Tragédia: “Mãe, você diz, isso vai passar! Ela ergue a cabeça. É um rosto diferente de horror, é o rosto de uma mãe. Desta vez escorrem lágrimas fáceis, lágrimas diluídas em lágrimas” CRÉDITO: CHRISTIANO MASCARO_2022
Acidentes
Neste dia você verá inúmeros rostos de horror, menos o seu
Thiago Camelo | Edição 193, Outubro 2022
Um homem vem em sua direção. Você está amparando sua mãe. O homem pergunta se vocês são parentes do rapaz que morreu. Quando você se prepara para responder, sua mãe se adianta de modo surpreendentemente calmo. Obviamente existe um descompasso entre o que de fato está sentindo e o modo como soa sua voz. Sim, ela diz.
Quantos anos tinha?, ele insiste, e só agora você repara o sotaque levemente francês no português do homem, e olha a roupa dele. Nenhum carioca se vestiria dessa forma, você tem força para pensar, um coadjuvante de algum filme praiano francês – camiseta listrada à Picasso, short jeans dobrado e grudado nas pernas, mocassins e uma maneira inusitada e fluida, evidentemente estrangeira, de se movimentar junto com a indumentária.
Quarenta e um anos, sua mãe responde, lúcida como quem informa a melhor linha de ônibus.
Minha idade, diz o homem. Meu Deus, minha idade, repete incrédulo. Eu estava tomando café da manhã, continua ele (agora esticando mais as vogais), achei que fosse uma mochila caindo…
Durante o impraticável diálogo, você percebe seu pai ao lado. Tem a impressão de que ele mede a cena toda sem saber muito bem o que fazer. De uma hora para outra, no entanto, faz o que você deveria ter feito. Tira sua mãe dali.
O homem, como todos os estranhos e conhecidos que chegam à entrada do apart-hotel em Copacabana, tentava, de um modo torto e impossível, consolar. Eram dez e meia da manhã, e seu irmão mais velho, por volta das sete, tinha se jogado da janela do sétimo andar. Hoje, a impressão do francês o intimida: durante o café, o que de fato ele viu ou ouviu? Você nunca concluiu se ele – entre ovos mexidos e a promessa de um dia de céu azul tropical – confundiu o vulto do corpo do seu irmão com uma mochila ou, a outra hipótese, se escutou o barulho do corpo contra o chão de terra e achou ser o de uma mochila se esparramando no solo.
Seu irmão do meio disse, dias depois, acreditar que o irmão de vocês talvez não tivesse se matado caso o apartamento desse para a rua, para o asfalto seco, para as pedras portuguesas, para as pessoas andando na calçada. Ele supõe que a terra fofa do terreno baldio fez um convite, uma promessa acolhedora.
Por alguma razão, você acredita que se estivesse chovendo – se não fosse o Sol escaldante do começo de janeiro – não haveria impulso. O Sol brilhou errado, como num acidente. Desde então, você pensa que todo suicídio é em parte um acidente.
Quando tinha 14 anos, você estava na casa de um amigo. Já era tarde. Jogavam a milésima partida de Fifa 94 e, concentrados, não se preocuparam em descobrir a procedência daquele estrondo na rua. Bons minutos se passaram até que o irmão desse amigo, um pouco mais velho, chamasse: uma mulher tinha se jogado do prédio. Não é possível, você pensou, o barulho foi muito alto, nunca seria o som de um corpo caindo. Era o barulho de um raio próximo, estourando no mar ou num para-raios mal-ajambrado, ou então, claro, era um transformador de poste explodindo. O barulho clássico de um transformador de poste explodindo. Era isso. O irmão insistiu então, vem, vem ver na varanda. A mulher tá lá no chão ainda, vejam. Você não queria olhar, mas acabou esticando a cabeça por sobre a grade da varanda. Teve sorte. Na época, era um míope com vergonha de usar óculos. Enxergou um borrão que poderia ser qualquer coisa. O irmão, no entanto, descreveu em detalhes o corpo deformado. Aparentemente, a filha encontrara uma maneira de pôr fim às discussões intermináveis com a mãe.
O som de alguém se deformando. Você nunca vai esquecer.
