Os sargentos Laci Marinho de Araújo e Fernando Alcântara de Figueiredo travam uma luta desigual contra a instituição. Após vitória na Justiça Militar, em janeiro, a comemoração ressentida: "O Exército teve que se dobrar diante de nós" FOTO: KAZUOU OKUBO_2012
Acossados
Abusos, homofobia e desvio de dinheiro dentro do Exército se misturam na história da perseguição aos sargentos que revelaram ser um casal em 2008
Consuelo Dieguez | Edição 66, Março 2012
O sargento Laci Marinho de Araújo se olhou no espelho e conferiu a farda mais uma vez. A calça verde-oliva e a camisa cáqui estavam impecavelmente passadas; os sapatos, cuidadosamente lustrados. Ele ajeitou o quepe sobre os cabelos pretos, cortados rente à cabeça e modelados com gel, e comprimiu os lábios um no outro para fixar o protetor labial de brilho avermelhado. Pegou na penteadeira o anel de prata com a inscrição “Todos os deuses estão comigo”, mantra que repete quando se sente acuado, e colocou-o no dedo médio. Faltava uma hora para o início do seu julgamento, marcado para as nove da manhã de segunda-feira, 23 de janeiro. Ao seu lado, o sargento licenciado Fernando Alcântara de Figueiredo também verificou a indumentária. Alisou as mangas do terno preto de risca de giz sobre a camisa branca e a gravata preta. Pouco depois, embarcaram num Ford Fiesta preto, com Fernando ao volante, e deixaram o prédio onde moram, na Asa Norte, em Brasília, numa quadra exclusiva para cabos, sargentos e seus familiares. Laci ironizou, numa inflexão arrastada: “Vamos para o Tribunal do Santo Ofício.” Fernando soltou um riso nervoso e rumou para a Auditoria Militar.
A Auditoria funciona em um prédio branco, no Setor de Autarquias Sul. Até pouco tempo, ocupava o 8º andar do Superior Tribunal Militar, o STM, mas agora ganhou sede própria. É ali que são julgados, em primeira instância, crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas, antes de seguirem para o STM.
Ao chegarem, os sargentos foram saudados pelos funcionários civis que atendem na recepção. Uma mulher loura, com uma garrafa térmica na mão, ofereceu café e, sem se dar conta da gravidade da situação, foi efusiva. “Que bom ter vocês aqui”, disse. Era a primeira vez que os dois entravam no novo prédio, embora tenham perdido a conta de quantas vezes Laci foi levado à antiga sede da Auditoria. Sempre que isso aconteceu, Fernando esteve ao seu lado.
O sargento Laci Marinho de Araújo responde a vários processos. O julgamento daquele dia era por crime de injúria. Em 2008, ele acusou a procuradora militar Cláudia Rocha Lamas de acobertar um esquema de corrupção no Hospital Geral de Brasília, o HGeB, administrado pelo Exército, e ela o processou.
Uma recepcionista levou-os até o elevador, que desceu para o subsolo. Ali funciona o plenário do tribunal. Os dois foram conduzidos por um militar até uma sala com pé-direito de quase 3 metros, iluminada por luz fria, com uma pequena abertura gradeada no alto da parede. Havia umas poucas cadeiras de plástico no lugar. Laci provocou: “O que é isso? Estamos nos porões da ditadura?” O militar fingiu não ouvir. Pouco antes das nove, Marcio Palma, advogado do sargento, entrou na sala. Tinha o semblante preocupado. Falou pouco e avisou que seu cliente não assistiria ao julgamento. “É para o seu próprio bem”, disse. “Vamos evitar tumulto.”
Laci sentou-se no banco dos réus. Cinco juízes fardados, empertigados atrás de uma bancada de madeira clara, o observavam. Ele ficou presente apenas até a abertura da sessão. Em julgamentos anteriores, ao ouvir as acusações, Laci se descontrolou e reagiu aos gritos, sendo retirado algemado do tribunal. O julgamento daquele dia foi rápido. Por unanimidade, o sargento foi absolvido. Os juízes disseram não haver provas de que ele queria realmente ofender a procuradora. Aceitaram a tese da defesa, de que, ao afrontá-la, Laci estava em situação de grande estresse.
