antes de “evoluir a óbito”, como o médico anotou ao encerrar minha ficha naquele PS municipal da Vila Maria e liberar meu corpo. Levar uma vida plana, sem sobressaltos, é, aliás, uma velha aspiração humana. In medium est virtus, já disse alguma bem-nutrida mediocridade latina. E acho que algum antecessor meu no cargo máximo (vamos chamá-lo assim) já proclamou do púlpito celestial que serão os cidadãos anônimos e irrelevantes os herdeiros do reino dos céus. Se entre eles não se verá nenhum John Lennon, também é certo que não se encontrará nenhum Hitler, nenhum Pinochet. (Há o risco de se encontrar vários poetas menores e até alguns pagodeiros e cantores sertanejos, mas nada é perfeito, nem o reino dos céus.)
Anote aí: na época em que eu vivia por aí, pisando a mesma crosta terrestre que você, se eu tivesse conhecido com irrefutável certeza a verdadeira natureza do meu ser, e se o mundo inteiro soubesse disso também, as manchetes explodiriam por toda parte:
ALELUIA! ELE EXISTE! SEU NOME É SUEZ!
Meu nome é, era, Suez. Olímpio Suez. Prazer. Se você tivesse me conhecido em vida e soubesse da minha investidura divina, com certeza se prostraria aos meus pés pedindo mil perdões e favores – você e todo e qualquer bípede pensante. Porque eu não seria apenas o maior bicheiro que o Brasil já conheceu em todas as épocas. Eu seria o monarca absoluto do mundo todo, incluindo a lua e a estação espacial internacional. Porque, o fato é que até quem não acreditava em mim dependia conceitualmente da minha existência para dar sentido à sua própria. Agnósticos e ateus, por exemplo, passavam o tempo todo pensando de algum jeito em mim, seja em como demonstrar o quão incomprováveis são as supostas provas da minha existência, via reductio ad absurdum, seja em como nem vale a pena, de todo modo, ocupar a ideia com tão desprezível assunto. Em tempos idos, todos os espécimes dessas duas espécies de incréus, mais a ruidosa casta dos anarconiilistas, seriam queimados ou empalados, a depender das circunstâncias geo-históricas. Consta dos autos da já extinta Santa Inquisição e dos tribunais doutrinários do intransigente islã, que muitos condenados por apostasias, heresias e blasfêmias em geral passaram a acreditar fervorosamente em mim na hora da agonia: “Ele existe! Ele existe! Apaguem essa porra desse fogo pel’amor d’Ele!” Ou “Pai nosso que estás no céu, tende piedade de nós e tirai essa estaca pontuda do meu rabo, cacete!”
Já os que dão e sempre deram crédito à minha existência atribuem-me a doação da centelha espiritual que destacou o bichumano dos outros animais, tornando-o capaz de erigir shopping centers com milhares de vagas no estacionamento e produzir fermentados de suco de uva que podem atingir preços iguais ou superiores a 20 mil dólares a garrafa, entre outras notáveis proezas civilizatórias. Seríamos todos filhos de deus, mesmo considerando que, na prática, evoluímos de algumas linhagens de macacos mais safos da floresta, e não exatamente de um casal prototípico que habitava um jardim ideal. Que importa de qual bicho evoluímos, dizem os crentes? Fossem os jacarés nossos ancestrais, teríamos aprendido do mesmo jeito, graças à tal centelha divina, a acender fogueiras e espetar outros bichos e nossos semelhantes com lanças afiadas. A diferença, no caso, é que teríamos hoje uma robusta aparência crocodiliana, com direito a uma bela couraça no lugar desse invólucro vulnerável que os cosmeticistas preferem chamar de cútis. Teríamos algum problema com os longos rabos, sobretudo em ônibus e metrôs lotados, mas algum engenhoso mecanismo darwiniano acabaria dando um jeito adaptativo nisso com o passar dos milhões de milênios. Desconfio também que seríamos um tipo de crocodilo sapiens tão ansioso, escroto, entediado, entediante, maluco, apaixonado, estúpido, filosofante, assassino, genial, tapado, generoso, avaro, virtuoso, medíocre, viciado, deprimido, medroso, paranoico, entre mil outros predicados e adjetivos que nos podem ser atribuídos hoje, a nós, primatas supostamente evoluídos.
Outro tipo de crente imagina que declarar e praticar a crença litúrgica em mim lhes indicará os caminhos para a realização de seus sonhos práticos: casa própria, carro importado, férias em Bariloche, mulheres gostosas ou homens adonisíacos, saúde de ferro e a liderança no comércio de porcelanas sanitárias na região da Alta Sorocabana, por exemplo.