No seu sono leve, você acorda exaltado com duzentos ruídos diferentes, mas um em especial é sempre desesperador: o toque padrão do iPhone. Em todos os dias de sua vida, foi alarme falso. Ou a urgência não condizia com a dor e a rigidez com que você abria os olhos. Desta vez, contudo, é o nome do seu pai na tela do telefone, e são sete e meia da manhã. Antes de atender, você pensa em sua avó, ela está doente, pode ter acontecido alguma coisa com ela, mas quando desliza o dedo para autorizar a chamada, no átimo antes de colocar o telefone no ouvido, você sabe. Você sabe.
Acabou, acabou, seu irmão acabou com tudo, seu irmão acabou com tudo, diz seu pai, e você sente do outro lado da linha não exatamente uma voz trêmula, mas um corpo e a indomável onda de dor (e tremor) que atravessa esse corpo. Seu pai foi o primeiro a chegar ao apart-hotel. Até hoje você não sabe quem o avisou, quem fez a ligação que agora ele faz a você. Claro que você não conjectura isso enquanto fala com seu pai; você só pede, calma, calma, e diz que está saindo, pergunta por sua mãe, e diz que já está saindo. Sua mulher está de pé, com rosto de choro sem lágrimas, você nunca tinha visto um rosto assim, um rosto seco de terror, todos os músculos da face comprimidos por um sentimento. Você desliga o telefone, ainda não teve tempo para sentir, de modo que o terror no rosto de sua mulher é seu primeiro guia – o que sentir agora? Como me portar? O que faço comigo, com ela, com meu corpo? Ela diz, não, não, não! Você se agacha, fica quase de cócoras, posição terrível para seus joelhos fracos, tenta achar seus próprios sentidos para além do assombro, do pânico original, mas tudo está anestesiado, como se o manto que lhe confere emoção estivesse coagido, aprisionado num bunker de um oceano abissal. A própria consciência dessa catatonia e a visão do frêmito que sua mulher parece sentir em todo o corpo são os seus expedientes para o mundo externo, e é nisso que você se ampara para escalar o abismo e conseguir pensar em seus pais. Meus pais, meus pais! Você pede calma à sua mulher. Meus pais, você diz. Põe uma roupa, você diz. Você consegue pensar em tudo o que pode ser necessário para os próximos dias, dias nos quais provavelmente não dormirá em casa. Você vai precisar do antidepressivo, do calmante, do remédio para a pressão, para a alergia, duas camisetas, duas cuecas, dois pares de meias, escova de dente. Você precisa deixar comida e água para o gato. Fechar as janelas. Faz muito Sol, mas você tem que se precaver. Você experimenta um estado de alerta e um senso de responsabilidade inéditos. Você também não sabe quem fez a ligação ao seu irmão do meio, que talvez neste exato momento esteja comprando uma passagem de avião. Até ele chegar, você é o único filho. Sua mulher está pronta. Ela se recompôs, e vocês aparentam estar na mesma frequência. No elevador, vocês se abraçam instintivamente, você sente a força dela e espera que ela sinta a sua; o único barulho é o das roldanas trabalhando na casa de máquinas: vocês descem os sete andares abraçados.
De sua casa ao apart-hotel, de Botafogo a Copacabana, são quinze minutos. Há pouco trânsito, é a primeira semana do ano. O táxi pode fazer dois caminhos: Praia de Botafogo → Túnel Novo → Barata Ribeiro → destino ou Botafogo → Túnel Velho → Santa Clara → destino. Em geral, você deixa o motorista escolher. Num tipo de diversão aleatória, você divide o mundo entre aqueles que vão para Copacabana pelo Túnel Novo e aqueles que vão pelo Túnel Velho. O mundo também se divide entre destros e canhotos. Míopes e hipermetropes. Entre quem usa e não usa camisa de time de futebol; boné; tênis esportivo; calça justa. Sabe e não sabe soltar o guidão da bicicleta. Compra banana madura ou compra banana verde. Quem já ficou de fato deprimido ou nunca passou por algo parecido. A lista é infinita. Você é Túnel Velho, canhoto, míope; raramente usa camisa de futebol, às vezes usa tênis esportivo, nunca usa boné, nunca usa calça justa. Mal sabe andar de bicicleta. Prefere comprar banana madura. Já ficou deprimido seriamente mais de uma vez. Sua mulher nunca passou por algo parecido e, até conhecer você, seu irmão, enfim, sua família, nunca havia lidado com “esse tipo de questão”.