Os dois sargentos deixaram a Auditoria aliviados, mas não eufóricos. No carro, Laci disse, num tom ressentido: “O Exército teve que se dobrar diante de nós.” Pararam numa confeitaria em um shopping perto dali. Enquanto tomavam café, disseram estar muito cansados da disputa que travam há seis anos com a instituição. Laci passou a mão na cabeça e desabafou. “Tudo o que eu quero é que esse inferno acabe logo.”
O sargento Laci Marinho de Araújo tem 39 anos. É magro, tem o rosto pálido, cabelos e olhos negros. Nasceu em Natal, numa família de três irmãos. Um deles é padre. Foram criados pela mãe. O pai, muito ligado aos filhos, foi assassinado quando ele era criança. Fernando Alcântara, com 38 anos, tem 1,67 metro e músculos definidos em academia de ginástica. Nasceu no Recife, foi criado, junto com o irmão caçula, por uma mãe submissa e um pai severo. Laci e Fernando – é assim que se chamam – se conheceram em 1995, em Brasília, para onde foram transferidos, recém-saídos de escolas de formação de sargentos. Durante dois anos serviram juntos no Batalhão da Guarda Presidencial. Em 1997, engataram um relacionamento e decidiram morar juntos sem, contudo, assumir publicamente a condição de casal homossexual. Temiam que isso inviabilizasse suas carreiras. Laci formou uma banda, onde se apresentava como cover da cantora Cássia Eller. O grupo tocava em bares da capital federal. Ele fazia sucesso e chegou a se apresentar para o próprio Exército. Recebeu de seus pares o apelido de sargento Cássia Eller. Nessa época, Fernando começou a estudar direito.
Os dois levavam uma vida tranquila – gostavam do Exército e o Exército gostava deles. Acumulavam diplomas da Medalha Militar, uma honraria concedida aos que se destacam. Em 2005, Fernando teve seu comportamento avaliado como “excepcional”. Em 2006, foi a vez de Laci receber a mesma distinção. Só uma coisa não ia bem. Desde 2003, Laci enfrentava problemas de saúde. Queixava-se de tontura, dor de cabeça, enjoo, prostração. Às vezes não conseguia se levantar da cama. As crises se intensificaram sem que se chegasse a um diagnóstico e, por causa da saúde precária, ele foi transferido de função, passando a trabalhar no Hospital Geral de Brasília. Fernando já trabalhava lá desde 1998. Era um dos gerentes do Fundo de Saúde do Exército – Fusex –, o plano de saúde dos militares. Entre outras atribuições, cabia a ele autorizar procedimentos médicos.
Na confeitaria, Fernando, o mais articulado dos dois, fez o relato de como a relação deles com o Exército começou a deteriorar. No Fusex, ele tinha um limite de 8 mil reais para autorização de cirurgias. Qualquer valor acima disso tinha que passar pelo crivo do então diretor do hospital, coronel Roberto Henrique Guedes Faria. Em 2006, Fernando percebeu que os custos dos materiais médicos para as cirurgias começaram a chegar com valores muito acima dos que eram pagos por outros hospitais militares, o que encarecia os procedimentos. Procurou o diretor e o alertou do que estava ocorrendo. Ouviu de volta que providências seriam tomadas. Depois disso, Fernando chegou a ver um representante da empresa brasiliense Medical Shop, fornecedora de material para as cirurgias, na sala do diretor, junto com outro oficial, examinando os processos de internação. Logo a seguir o sargento foi transferido para o setor de relações públicas do hospital.
