O menino que veio da China e gostava de fotografia e marcenaria FOTO: ÁLBUM DE FAMÍLIA
Acabou a gargalhada
Adam Sun, o sino-brasileiro que definiu a checagem e traduziu Sun Tzu
| Edição 26, Novembro 2008
O gesto mais marcante de Adam Sun era a gargalhada. Ele não sorria nem ria, gargalhava – gargalhava com a garganta, fazendo um baita barulho, distendendo a expressão do rosto, agitando os braços longos e finos, sacudindo o corpo todo, tentando tocar e, se desse, abraçar o interlocutor.
Adam Sun gargalhava, alto e demoradamente, a propósito de quase nada. Se alguém lhe repetisse, pela bilionésima vez, o infame trocadilho cartesiano Cogito adam sum, ele gargalhava como se estivesse ouvindo a gracinha pela primeira vez, como se a expressão nunca lhe tivesse passado pelo espírito. Não fazia isso por educação, e sim por pura alegria.
Como Adam gargalhava com freqüência, era impossível não percebê-lo. Além do mais, era um chinês irreverente e inquieto, que media quase 2 metros e falava com sotaque. Cabe o clichê: quando ele chegava, era uma barulheira, uma festa.
E, no entanto, Adam era discretíssimo em relação a si mesmo. Até quem o conhecia há mais de trinta anos pouco sabia dele. Quase não falava de si, não contava nada da sua vida e nunca foi visto se queixando do que quer que fosse. Em contrapartida, era um perguntador astuto: Como vão as coisas? Está difícil? E o que você vai fazer? Ele incentivava o outro a falar. Não porque fosse bisbilhoteiro. E sim porque se interessava pelos outros, intuía que as pessoas se sentiriam melhor ao falarem de si mesmas.
Os pais de Adam nasceram no norte da China e estudaram em Pequim. Em 1949, se mudaram para Taiwan, seguindo o governo nacionalista, derrotado pelo Exército Popular de Libertação de Mao Tse-tung. Lá tiveram três filhos. Adam, o caçula, nasceu em 1953. Quando ele tinha nove anos, a família emigrou. Desembarcaram no porto de Santos em 1962, subiram a serra e se estabeleceram no bairro paulistano da Saúde.
Adam só estudou em escolas públicas. Primeiro no grupo escolar Princesa Isabel, depois no Pedro II e por fim na Universidade de São Paulo. Sem fazer curso preparatório, prestou quatro vestibulares para a USP, em anos diferentes, e foi aprovado em todos. Cursou meses de engenharia e letras, não gostou, saiu, e formou-se em psicologia e jornalismo. Não que fosse de estudar muito. Lia sem parar, isso sim, e tinha uma enorme capacidade de armazenar dados de memória.
Na agitação política dos anos 70, Adam militou numa tendência estudantil influenciada pelo trotskismo. Mas, assim como conquistara sua independência para ser socialista numa família que escapara do PC da China, manteve-se independente em relação aos trotskistas.
No começo dos anos 80, ele largou um bom emprego no Estado de S. Paulo e foi para a República Popular da China. Passou um ano lá, num período de grande penúria, ajudando os avós paternos. Ganhou a vida como revisor da versão em português da revista oficial do país China em Construção e como auxiliar do escritor Gerardo Mello Mourão, que era correspondente da Folha de S.Paulo na capital chinesa.
Como o Brasil ainda não tinha embaixada em Pequim, Adam serviu de intérprete para o chanceler Mário Gibson Barboza, inclusive num jantar oficial oferecido ao ministro brasileiro pelo premiê Deng Xiaoping.
De volta a São Paulo, empregou-se na Veja como checador. A função era recente e rara, e Adam contribuiu muito para defini-la e incrementá-la. A checagem é um ofício paradoxal: se bem-feito, ele não aparece. Cabe ao checador conferir todas as informações aferíveis numa reportagem, artigo ou ensaio. Ele verifica grafias, datas, distâncias, cálculos e citações por meio de outras fontes, escritas ou não. Além disso, também afere a lógica interna de certos dados, ou do cruzamento de dados. Uma pessoa não pode sair de Maceió, por exemplo, e chegar ao Rio uma hora depois. Um homem não pode medir três metros de altura; 1 milhão de reais não equivale a 2 milhões de euros.
Em Veja, os checadores trabalhavam sobretudo de madrugada, conferindo as últimas reportagens antes de serem enviadas para a gráfica. Adam logo se destacou e foi promovido a chefe do setor. A ele cabia a conferência das reportagens mais sensíveis, justamente as feitas na última hora, com maior possibilidade de conterem erros.
Nessas horas, Adam não gargalhava. Nem falava, quase. Trabalhando contra o tempo, velozmente, compulsava, quieto e concentradíssimo, enciclopédias, almanaques, dicionários, recortes de jornais e revistas, cadernos de anotações de repórteres. Não havia ainda a internet, e tudo tinha que ser checado em papel, manualmente.
Adam salvou Veja de erros colossais e ridículos. Salvou também Época, na qual trabalhou como chefe da checagem. E, por fim, salvou piauí, para a qual foi um dos primeiros contratados, e onde trabalhou desde a primeira edição. Viajava de São Paulo para a redação, no Rio, todos os meses. Sua chegada era uma festa.
Há cerca de dois anos, incômodos na região do abdômen o levaram ao médico, que diagnosticou gastrite. Por quatro meses, Adam tratou-a em vão, perdendo um tempo vital. Como não melhorasse, procurou um oncologista, que lhe prescreveu os exames de praxe. Assim que os recebeu, o médico telefonou para Adam e disse que ele precisava ser operado já no dia seguinte, para extrair um tumor maligno do duodeno. Feita a cirurgia, veio o prognóstico: 6% de chance de sobrevivência.
Não contou nada disso aos familiares, aos amigos e aos colegas. Continuou com a vida de sempre, na medida do possível. Como jornalista, manteve seu total empenho como checador e foi também repórter, tendo publicado histórias sobre a colônia chinesa em São Paulo na seção Esquina. Como tradutor, fez a primeira recriação do original para o português de A Arte da Guerra, de Sun Tzu, e a versão em quadrinhos Jornada ao Oeste, de Wu Cheng’en, outro clássico da literatura chinesa (ambos publicados pela editora Conrad). Como amador, prosseguiu suas atividades de fotógrafo e marceneiro. O quanto pôde, poupou sua mulher Elvira e seu filho André.
Insistiu em continuar trabalhando, mesmo durante as três quimioterapias que o depauperaram. Não falava sobre a doença. Quando perguntado, dava um jeito de enrolar e mudar de assunto. No máximo, dizia que estava melhorando. Internado, recomendou que os amigos não o visitassem. Que aguardassem a sua volta para casa. Mas ele não voltou.
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