Nos meses anteriores à morte de seu irmão, dentro das expectativas da psiquiatra e dentro de suas próprias expectativas, você está bem, toma os remédios sem reclamar, está finalizando o terceiro livro; está, no pacto selado consigo mesmo e com a psiquiatra, “minimamente ativo” – há anos a vida não é exatamente fácil, não é exatamente prática, nem funcional, nem extremamente produtiva, mas aquele é um bom período. Você sempre achou que o importante é estar à disposição da vida. A psiquiatra diria que “à disposição da vida” é uma postura passiva. O mais correto seria “dialogar com a vida”. Você então está dialogando com a vida, e o livro que está escrevendo é o maior reflexo disso.
Você sabe que agora é só esperar passarem algumas datas, talvez o Ano-Novo, talvez o Carnaval, para mais uma tentativa de descontinuar o remédio. Geralmente, comunicar essa vontade a alguém é motivo de preocupação e alguma discussão. Então você aguarda mais um pouco. Não precisa ser agora, você pensa. Vou esperar pelo menos os aniversários.
O taxista pega o Túnel Velho. Passa pelo Cemitério São João Batista, lugar em que – você ainda não sabe – seu irmão será enterrado no dia seguinte. Você passará pelo São João Batista ao longo dos anos e beijará por cinco vezes o pingente que sua avó vai lhe dar pouco antes de morrer. Sua avó era muito ligada a seu irmão, e o seu irmão a ela. Ele acreditava em Deus, assim como ela. É o meu único neto que tem fé, dizia. Ela vai morrer seis meses depois do seu irmão, e será enterrada no mesmo cemitério. Na família há quem diga que ela morreu de desgosto, há quem diga que ela sobreviveu mais alguns meses à grave doença para ficar ao lado da filha. Em meio ao caos, uma pequena conferência – entre primos, filhos, irmãos, netos, bisnetos, noras e genros – decidiu que o melhor a fazer seria ligar para o médico dela e perguntar como dar a notícia. O médico concordou que não teria como esconder a morte do neto mais próximo, mas seria importante contar com cuidado.
Como contar com cuidado uma tragédia dessas?
Você não sabe ao certo como a notícia foi transmitida, mas, quando esteve com sua avó, já noite alta, ela pareceu serena e resignada, e talvez naquele momento todos tenham percebido que a mulher mais velha da família estava mais próxima da morte do que supunham. Por baixo da camada de solidez inquebrantável se desvelava uma mulher muito cansada, que, talvez por escolha (ou por falta de escolha), deixaria escapar o fio de lucidez que a mantinha a par das coisas do mundo. Nos meses seguintes, os sentidos de sua avó foram se desligando como as luzes dos cômodos da casa à noite – até que numa manhã de julho ela entrou em coma, a pressão caiu lenta e constantemente, uma contagem regressiva até zero. A segunda morte que você iria acompanhar naquele ano. A primeira morte de verdade, você disse a um amigo.
O táxi entra na rua do apart-hotel. Você e sua mulher estão de mãos dadas e calados, e você não sabe dizer ao certo no que está pensando, para além do fato de que precisa ser forte, precisa acolher seus pais, precisa ser um bom filho. Apesar de você ter certeza de que não falou nada, o taxista parece saber da tragédia e acelera, fura os sinais. Será que entre todas as histórias de taxista há aquela do irmão do rapaz que se matou? Você pede que sua mulher pague a corrida e abre a porta do carro ainda em movimento. Sua mãe é uma senhora de 66 anos, ombros largos, cabelos louros esbranquiçados, olhos verde-escuros, um rosto bonito e simples, nem comprido nem arredondado, de poucas rugas apesar da falta de cuidado; esse rosto está escondido entre as pernas; ela está sentada, vergada sobre o meio-fio da rua, cabelo escorrendo pelos joelhos, quase tocando o chão de pedras portuguesas. Sua mãe está fechada, esférica. Você corre na direção dela. Mãe, você diz, mãe, tá tudo bem, isso vai passar, tá tudo bem, isso vai passar! Ela levanta a cabeça, e você vê, no mesmo dia, o segundo rosto de horror. É um rosto diferente de horror, é o rosto de uma mãe. Desta vez escorrem lágrimas fáceis, translúcidas, lágrimas diluídas em lágrimas. Neste dia você verá inúmeros rostos de horror. Menos o seu. Você não conhece a feição do seu rosto de horror.