Nesse mesmo período, houve uma festa para os militares e seus familiares. Laci e Fernando compareceram com roupas informais, que destoavam dos trajes do resto da tropa, o que lhes custou uma punição por indisciplina. “Não havia nada de mais com as nossas roupas. Estávamos usando jeans e camisetas justas”, disse Fernando. Logo surgiram comentários de que eles eram homossexuais. Quando passavam pelo corredor do hospital, os colegas diziam coisas do tipo: “E aí, com que roupa vocês estavam, branca de bolinhas coloridas?”
Depois desses dois episódios, começaram as perseguições, disse Fernando. “Tudo era motivo para punição”, contou. Acamado, Laci foi punido por não ter participado de um procedimento de instrução de soldados, apesar de ter um atestado médico. Fernando ficou preso durante quatro dias por ter errado o local de uma reunião que tinha com uma junta médica. “Essas faltas são colocadas no boletim e acabam com a vida profissional do militar”, disse.
No dia 13 de agosto de 2006, o Ministério Público Militar recebeu uma denúncia anônima de supostas irregularidades no Hospital Geral de Brasília. Elas estariam ocorrendo na compra de equipamentos e material descartável utilizados em cirurgias especiais. A denúncia dizia que “a empresa Medical Shop, de Brasília, que atua no ramo do fornecimento de próteses e artigos da área de ortopedia, é quem manda e desmanda naquele nosocômio, fornecendo 90% do material que entra na instituição, usando de formas ilícitas para ludibriar o poder público constituído, comprando agentes públicos federais, civis particulares, médicos e militares”.
Cerca de um mês depois, numa sexta-feira de setembro, Fernando e vários outros funcionários participaram de uma reunião no auditório do hospital com o então comandante da 11ª Região Militar em Brasília, general Adhemar da Costa Machado Filho. Ali, o general falou sobre a denúncia e criticou o denunciante. Não deu nomes, mas descreveu o sargento Fernando Alcântara. “Nosso inimigo está entre nós. Ele usa farda. Mora em apartamento do Exército. Faz curso de direito. Ele quer denegrir a nossa imagem.”
Fernando foi chamado pelo diretor do hospital e lhe disse que não fora ele o autor da denúncia. “Imagina se eu ia perder meu tempo com o Ministério Público Militar. Se eu tivesse que denunciar o Exército, ia procurar um órgão que efetivamente investigasse”, disse-me ele. O Ministério Público Militar, no entanto, determinou que fosse feita uma investigação e uma sindicância foi aberta para apurar as denúncias. Em outubro, surgiria o nome de um único suposto envolvido. O do subtenente Davi Reis Vieira de Azevedo, que trabalhava no Fusex.
Reis, como é conhecido no Exército, é moreno e atarracado. Mora no Setor Militar Urbano, em Brasília, numa casa branca e modesta, como as demais destinadas aos suboficiais. Na sala, destacam-se uma enorme tevê de LCD e um sofá roxo. Num final de tarde, em meados de janeiro, desabava uma tempestade sobre o Distrito Federal. De short e camiseta vermelhos, calçando sandálias de borracha, Reis parecia tenso. Esperava, para os próximos dias, sua expulsão do Exército, ao qual serviu durante 26 anos.
Ele contou que, em outubro de 2006, quando foi feita a sindicância, seu nome foi o único envolvido. “Eles precisavam dar satisfação ao Ministério Público Militar e me acusaram. Servi de bode expiatório”, disse. A suspeita recaiu sobre ele por indícios de enriquecimento ilícito. Tinha carro, moto e lancha, um restaurante e um box na chamada feira do Paraguai (um local em Brasília conhecido por vender produtos contrabandeados), bens incompatíveis com o rendimento de um subtenente, na faixa de 5 mil reais. “Eu tinha até mais coisas do que eles disseram, só que tinha como comprovar a minha renda”, justificou-se.