E tem quem só acredite em mim por acreditar que a descrença chamaria um azar dos diabos, como fraturas bifemurais, ações de despejo sumaríssimas, cornos a céu aberto e outros tantos e muitos dissabores terrenos.
Pra encerrar tão maçantes quão confusos prolegômenos, digo resumidamente que eu era terra, fogo, água e ar.
E sexo.
Sim, eu era sobretudo o sexo: tesão, procriação. E um bocado de sacanagem. Eu era a vida, nada menos que a vida, tá entendendo? Mas também cavalgava, tetraplicado, os quatro temíveis garanhões do Apocalipse do apóstolo João. Eu era toda forma de beleza, eu era paz, amor e Valvoline no motor.
Eu era tudo isso e – cazzo! – não sabia! Nem acreditava muito em mim, pra falar a verdade. Era ateu da cabeça aos pés, passando com brio pelo pingolim pecador. Não apostaria uma palha molhada na minha própria existência. Nunca senti, aliás, a menor necessidade de acreditar em nada que se assemelhasse remotamente comigo. Lógico: Deus não precisa de deuses.
Eu acreditava mesmo era em grana. Viva, poderosa grana. Aliciante, matadora grana. Abundante e, para mim, sempre fácil grana. Sempre na mão, quando e quanto precisasse. Mesmo trepando me vinham ao espírito valores, porcentagens, margens de lucro, estratégias pra fazer o dinheiro entrar e render, por bem ou por mal, na lei ou, sobretudo, fora dela. Me vi muitas vezes retendo a ejaculação até resolver na cabeça um intrincado esquema de fuga a impostos envolvendo subornos e falsificações variadas. Ou até acabar de armar uma eficiente ciranda de transferências financeiras entre paraísos fiscais – de Jersey para Vanuatu, e daí pra Lichtenstein, via Barbuda, digamos. Só liberava a gala depois de mentalizar este ou aquele esquema, que sempre acabava se revelando perfeito no futuro imediato. Eu era um gênio quando se tratava de manipular números que pudessem se traduzir em sexo e poder para mim numa escala ascendente e infinita. A mulherada achava que eu retardava o gozo de pura libertinagem, e isso as lançava às cumeeiras do orgasmo múltiplo. E que diferença faria se elas soubessem que o móvel da sacanagem era o lucro? Talvez ficassem ainda mais doidas de tesão. Todas saíam da minha cama massacradas de prazer, anunciando ao mundo que haviam fornicado com Deus em pessoa. Quem era eu para desmenti-las. E que outro homem no mundo poderia me desbancar? Nem Delons e Mastroiannis jovens, juntos e multiplicados.
A felicidade tilintava no meu bolso, reluzia nos meus anéis, correntes e obturações, fluía pelas fibras óticas e sinais de satélite do capitalismo financeiro internacional. O dinheiro era o meu autêntico princípio do prazer – princípio, meio e fim, pra ser bem sincero. O sacrossanto dindim se traduzia na maciez da cútis das minhas esposas e amantes, indiscernível da seda que lhes cobria os belos rabicós. Com todas elas eu mantinha lhano convívio, sem nenhuma espécie de aporrinhações que o comum dos mortais soe ter com suas paulificantes “patroas”, como eles as chamam. Minha bem-sucedida poligamia afogava os invejosos em seu próprio fel e arrancava aplausos dos admiradores até mesmo enquanto dormiam. No fundo, todos sonhavam em ser como eu. Minha felicidade era à prova de inimigos. Eles tombavam um a um pelo caminho, meras moscas sob um jato letal de Detefon. Minha felicidade avançava impávida e colossal, arrostando obstáculos e reduzindo os piores perigos a miados de gatinhos.
O mais incrível era não me passar pela bruta testa que tão afortunada sina não passava de um sintoma colateral de uma superior condição que outro babaca cedo ou tarde vai encarnar aí no seu planeta, assim que Deus se decidir a voltar à Terra, como aconteceu comigo e outros antecessores meus, detentores, eles também, das supremas prerrogativas. A diferença é que alguns deles tiveram plena consciência de serem portadores da excelsa luz. Aquele hebreu hippie da Galileia, por exemplo – Yeshua, era o nome dele –, teve um insight ao cair da manjedoura que usava de berço e sacou que era Deus. Uma estrela especial brilhou no céu e alguns reis vieram lhe trazer presentes. Mas esse deu um baita azar e acabou na cruz, coitado.