O sofá creme da recepção do apart-hotel se tornou um pequeno feudo de sua família. O francês já se afastou, assim como os demais curiosos. Mesmo que alguns lugares ainda estejam disponíveis, ninguém chega perto – é um tipo de tristeza radioativa, contagiosa, e o sofá é o epicentro da moléstia. A recepção funciona normalmente. Hóspedes saem e entram sozinhos, de mãos dadas, com filhos felizes ou rabugentos, que demandam na voz ou apenas no olhar alguma concessão. A vida ali embaixo ainda está começando. Você está sentado no carpete cinza padrão, no chão, o que costuma fazer quando precisa se concentrar ou se acalmar. Fosse outro dia, funcionários já teriam chamado a sua atenção; hoje, nenhum deles vai se aproximar, se envolver, correr o risco de ser sugado por algum vórtice que não o criado pela felicidade ingênua dos turistas que não param de ir e vir. É uma felicidade fácil de ignorar. Àquela tristeza no sofá diante deles, contudo, não dá para ser indiferente, então o melhor é não interagir. Hum. Talvez seja mais do que isso. O modo como esses funcionários se protegem sugere conhecimento prévio, como se já tivessem passado por situação análoga. Talvez não seja a primeira experiência com suicídio, você pensa; quem sabe na primeira vez eles tenham se envolvido, condoído, ajudado e percebido que não dá, simplesmente não dá, é demais para apenas mais um dia de trabalho, é demais para mais um dia ensolarado.
Dois policiais entram na recepção. Procuram pelos responsáveis, alguém que responda pelo “óbito”. É meu irmão, mas talvez vocês queiram falar com o meu pai, você diz. Seu pai está junto ao corpo do seu irmão desde cedo, e de meia em meia hora volta à recepção, conversa um pouco com alguém da família, evitando cruzar olhares com você e com sua mãe. Seu pai fuma dentro do apart-hotel, mas ninguém reclama. Ele está obviamente triste, mas você o esperava pior, inconsolável. Não é que ele esteja atônito, como sua mãe diante do francês.
Não.
Ele simplesmente não está desesperado, o que soa estranho à primeira vista, mas logo você entende: como sempre, seu pai está numa missão, e a missão de hoje, por mais impossível que pareça, é a de zelar pelo corpo do filho. É ele quem lida com os policiais, com os bombeiros, com a defesa civil… Você não sabe muito bem quantos órgãos competentes se envolvem no caso de alguém tirar a própria vida numa manhã de sexta-feira. Seu pai sim, seu pai, além de todo o conhecimento que adquiriu ao longo da vida de comerciante – toda sorte de trâmites burocráticos num país que é pródigo no assunto –, agora também saberia explicar o passo a passo hierárquico e funcional para tratar do corpo e do recolhimento do corpo de alguém que se matou. Como um soldado obstinado, ciente de sua causa e crente em seu sacrifício, ele já subiu até o apartamento. Não mexeu muito, mas fez pequenas arrumações na cama, na pia e no banheiro, de modo a emprestar certa dignidade ao lugar e a quem lá viveu no último ano: seu filho e, quase sempre, um cuidador, isto é, uma espécie de enfermeiro, incentivador motivacional e vigia, um vigia que não atinou para o humor de seu cliente pela manhã, deixando-o sozinho e insone num quarto do sétimo andar. Você não o culpa, apesar de ele nunca, você pensa, nunca ter pedido desculpa. Esse sentimento é ambíguo: um pedido de desculpa seria o caminho natural, obrigatório, você pensa; o mesmo pedido, no entanto, sugeriria um culpado e tiraria o caráter acidental da morte, percepção afetiva que até hoje você revisita quando a dor ou a saudade chegam. Um acidente, afinal, acontece com qualquer pessoa, com você (desesperadamente triste), com os turistas (desesperadamente radiantes), com os atendentes (desesperadamente neutros), com gente acostumada a nada e a tudo. Um acidente faz parte da sopa de caos na qual todos estão boiando desde que foram concebidos, do caldo no qual cresceram e tentam, com mais ou menos sucesso, sobreviver.
Trecho do livro Dia Um, a ser lançado em novembro pela Companhia das Letras.
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