Nas horas vagas, Reis trabalhava na empresa de informática da qual é sócio. Quando foi chamado para depor, pediram que ele levasse uma cópia do Imposto de Renda. “Como sabia que iam me pegar para Cristo, levei os contratos da empresa, que comprovavam a minha renda.” Ouviu na saída que não deveria ficar preocupado. No dia 28 de dezembro, último dia útil daquele ano, Reis foi surpreendido com sua transferência do hospital para o Batalhão de Polícia do Exército. Ainda que tivesse renda para comprovar, ele estava em situação irregular. O regulamento das Forças Armadas proíbe que seus integrantes sejam sócios ou participem da administração de empresas.
Reis ajeitou-se no sofá e explicou sua situação. “Eu estava saindo do melhor lugar, tranquilo, confortável, onde fazia um trabalho criativo, para o pior lugar. Me colocaram num trabalho medíocre, para substituir um soldado.” Sua fala estava cheia de ressentimento. “Sempre trabalhei em postos que só aceitavam gente com conceito excepcional”, disse. Inconformado com a mudança, pediu autorização para falar com o general Adhemar Machado Filho. Conseguiu que a conversa fosse marcada e resolveu se precaver. Levou um gravador escondido. “Se houvesse algum desentendimento, ninguém iria acreditar em mim. Seria a minha palavra contra a dele.” Na reunião, Reis não conseguiu dissuadir o general da sua transferência. Mas o encontro entre os dois seria crucial para os sargentos Fernando Alcântara e Laci Araújo.
Em abril de 2007, Fernando recebeu um comunicado oficial de que seria transferido para São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Pouco depois, Laci, foi avisado de sua transferência para Osasco, em São Paulo. Os dois entraram em desespero. A angústia era ainda maior porque a saúde de Laci havia se deteriorado muito. Ele se submetera a vários exames e a neurologista Regina Caldeira, do Hospital das Forças Armadas, diagnosticara Laci como portador de esclerose múltipla. O diagnóstico o deixara deprimido. Ele e Fernando não acreditavam mais que a situação pudesse se reverter, quando, numa noite de maio de 2007, receberam um telefonema de um militar amigo. Dizia que um colega iria procurá-los para lhes entregar um documento muito importante. Dois dias depois, novo telefonema. Dessa vez, uma voz desconhecida marcava um encontro com eles às três da manhã, em frente a um bar, na Asa Norte. Os dois, armados, embarcaram no Ford Fiesta e foram ao local combinado. Esperaram mais de meia hora e nada. O telefone público tocou e foram atendê-lo. Era a mesma voz, dizendo que houvera um imprevisto e não poderia comparecer. Pediu que aguardassem novo contato. O prazo para a transferência dos dois estava correndo. Só um mês depois a mesma pessoa voltou a entrar em contato. Marcaram outro encontro, ao meio-dia do dia seguinte, no estacionamento da Academia de Tênis, um hotel afastado do Centro, hoje fechado. Na hora combinada, eles aguardaram no carro. Viram quando o subtenente Reis chegou sozinho em sua caminhonete.
Reis caminhou até eles, colocou o laptop sobre o capô do carro e deu uma ideia da bomba que tinha em mãos. Na conversa que haviam tido, o general Adhemar expunha sua decisão de transferir os sargentos e fazia comentários preconceituosos sobre a orientação sexual dos dois. Com o CD na mão, Reis lhes perguntou: “Isso interessa a vocês? Então façam bom uso. Inimigo de meu inimigo é meu amigo.” Já em casa com o CD da gravação, Laci e Fernando não acreditavam no que ouviam.