Um certo príncipe da Índia que abandonou o palácio pra sair descalço pelos caminhos do mundo, foi outro da minha laia, alguns milênios atrás. Um dia, descansando o barrigão em cima das pernas entrelaçadas em lótus passou a levitar na divindade, dedicando-se a partir daí a fabricar conselhos de autoajuda. Maomé, lá nas Arábias arenosas, também entrou no rol dos deuses interinos alguns séculos depois do cabeludo crucificado. Dizem que ele não queria ser considerado como o bastante Deus na Terra, vendo-se e fazendo-se ver apenas como um ser humano perfeito bafejado por uma visita do anjo Gabriel que fez dele o único representante terreno de Alá para assuntos de fé, política e costumes. Era e ainda é reverenciado por homens prostrados em cima de tapetinhos, dispostos a matar e morrer por ele a qualquer momento. Todos esses meus antecessores morreram, como bons mortais que eram. O hebreu da Galileia parece que voltou do sepulcro dias depois pra dar mais umas bandas pelo planeta, a troco não lembro bem de quê. Acho que só queria provar que podia renascer quando bem entendesse. Mas, logo em seguida subiu de novo aos céus e por lá ficou.
Esses caras, sim, acabaram sacando que eram farinha de outro saco. Não sei com que periodicidade se reencarna essa força encantada que me habitava em vida e já vai toda de mim se esvaindo feito um gás fujão. Acho que a coisa é meio aleatória, meio que encarna e desencarna quando lhe dá na insondável telha. Pode ser que, neste momento, outro humanoide esteja dando os primeiros chutes no ventre da mãe pedindo pra sair à luz e à glória. Se a humanidade tiver sorte, também ele não vai se saber divino, de maneira que, como eu, não ensejará legiões de indivíduos de cabeça, coração e sentidos garroteados por dogmas idiotas e crendices perigosas, não poucos com ânimo de cruzado rompe-crânios ou jihadista bombástico.
Me desculpe, mas eu acho uma delícia ficar repetindo isso: eu existia! Dá alguma consistência ao meu evanescente espírito, e ao menos uma impressão de profundidade à minha cada vez mais rasa inteligência, além de certa espessura às minhas agora tão ralas sensações e emoções.
Eu existia, meu caro, e não sabia e não cria. Engraçado que a frase “eu não acreditava em mim mesmo” soaria como a descrição de um coitado carente de autoestima, e não de um cara que nadava em autoconfiança, como eu. A própria ideia de um deus transitório – até que a morte do corpo hospedeiro o separe de sua divindade – soa como um tremendo paradoxo, posto que sublime.
***
Meu nome, já disse, era Olímpio Suez, “Provedor de tudo que há de bom no mundo, pai comum, salvador e guardião tutelar do gênero humano,” conforme diziam os antigos lá pras bandas do Mar Egeu, segundo posso me lembrar, não sei com exatidão como, nem por quê. Tudo começou aos cinco minutos para a meia-noite do dia 19 de fevereiro de 1994, último dia do horário de verão. Eu vinha chutado ao volante do meu Camaro 74, vermelho, de primeira mão, que me custara uma fortuna vinte anos antes, quando ainda se pagava quase 200% de imposto para se ter um importado no Brasil. Dos meus carros, o Camarão era o predileto (não digo quantas carangas eu tinha, nem quais, pra não humilhar ninguém, mas devia ter mais cilindradas debaixo daqueles meus capôs particulares que na lendária coleção de carangas do Roberto Carlos, por exemplo).
Eu entrava em São Paulo pela marginal Tietê, despejado ali pela Ayrton Senna, chegando do meu sítio predileto, o de Piranguçu (eu tinha mais um em Cunha, na outra ponta da Mantiqueira, além de uma fazendola lá em baixo, ao nível do mar, pertinho de Paraty), carregando no Camarão as três melhores garçonetes universitárias do Max da alameda Itu, a loirinha sapeca, a caiçara sestrosa e a japinha de porcelana, a Mayumi, um mimo de menina, tarada e doida por pó. Essa queria juntar dinheiro pra abrir um restaurante japa com o irmão, que era sushiman num restaurante da Liberdade. Não havia dúvidas de que iria conseguir isso, mais cedo do que tarde. A loira, Mel Celeste, fazia teatro infantil, mas com aqueles peitões e aquelas curvas todas bem que poderia arrasar como prestidigitadora pornô na Boca, fazendo imensos falos de todo tipo e tamanho desaparecerem dentro da sua anatomia, vários de cada vez. Aquela teria futuro nos palcos, nas telas e nas camas do planeta. A morena acaboclada, Teca de Assis, seu nome, que eu chamei de caiçara, era uma pobretona da perifa que aspirava às passarelas da moda, mas um tanto baixinha pro metiê como era, se virava nas horas vagas posando pra fotos de publicidade, chupando sorvete (era boa nisso), escovando seus dentes perfeitos, abrindo cadernetas de poupança no “banco dos seus sonhos” ou figurando de opção étnica num reclame do governo, ao lado de uma negra, de uma branca e de uma asiática, para mostrar o quão abrangentes são as políticas sociais includentes do cara de pau de plantão lá no trono municipal, estadual ou federal, não lembro. Essa também almejava a “carreira artística”, mas não sabia dizer um bom dia sem cometer pelo menos um erro de português, tadinha.
