Com 12 anos, a carioca Rafaela Dias já fazia parte do Salgueiro. Hoje é musa da escola FOTO: ÁLBUM DE FAMÍLIA
A vez da pretinha
Uma passista contra o preconceito
Luiza Miguez | Edição 137, Fevereiro 2018
“Ladies and gentlemen, it’s time!”, anunciou o mestre de cerimônias, num inglês tão fluente quanto espirituoso. Era a deixa para que dezenas de mãos ligassem as câmeras dos celulares e se erguessem na plateia. Gingando com delicadeza, moças bonitas e atléticas entraram em cena e, perfiladas, se deslocaram vagarosamente até o centro do palco. Algumas vestiam roupas curtas. Outras preferiam figurinos mais comportados. Todas se equilibravam em cima de saltos altíssimos.
Quando os percussionistas aceleraram o ritmo, as jovens rebolaram freneticamente. Naquela madrugada de domingo, cerca de 4 mil pessoas lotavam a quadra do Salgueiro, na Zona Norte carioca. A tradicional escola de samba ensaiava para o Carnaval de 2018. Às margens do palco, entusiasmado com as passistas, um rapaz mostrou os pelos do braço ao amigo do lado e disse: “Caraca! Arrepiei!”
O mestre de cerimônias, igualmente empolgado, disparou no microfone: “Que é isso, pretinha? Assim você mata o papai!” Não se referia a nenhuma dançarina em particular. Falava do grupo inteiro, como se admirasse uma única mulher. “Rafaela!”, gritou outro rapaz na plateia, enquanto apontava a câmera para a negra de 28 anos, que trajava um macacão salpicado de purpurina e ostentava longas tranças. Ela retribuiu o chamado com um requebro sensual e um olhar debochado.
Nascida no bairro do Andaraí, também na Zona Norte do Rio de Janeiro, Rafaela Dias é passista do Salgueiro há mais de duas décadas e já escutou muita gracinha dos espectadores masculinos. Aprendeu a rechaçá-las com desenvoltura, mas nem por isso as considera aceitáveis. Não bastasse, frequentemente enfrenta situações racistas. Quando tinha 17 anos, por exemplo, namorava um homem mais velho e branco. Certa noite, assim que chegou a um salão de festas, o casal ouviu alguém comentar: “Lá vai a mulata dar um golpe no gringo.” Depois do episódio, sempre que encontrava o namorado em lugares públicos, Dias evitava usar salto alto ou maquiagem. Temia que a confundissem com uma prostituta. Em outra ocasião, preparava-se para conceder entrevista numa rádio, junto de várias colegas, a maioria universitária. “Ué, passista agora estuda?”, perguntou uma funcionária da emissora, sem o menor constrangimento. De quebra, emendou: “E vocês são todas escurinhas, né?”
Justamente com a intenção de debater o racismo e o machismo é que Dias decidiu fundar o coletivo Samba Pretinha. Mais três dançarinas do Salgueiro participaram da iniciativa: a cientista social Sabrina Ginga, a estudante de pedagogia Larissa Reis e a graduanda em medicina Mirna Moreira. Desde 2016, as quatro organizam rodas de discussão no próprio Salgueiro e em outras escolas do Rio, como a Paraíso do Tuiuti. Falam principalmente para as mulheres, embora não rejeitem a presença de homens. A ideia é mostrar de que maneira os preconceitos de cor e gênero se manifestam no universo carnavalesco e quais os caminhos para combatê-los, inclusive em termos legais.
Logo no primeiro debate, o Samba Pretinha se viu diante de uma saia justa. Um dos dirigentes do Salgueiro louvou o grupo e se declarou “branco de alma negra”. Uma jovem que estava na roda de conversa protestou e assinalou a incorreção política da frase. Nenhum branco, afinal, pode saber o que um negro sente e vice-versa. Irritado, o dirigente cogitou suspender o evento, mas recuou.
Em parte por causa das questões levantadas pelo coletivo, o enredo do Salgueiro para o Carnaval deste ano – “Senhoras do ventre do mundo” – vai retratar as matriarcas negras. Ou melhor: “As empreendedoras, as líderes, as mães, as escritoras e todas as mulheres que representam a força de uma raça”, nas palavras do carnavalesco Alex de Souza. “Não deixa de ser uma vitória nossa, né?”, ressaltou Dias uma semana após o ensaio na quadra da escola.
Adançarina ingressou no Salgueiro com 5 anos. Foi levada pela avó, uma empregada doméstica que pertencia à velha guarda da agremiação. Aos 16, a garota fez teste para sair como passista no desfile oficial. Acabou eliminada em virtude da baixa estatura (mede 1,55 metro). Mesmo assim, chamou muita atenção e, em 2007, o presidente da escola resolveu lhe conceder a vaga.
Quase uma década depois, a moça se sagrou Musa do Salgueiro numa eleição interna. Apesar do título, nunca recebeu para desfilar. “Na verdade, a gente só gasta dinheiro”, queixou-se. As passistas financiam as próprias fantasias, que podem custar até 20 mil reais. Não à toa, o namorado da salgueirense – recepcionista num restaurante – ajuda a bancar as penas e os demais adereços que ela exibe na Marquês de Sapucaí.
Para se sustentar, a musa faz shows e dá aulas de samba tanto no Brasil quanto em outros países, como Turquia, Rússia, China e Gana. Quando está no exterior, ganha um cachê mensal de aproximadamente mil euros. Já o mercado nacional lhe rende entre 150 e 200 reais por espetáculo. “O duro é que a maioria dos contratantes brasileiros não vê a gente como artista. Eles não oferecem nada: nem água, nem comida, nem camarim.”
Avoz de Rafaela Dias ecoou da rua: “Micheeeeeel!” Dentro do antigo casarão, o estilista e sete costureiros se alvoroçaram. Numa tarde abafada de janeiro, a passista visitava o ateliê de Michel Marssola, no bairro do Estácio, para provar os trajes que usaria no sambódromo. Assim que entrou, tirou sem pudor o top de academia e vestiu a parte superior de um biquíni colorido. “Não tem como diminuir?”, sondou, após experimentá-la. “Menina, não vai sobrar espaço para bordar”, retrucou um dos costureiros.
Embora pareça tímida – gagueja em entrevistas e dificilmente encara os interlocutores –, a dançarina não se acanha com fantasias minúsculas. Tampouco se sente um bibelô sexual quando as enverga. “As roupas me dão uma sensação de poder, sabe? Tipo: ‘Olhem só o meu corpo! Eu vou passar e vocês vão aplaudir.’” Nos shows, caso algum marmanjo da plateia avance o sinal, a musa se transforma em fera e ameaça beliscá-lo ou lhe dar um tapa, mas sem desfazer “o sorrisão de passista”.
“Na fé do Senhor Jesus, hei de emagrecer”, ironizou à medida que tentava se espremer dentro da fantasia. “Infelizmente, a gordofobia ainda prevalece no Carnaval”, admitiu. Por influência das companheiras que formam o Samba Pretinha, a jovem se animou a cursar uma faculdade. “Estudo educação física”, contou, orgulhosa. No Andaraí, onde continua morando, as meninas costumam paparicá-la. “Tia, quando crescer, vou ser passista como a senhora”, prometem. Logo, porém, mudam de ideia e manifestam o desejo de virar porta-bandeiras. “Tem coisa mais fofa neste mundo?”, derrete-se a salgueirense.
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