O diálogo entre Reis e o general começava com o subtenente se defendendo. “É um desgaste muito grande, general. As perguntas que me fazem são: ‘Porra, o que você fez? Você tá indo para a PE.’ Eu não fiz nada, eu tô me sentindo punido, general.” Adhemar se mostrava compreensivo. Em seguida, passou a atacar os dois sargentos, a quem responsabilizava pelas denúncias de corrupção. “Peraí, agora me diga uma coisa. Quem pôs o De Araújo e o Alcântara no hospital? Estão sacaneando todo mundo e nós deixamos? Peraí, um é viado, o outro é um viado que come viado, moram juntos, eu tenho como provar isso.” Inconformado, o general revela sua infrutífera tentativa de punir os dois sargentos. “Chamei lá o comandante do contingente e falei: ‘Me dá a ficha dos dois.’ Alcântara tem comportamento excepcional. Puta que pariu. Como vou jogá-lo num Conselho Disciplinar? Não tem como.” Reis concorda. O general continua: “O outro também tem comportamento excepcional. Estou querendo dar uma prisão, mas ele está em dispensa médica, não conseguem pegar o cara e nós ficamos reféns desses canalhas?”
Em outro trecho da gravação, Adhemar Machado Filho explica por que não podia fazer nada pelo subordinado. “A denúncia contra você é muito pesada. Eu, por mim, ficava na sindicância. Agora veio ordem para abrir um IPM (Inquérito Policial Militar). Estou relutando sob pressão. Eu não sei por que pegaram você.” E reclama mais uma vez da dificuldade de punir o sargento Laci Araújo. “Puta que pariu. Eu ainda não consegui pegar esse cara. Muito que eu quis. A gente manda o sindicante ir à casa do De Araújo e ele não abre a porta. No velho Exército, onde você começou a tua vida, a gente dava uma porrada, abria e pegava à força. Hoje não dá. Violação de domicílio.”
O general continua o seu desabafo com o subordinado, misturando assuntos. Reclama que Brasília “é foda”, diz que tudo é “muito complicado”. E conta que teve que atuar para abafar um caso de orgia com menores de idade envolvendo um taifeiro que trabalhava para um general quatro estrelas. “Eu fui pessoalmente ao apartamento. Estavam oito caras com quatro menores. E evitei que acontecesse um troço muito ruim para a família militar. Imagina se isso vaza para a imprensa. Isso é Brasília. O De Araújo está no apartamento, não recebe o sindicante como nos velhos tempos. Que saudade dos velhos tempos. Você metia o pé na porta e os caras estariam fora do apartamento.” Finalmente, revela ao subtenente sua decisão de transferir os dois sargentos. “Joga ele na Vila Militar do Rio de Janeiro. Vai morar na favela. Manda o marido dele para o Rio Grande do Sul. No que depender de mim, eu vou fazer.”
Pela primeira vez, a sorte parecia virar a favor dos sargentos. De posse da gravação, Fernando procurou o Ministério Público Federal. Foi encaminhado ao procurador regional dos Direitos do Cidadão do Distrito Federal, Wellington Divino Marques de Oliveira. Sentiu que podia finalmente confiar sua história a alguém. O procurador o ouviu em silêncio. Depois perguntou: “Isso está me parecendo preconceito, caso de homofobia, mas você tem que deixar as coisas claras para mim.” Fernando percebeu que precisava contar toda a verdade. “Eu quero abrir o jogo com o senhor. Sou homossexual. E o Laci também”, disse, constrangido. “Não foi fácil confessar para um heterossexual a nossa situação”, contou Fernando. Mas saiu aliviado com a promessa de que o caso seria investigado. O procurador encaminhou à Justiça uma ação pública pedindo a suspensão da transferência dos sargentos por se tratar de perseguição preconceituosa. O juiz acolheu o pedido. No dia 9 de outubro de 2007, concedeu liminar impedindo a transferência dos dois. O Exército apelou e o caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, que confirmou a decisão de manter os dois sargentos em Brasília. A denúncia de corrupção no hospital foi encaminhada para a Justiça Militar.
Poucos meses depois, no início de 2008, Fernando foi convocado pelo Ministério Público Militar para depor sobre o caso de corrupção no Hospital Geral de Brasília. Contou superficialmente o que sabia. “Não me abri muito porque não confio na Justiça Militar”, disse. Em março, ele foi novamente intimado. A procuradora Cláudia Rocha Lamas – “aquele demônio de saias”, como Fernando se refere a ela – queria ouvi-lo sobre as denúncias de corrupção. Chegando lá, Fernando se surpreendeu com o teor da conversa. Ela perguntou sobre a saúde do sargento Araújo e avisou que precisava ouvi-lo. “Eu achei aquilo estranho. O que a saúde do Laci tinha a ver com a corrupção no hospital?”, contou ele.