Eram boas meninas, todas as três, e gostosinhas pra cacete, cada qual em sua modalidade. Eu tinha passado a semana inteira com aquelas figurinhas adoráveis fodendo feito um condenado ao amor e à sacanagem, fazendo as três de gato e sapato, entre os pinheiros, eucaliptos e araucárias da Mantiqueira, parando apenas pra dormir, andar um pouco numas trilhas ajardinadas e traçar o feijãozinho do forno a lenha da dona Doca, minha caseira. Isso, quando as três cretinas não estavam se dopando até o fiofó amigo delas fazer biquinho. Acho que já disse que não sou das drogas nem mesmo do álcool, mas me divertia ver aquelas peladices em flor se esbaldando nos paraísos artificiais, embora eu mesmo não mandasse nada, contentando-me com uma cervejinha de vez em quando, nos dias muito quentes, só pra refrescar a alma e fazer companhia aos amigos, por que, precisar, eu não precisava de nada pra me ligar. Eu vivia num constante barato só por ser quem eu era, como posso ver hoje muito bem. Quero dizer com isso que a hiperlucidez intrínseca ao ser-quem-eu-era agia no meu cérebro como a mais potente droga que alguém jamais terá experimentado na vida – alguém, digo, que não tenha sido ou venha a ser como eu fui. Era como se eu me cheirasse a mim mesmo em múltiplas carreiras, me fumasse até o talo dum charo rasta, me aplicasse direto nos canos, me ingerisse em drágeas e pílulas, tudo junto, a cada milésimo de segundo. Um autojunky, eis o que eu era.
Meu plano, pois, era deixar minhas três fadinhas encantadas na porta do próprio Max e tocar direto pra minha casa com a Leto, quer dizer, pro domus completo que partilho com ela, entre os outros oficiais que mantenho só nesta cidade, e fazer uma surpresinha erétil praquela ninfa quarentona, ex-Barbie patricinha que eu cacei num shopping do Rio, vinte anos atrás, e que agora tentava adiar a decadência física na academia que eu mandei instalar em casa, seguindo as diretivas de seu personal trainer importado diretamente da Suécia. (Já imagino um sorrisinho canhestro na sua cara, de quem imagina que o loirinho sarado pudesse exercer também os misteres de personal fucker na cama de Letucha durante as minhas muitas e prolongadas ausências, mas isso, lhe garanto, era impossível. Cornos era o tipo da coisa que ninguém conseguiria plantar na testa aureolada de um cara como eu. Eles simplesmente não grudavam ali.)
Quando a Leto não tinha ainda 18 anos, fertilizei-a em dose dupla numa noite clara sob uma lua cheia a pino no céu carioca, apenas algumas horas depois de conhecê-la. Nove meses depois nasciam Apolônio e Diana, os mais diletos exemplares da minha extensa prole, que não vem ao caso aqui detalhar. Agora, só a Diana continua roçando a áspera crosta do planeta, com sua personalidade agressiva e também com sexo afoito tão afeito a um roça-roça. Veja, amigo, amiga, eu não sei quem é você, já não posso mais saber essas coisas, mas seja você quem for, não é de todo impossível que venha a conhecer a minha Didi algum dia. Se você for mulher, jovem, bela e sem preconceitos, o mais provável é que a própria Diana tome a iniciativa de abordá-la logo ao primeiro contato visual. Devo avisar que a Didi é muito bonita e pra lá de sedutora, sem precisar ser muito insistente. Se você for homem, também vai suspirar fundo por ela. Salvo engano, isso é tudo que você conseguirá fazer com ela, suspirar, e à distância. Enfim, não é disso que eu estava falando. Já percebi que a minha cabeça tende às digressões, desde que cheguei aqui, um sintoma colateral, talvez, do meu novo estado. Será que eu falava do Apolônio, o irmão da Diana? É bem provável. Saudoso, querido, nunca suficientemente pranteado Apolônio. Sei que é um nome desgraçado de ruim pra se dar prum filho, mas foi o que escolhi, escolhemos, eu e a Leto. Gosto muito desse nome: Apolônio. Polô pros íntimos. Diana era comum, não tinha nada de mais. Mas Apolônio era diferente – o nome e o garoto.
