"Meu corpo é um campo de batalha, um terreno aberto às experimentações”, diz T. Angel, que dá aulas de história para o 7º ano de uma escola pública na Grande São Paulo FOTO: FLAVIA VALSANI_2017
A volta
O professor que decidiu lecionar no colégio onde sofreu bullying quando adolescente
Armando Antenore | Edição 129, Junho 2017
No último dia 9 de março, enquanto caminhava em direção à sala de aula, Thiago Ricardo Soares, o T. Angel, sentia que alunos e funcionários da escola o observavam com um híbrido de curiosidade e assombro, como se estivessem diante de um alienígena. Eram quase sete da manhã. Recém-contratado, o professor de história iria lecionar pela primeira vez no colégio estadual Doutor Américo Marco Antônio, em Osasco, a quinta maior cidade da Grande São Paulo. Ninguém ousava falar nada para o novato. Simplesmente o mediam dos pés à cabeça, talvez se perguntando de onde surgira uma figura tão exótica.
Magro, alto e muito branco, com os longos cabelos presos num coque, T. Angel pertence à tribo dos que optaram por modificar radicalmente o corpo. Ele não apenas se tatuou do pescoço para baixo como espalhou piercings pelo rosto e pôs alargadores no nariz, nos lóbulos de ambas as orelhas e sob o lábio inferior. Também dividiu a ponta da língua em duas partes, deixando-a parecida com a das cobras, e queimou as costas para produzir cicatrizes similares às de um pássaro que teve as asas arrancadas. Não bastasse, colocou implantes subcutâneos de silicone no braço esquerdo e no meio do peito, que criaram relevos na pele em formato de esferas ou círculos. “Sou um campo de batalha, um terreno aberto às experimentações”, costuma explicar, com voz fina, gestual delicado e óculos de hastes azuis.
Naquela quinta-feira, quando chegou à turma 7G, o professor se apresentou rapidamente e logo abriu espaço para que os cerca de trinta estudantes o inundassem de perguntas. Faria o mesmo nas outras quatro classes onde iria trabalhar, todas do 7º ano. As roupas inusitadas que trajava – uma camiseta bem comprida e uma calça feminina – em nada lembravam o uniforme comportado dos alunos. Por que você se enfeita desse jeito? Seus pais concordam? Doeu para botar os alargadores? E os piercings, estão machucando? Você sofre preconceito? Gosta de futebol? É bicha? Com bom humor e o máximo de sinceridade, T. Angel procurava esclarecer cada dúvida dos adolescentes, inclusive as mais indiscretas. “Bicha? Prefiro dizer que posso me apaixonar por qualquer tipo de pessoa, seja mulher ou não.”
Numa das salas, dois meninos de cabelos descoloridos cismaram com as unhas verde-azuladas do professor de 35 anos. “Você pinta sempre? De que cores?”, indagou um deles. “Depende… De preto, marrom, prateado, rosa”, respondeu T. Angel. “Rosa?! É cor de menina!”, protestou o outro garoto. “A gente não acha certo um homem pintar as unhas”, resumiu. “Não acham? Vejam que curioso: vocês reclamam das minhas unhas, mas descoloriram os cabelos. Antigamente, meninos não podiam nem sonhar em fazer algo do gênero. Ganhariam fama de maricas. Dá para acreditar?” A dupla se entreolhou, sorriu sem graça e liquidou o assunto.
Embora estivesse debutando como docente no colégio, T. Angel conhecia bem “o Américo”. “Estudei lá durante toda a infância e a maior parte da adolescência. Foi barra-pesada…”, recordou numa noite fria de maio. A escola fica perto do sobrado em que o professor cresceu e mora até hoje. “Entre a primeira e a última série do ensino fundamental, não enfrentei problemas graves. Era quietão e a galera me respeitava. Mas depois…”
Tão logo começou o ensino médio, o rapaz – que ainda não ostentava tatuagens – descobriu os piercings e, desobrigado de usar uniforme, decidiu se vestir com extravagância. Ora andava somente de negro, ora recorria à esfuziante moda clubber. “Os colegas da minha idade e um pouco mais velhos não toleravam aquilo. ‘Arranque os piercings!’, gritavam. ‘Aja como macho!’” Houve um período em que os valentões aguardavam T. Angel na entrada e na saída do colégio para segui-lo pelo pátio ou pelas ruas, enquanto o tachavam de veado e ameaçavam espancá-lo. “Eu morria de medo, claro, mas não os confrontava. Engolia em seco, me trancava num casulo invisível e resistia calado. Talvez por isso nunca me bateram.”
