ILUSTRAÇÃO: ROBERTO NEGREIROS_2015
Abre! Abre! Abre!
1 milhão de pessoas enfrentam a crise no supermercado mais popular do Rio
Tiago Coelho | Edição 110, Novembro 2015
Era dia de festa de aniversário na rua Maxwell, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro. Ansiosa, Luciana Rosa dos Santos – uma mulher morena de 36 anos, baixinha, de cabelos negros compridos – roía as unhas, ajeitava os óculos no rosto e conferia numa lista de produtos o que precisava comprar. Ainda eram seis e meia da manhã, e as portas do supermercado Guanabara só abririam às oito. Cerca de 200 pessoas se aglomeravam na entrada da loja. O número dobraria uma hora e meia depois.
Espremidas na multidão, Santos, suas duas filhas, de 17 e 21 anos, e a amiga e vizinha Simone Oliveira traçavam estratégias para quando os portões fossem abertos. Duas delas deveriam ir para o lado direito, e as outras duas para o lado esquerdo. O plano era conseguir os itens de que precisavam o mais rápido possível, antes que as prateleiras ficassem vazias. Com o encarte da rede nas mãos, elas repassavam os itens em promoção: o açúcar caíra de 2,30 reais para 1,98; o azeite, antes por 11 reais, era anunciado por 7,98; o óleo de soja, de 3,40, saía por 2 reais.
Conforme a hora avançava, o falatório e a impaciência aumentavam. Corria um boato de que a latinha de cerveja seria vendida por 1 real. Santos se afastou da multidão por um momento e fumou um cigarro. A todo instante ela conferia o relógio do smartphone. A hora para começarem as comemorações do 65º aniversário do supermercado Guanabara demorava a chegar.
Há 21 anos a rede fluminense festeja a efeméride a cada outubro, promovendo descontos, correria e disputas acirradas por produtos. Uma tradição que entrou para o calendário dos consumidores – e que gera piadas na internet. Vídeos e fotos de tumultos, confusões e até pancadaria nos supermercados fazem sucesso nas redes sociais. Numa montagem que circula na web, a imagem do ator Chuck Norris com duas pistolas nas mãos vem acompanhada da legenda: “Já estou pronto. Vai começar o Aniversário Guanabara.”
A porta de metal do supermercado, para onde todos se voltavam, era protegida por uma fila de seguranças e funcionários. Faltando poucos instantes para a hora marcada, o gerente apareceu diante da multidão e apurou a voz. Pediu cautela aos clientes, que todos se esforçassem para evitar tumultos. Em resposta, cerca de 400 pessoas começaram a gritar, em coro: “Abre! Abre! Abre!”
Abriram.
Era preciso ter equilíbrio para se manter em pé. Tudo indicava que um breve descuido em meio ao empurra-empurra bastaria para ir ao chão e ser pisoteado. O bate-bate entre os carrinhos era constante. “Cuidado com o tornozelo”, Santos alertou. O conselho era precioso. No aniversário do Guanabara, aprende-se rápido que o choque repetido do eixo inferior de metal do carrinho com o osso maléolo lateral pode provocar dores excruciantes.
Apesar do clima de festa proposto pela rede, com balões coloridos pendurados por todo o teto, só quem parecia estar contente ali dentro era a imagem sorridente de Ivete Sangalo, estampada nos encartes que anunciavam sorteios de casas e prêmios em dinheiro. Os funcionários encaravam a multidão com desânimo. Uma operadora de caixa lançou um olhar aborrecido sobre a imensa fila que se esticava em sua direção.
As filhas de Santos logo correram para tentar garantir sacos de arroz e de feijão. A mãe, por sua vez, tinha outro objetivo em mente. Com suas perninhas curtas, disparou para a sessão de higiene, batendo os chinelinhos de borracha pelo piso liso, frio e escorregadio. Com destreza, retirou rápido das prateleiras mais de trinta pacotes de fraldas, de diferentes tamanhos. A mercadoria foi suficiente para, sozinha, encher um carrinho. Santos explicou que recebera, dias antes, a notícia de que ia ser avó, e comentou, entre contente e apreensiva: “Minha filha está grávida de três meses. É capaz de meu neto nascer e essa crise não ter acabado.”
A multidão que se movia lentamente, em filas confusas por entre as gôndolas – carregando pacotes com vários quilos de açúcar e embalagens gigantes de papel higiênico na cabeça –, lembrava um grande formigueiro. O segurança do supermercado espichou os olhos sobre a multidão e perguntou ao colega que vigiava o setor de limpeza: “O país não está em crise?”
Enquanto tentava ajeitar produtos no carrinho, Santos calculava o quanto poderia economizar com aquele sacrifício todo. Ela é monitora de transporte escolar. O marido é taxista. Juntos gastam cerca de mil reais por mês em compras de supermercado. Pretendia aproveitar as promoções para garantir a despensa dos próximos dois meses: “Quero estocar, mesmo. Os preços não param de aumentar.”
Na fila de um dos caixas, onde a família passaria as próximas duas horas e meia, uma moça de voz estridente batia o pé no chão com impaciência. Reclamava que a carne vermelha não estava na promoção, e continuava cara. Um homem grisalho ergueu a voz: “A culpa dessa crise toda, você sabe de quem é? É da Dilma”, garantiu, para quem quisesse ouvir, enquanto se apoiava num carrinho cheio de latas de cerveja. Santos aproveitou a deixa e comentou que nunca tinha visto uma crise como esta. Dois carrinhos adiante, o aposentado Hélio dos Santos, um homem negro de 65 anos, fala mansa e pausada, se apressou em corrigi-la. Lembrou os tempos “mais duros” da hiperinflação, nos anos 80. “Hoje a gente percebe a mudança dos preços a cada dois meses”, disse. “Naquela época, era instantânea. A inflação era galopante na época do cruzeiro. Do cruzado. Cruzeiro real.”
A fila quase não andava. O ar-condicionado não dava vazão. Pelos alto-falantes, um locutor anunciou, com voz anasalada: “Pode chegar! Tem pra todo mundo. Não precisa brigar. Aqui é igual a Black Friday, só que no Rio.” Um homem tentou furar a fila e foi forçado a se retirar, aos gritos de “safado” e de “malandro”.
Quase à boca do caixa, Luciana Santos fez os cálculos. Só as fraldas custaram cerca de 300 reais. A lista de compras com os demais produtos para a família saiu por 877 reais, menos da metade do que normalmente gastaria por dois meses de mantimentos. Passava do meio-dia quando afinal mãe, filhas e vizinha puderam ir embora. Ainda foi possível ouvir o locutor, com a voz arrastada, anunciar: “Pode chegar! Pode chegar! A gente vai repor cerveja na promoção!” Filas de pessoas continuavam a entrar e se juntar ao formigueiro humano. Segundo a rede, 1 milhão de consumidores foram às suas lojas naquele dia – um aumento de 20% em relação ao ano anterior. Nunca tanta gente tinha feito compras no supermercado mais popular do Rio.
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