A Leto, enfim, só me esperava para o dia seguinte, como tínhamos combinado. A verdade é que eu dera um belo sumiço, coisa de semanas, e a Leto, minha patroa nº 1, vinha deixando nos últimos dias recados chorosos na caixa postal, já que eu sempre decidia não atendê-la, por fastio, preguiça ou excesso de afazeres e preocupações. Ela tentava também me soterrar sob uma tempestade ininterrupta de recados no meu pager, todos de natureza culpabilizante, cuja redação decerto encomendava à sua secretária particular, uma poeta de Açude das Almas, lugar-nenhum encravado nos grotões ressecados do Polígono das Secas, inspirador de uma gramática concisa, graciliana. Talentosa menina, essa nordestina, morena, quase mulata, mas de cabelos muito loiros, graças aos caprichos do caldeirão étnico brasileiro. Eu não resistia a lhe dar ocasionais atenções sexuais, e creio que Diana também não, sob as vistas sempre lenientes da Letucha.
Minha Letucha – era como eu gostava de chamar a Leto – queria me ver e ter, como sempre, movida pela inaplacável urgência da sua carência côncava e proparoxítona, a qualquer hora ou lugar. Mas não era só feita de carinhos e saudades, minha beldade madura. Também vinha lá com seus reclaminhos de consorte injuriada, como naquele último transe que tanto marcou nossa vida. Que monstro era eu que inventara de desaparecer justo naqueles tempos tão medonhos de trágicos para nós?
Eu não sabia o que responder. Então, não respondia. Tinha mesmo um lado meio monstruoso em mim, em ser e agir como eu era e agia. Mas a Leto sabia, e todas as minhas outras mulheres e amantes também sabiam, o quão gentil era eu, enquanto monstro, incapaz de violências no lar, do qual era excelente provedor e protetor, sem contar meu talento natural para o amor físico, tocado por uma gana insana que lhes propiciava as melhores horas de sexo puro que qualquer mulher já teve ou viria a ter na vida. E eu fazia tudo no instinto, sem premeditar nada, ia lá e fazia o que me dava na telha fazer, e meu instinto nunca falhava. Tremendo instinto, o meu. Nele morava o segredo da minha diferença espantosa na cama. Sinto que muito em breve já não terei saudade de nada, mas se tivesse haveria de ser do meu antigo instinto, como eu chamo a voragem de saberes e habilidades que já me vieram embutidos de fábrica.
Naquele último encontro com a Leto, dei show de bola, apesar das circunstâncias pra lá de desfavoráveis. Deixei a Leto se afogando em gozo e lágrimas, esgarçada entre o prazer e o luto, dois sentimentos que estranhamente se intensificavam mutuamente dentro dela. O cenário e o momento da trepada, tanto quanto da minha partida, eram dos mais atrozes, reconheço. Foi durante o enterro do nosso filho, imagine só. Atormentada demais da conta, achei melhor a Leto não ver o caixão com nosso garotão descer à campa. Levei-a amparada em meus braços, com seus pés mal tocando o chão, até a capelinha do cemitério onde o corpo tinha sido velado. Pedi pra ficar a sós com ela lá dentro, cosidos um ao outro num abraço agônico. Tão agônico que acabei sentindo tesão por ela. Um tesão áspero, feito de loucura e da dor pela perda do nosso filho querido. Abraçado a ela no banco onde a gente se sentara na capela, tateei sua coxa moreníssima até tocar-lhe a carne ambígua do sexo, marejada do mais paradoxal e escandaloso desejo. Ajoelhei na frente do banquinho, me encaixei entre as pernas dela e mandei ver. No final, tive tempo de ampará-la antes que se estatelasse no chão, desfalecida. Deitei-a no banco, cada braço pendendo prum lado, e me mandei pra fora do cemitério, pegando o primeiro táxi que passou por mim na sempre congestionada dr. Arnaldo. Eu tinha, simplesmente tinha que ir-me embora dali.