Numa ocasião, arranjou coragem e pediu socorro à diretora. “Ela não deu a mínima. Pior, me culpou: ‘Se você assumisse outras atitudes, não o tratariam tão mal.’ Diversas vezes, os próprios inspetores da escola flagravam o bullying e lavavam as mãos.” Quando o adolescente revelou o tormento em casa, seus pais – uma costureira e um mecânico industrial – quiseram tirá-lo do Américo. Pleitearam vaga num colégio público das redondezas e não conseguiram nada. O jovem cogitou abandonar os estudos, mas os parentes se opuseram. “Sem alternativas, me restou suportar o martírio até a formatura.” Na esperança de conter a perseguição, curvou-se às recomendações da diretora e adotou trajes menos chamativos. “O assédio diminuiu, só que não terminou. Por mais que alterasse meu guarda-roupa, não havia como me livrar do que realmente incomodava os garotos: a minha feminilidade.”
Caçula de três irmãos, o professor conta que, pouco antes de se alfabetizar, teve um sonho prazeroso. “Eu caía lentamente do céu – um céu policromático, lindo, como o do entardecer. À medida que despencava, com os braços abertos, ouvia uma musiquinha estranha, que ecoava não sei de onde.” Depois daquela noite, adquiriu o hábito de cantarolar a tal música sempre que se ensimesmava. “Já a esqueci, mas me lembro perfeitamente de meus pais intrigados com meu comportamento. Em razão do sonho, virei o ‘anjinho da família’. Todos me chamavam assim.”
Não por acaso, apelidou-se de T. Angel quando aderiu às modificações corporais. Avaliou que a metamorfose exigia uma nova identidade. “Desde pequeno, não me canso de admirar seres mutantes. Super-heróis, personagens de ficção científica, medusas, sereias e outras criaturas mitológicas me fascinam.” Em 1997, aos 15 anos, visitou o Mercado Mundo Mix, feira paulistana dedicada à cultura alternativa, e se deparou justamente com uma legião de esquisitões. “Opa! Encontrei minha turma”, pensou, eufórico. Fez a primeira alteração física àquela época. “Botei um piercing de titânio no lábio.”
De início, movia-se pela vaidade – julgava bonitas as transformações que promovia em si mesmo – e pelo desejo de integrar “o grupo dos moderninhos”. Com o tempo, porém, notou que alargadores, brincos, escarificações e tatuagens o deixavam mais confiante. “Eu me considerava um horror: magricela, desengonçado e branquelo. Odiava me expor. Evitava tirar a camisa em público e não usava nem bermuda, nem regata. Também ficava constrangido se me abraçassem, se me tocassem com mais intimidade. Hoje é diferente. Graças às mudanças extremas que operei em mim, me apropriei completamente do meu corpo. Agora gosto de vê-lo no espelho e de exibi-lo.”
Evangélicos, os familiares do professor tiveram dificuldade para aceitar a transfiguração. Relacionavam aquele visual esdrúxulo à criminalidade e às drogas. Tampouco entendiam a androginia do rapaz. “Meus vizinhos reagiam de modo semelhante. Uns até se benziam quando topavam comigo.”
Alheio às recriminações, T. Angel, que se declara ateu, continuou navegando na contracorrente – e não só em termos estéticos ou sexuais. “Há uma década, me tornei vegano.” Abdicou de quaisquer alimentos, roupas, acessórios e calçados que derivem dos animais. Converteu-se, ainda, em protetor de cães e gatos abandonados. “Procuro resgatá-los das ruas e os encaminho para a adoção.” No sobrado de esquina que divide com a mãe e o irmão do meio (o pai já morreu), cria a tartaruga Clotilde e dois yorkshires. “Batizei o mais novo de Teddy, porque lembra um urso de pelúcia. O outro, velhinho, sofreu maus-tratos antes que o recolhesse. Chegou à nossa casa sem os dentes, escutando mal de um ouvido e muito amedrontado. Por isso, lhe dei o nome de Coragem. Ele também precisava se apoderar do próprio corpo.”
Após concluir o ensino médio, T. Angel fez um curso técnico de moda enquanto trabalhava como operador de telemensagens. Identificou-se tanto com “o mundinho fashion” que ingressou numa faculdade da área. Frequentou as aulas durante um ano, mas não seguiu adiante. “Faltou grana para as mensalidades.” Àquela altura, já digerira uma série de informações sobre dança e body art. Percebeu, então, que poderia enveredar pela seara artística e se converteu num performer. “Me apresento principalmente em festivais, embora também protagonize vídeos e participe de intervenções urbanas.” Quase sempre, as exibições buscam testar “os limites psicofísicos” do professor. Numa delas, T. Angel transpassou a pele do tronco e das pernas com inúmeros ganchos de metal e, deitado de costas, deixou-se suspender, como se levitasse. Apenas os ganchos o sustentavam. Na performance Semente, mesclou o próprio sêmen com o de outros homens e congelou a mistura para que ganhasse o formato de um coração. Depois, esfregou-a no corpo nu até derreter.
Em paralelo às apresentações, ele ministra palestras e workshops por todo o país. Fala especialmente do livro A Modificação Corporal no Brasil: 1980–1990, que lançou pela editora paranaense CRV. “Sou um cara aplicado. Desde que coloquei o primeiro piercing, tenho a preocupação de me aprofundar no assunto, tanto sob o prisma histórico quanto antropológico e psíquico.” As pesquisas do professor acabaram minando os preconceitos familiares. “O pessoal lá de casa agora compreende perfeitamente as minhas escolhas. Consegui mostrar a eles que meu jeito de ser não vem do nada.”
Quando estudou moda, T. Angel se encantou pela história da indumentária. Foi pensando em se especializar no tema que, mais tarde, quis se tornar historiador. “Arrumei uma bolsa de 50% e iniciei minha segunda faculdade.” Desta vez, logrou terminá-la. Formou-se em 2012 e virou o primeiro da família com diploma de nível superior. Ao longo do curso, desistiu de explorar os meandros da indumentária e resolveu abraçar o magistério. “Senti que precisava me dedicar à educação pública e lutar efetivamente por uma sociedade menos preconceituosa. É um clichê, mas…”
Na metade da graduação, T. Angel recebeu a incumbência de estagiar em alguma escola como observador. Teria de assistir às aulas, se relacionar com os alunos durante os intervalos e acompanhar as reuniões pedagógicas. “Escolhi voltar para o Américo.” Desejava saber se algo mudara por lá. “Infelizmente, tudo me soou igual. As provocações homofóbicas ou sexistas entre os estudantes perduravam e o colégio ainda não parecia capaz de lidar com a questão.”
Dois anos depois de concluir a faculdade, T. Angel prestou concurso para professor. Passou, mas ficou esperando o governo estadual convocar os aprovados, o que só ocorreu em dezembro de 2016. “Fui até a Diretoria de Ensino e me perguntaram onde gostaria de lecionar. Sugeri cinco escolas e indiquei o Américo como primeira opção. Retornar no papel de docente seria a maior prova de que sobrevivi à intolerância.” Acabou contratado com salário mensal bruto de 1 449,53 reais.
“Para minha surpresa, encontrei um ambiente muito mais acolhedor. Funcionários, pais e alunos vêm me tratando com bastante respeito. Acho que minha aparência já não os espanta. Lógico que o bullying entre a molecada ainda existe, mas hoje noto que o colégio tenta combatê-lo. No dia em que me conheceu, o diretor frisou: ‘Se você flagrar qualquer discriminação aqui dentro, reaja imediatamente. Não permita que o fogo se espalhe.’” Em parte, o professor atribui a mudança de ares às redes sociais, que nos últimos anos amplificaram as reivindicações das minorias. “Talvez o apelo por um país menos excludente esteja surtindo algum efeito. Veja o exemplo daquela resolução do stf sobre tatuagens.” Em agosto de 2016, o Supremo Tribunal Federal determinou que instituições públicas não podem desclassificar ninguém de um concurso seletivo pelo simples fato de se tatuar.
Procurado, o diretor da escola, Marcos Neves dos Santos, preferiu não conceder entrevista.
Fazia quase uma semana que T. Angel trabalhava no Américo quando uma estudante o abordou logo após a aula. Segurava uma folha pautada de caderno. Em silêncio, entregou-lhe o manuscrito e saiu da classe. O professor leu e releu o bilhete: “Se alguma pessoua te jugar por que você é assim não de atenção. Se você se sentir bem assim continue feliz. Eu não me emcomodei por que você é assim. E fiquei feliz porque você se sente bem. Siga a sua vida como você quiser e nunca deiche alguem te julgar te tratar como se você fosse um animal por que você não é.”
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
Leia Mais