Como o companheiro de Fernando estava de cama, a procuradora decidiu tomar seu depoimento em casa. Quando chegou ao prédio, Fernando pediu que ela subisse acompanhada apenas de seus assessores. Insistiu para que não levasse médicos do HGeB nem militares porque Laci estava muito ansioso e deprimido. Quase não saía do quarto. Segundo Fernando, Cláudia Lamas disse que se não abrissem a porta ela iria processá-los. Subiu acompanhada de um médico militar e de uma escolta do Exército. Após conversar com Laci, a procuradora informou que ele teria que ser levado ao Hospital das Forças Armadas para comprovar a doença. E avisou que iria agendar a vinda de uma ambulância para buscá-lo. Quando saíram, Fernando decidiu: “Laci, isso é uma cilada, daqui você não sai.”
Poucos dias depois, uma junta médica de militares do Hospital Geral de Brasília – entre eles um ginecologista – chegou ao prédio dos sargentos, numa ambulância. Pediram para subir para ver Laci. Fernando não deixou. “Alguns dos médicos que estavam ali tinham sido apontados como participantes do esquema de desvios do hospital. Como poderíamos confiar neles?”, ele contaria depois. Começou um bate-boca na portaria do prédio. Fernando protestou: “Isso é forjado. Vocês estão aqui para desqualificar a doença do Laci.” Um dos médicos ligou para um general e pediu que ele entrasse em contato com a procuradora. Fernando virou-lhes as costas e disse que se eles subissem seriam recebidos à bala. Os médicos foram embora.
De volta ao apartamento, Fernando decidiu que o companheiro precisava ser atendido por um médico civil. Contatou a neurologista Candice Alvarenga Coelho, a quem Laci se refere como seu “anjo da guarda”. Na manhã do dia 21 de março de 2008, a doutora Candice chegou à casa dos sargentos. Laci falava descontroladamente, num quadro de extrema ansiedade. Contou que as crises de tontura haviam começado há cinco anos, associadas a náuseas, vômitos e fortes dores de cabeça. Nas crises mais fortes, ele ficava desorientado, ausente e desmemoriado. Caía muitas vezes, não sabendo dizer se era tontura ou desmaio. Também queixava-se de visão turva e de alteração do olfato. Sentia, frequentemente, um cheiro de mofo. Fazia uso de vários medicamentos: para vertigem, cefaleia, insônia, ansiedade e depressão. Mostrou o laudo da neurologista Regina Caldeira, que diagnosticara esclerose múltipla. Contou que piorara muito nos últimos dois anos e que, por causa da doença, deixara de fazer o que mais gostava: cantar.
A médica ficou com ele durante cinco horas. Estranhou o diagnóstico de esclerose múltipla e perguntou se ele tivera convulsões na infância. Laci lembrou que fizera uso de Gardenal, um anticonvulsivo. Numa conversa em fevereiro deste ano, a doutora Candice Coelho disse-me que saiu do apartamento praticamente convencida de que Laci sofria de epilepsia do lobo temporal, um tipo raro da doença, em que o doente não convulsiona. “Os sintomas não batiam com o diagnóstico de esclerose múltipla.” Outra coisa que lhe chamou a atenção foi que Laci não estava tomando qualquer medicação para esclerose múltipla. “O pior é que os remédios que ele tomava para depressão só agravavam o quadro da verdadeira doença, que era a epilepsia”, disse a médica. O uso de Gardenal na infância reforçou a convicção da neurologista de que o paciente tinha epilepsia. Ela deu a ele licença médica de trinta dias para que pudesse fazer novos exames.
Em abril de 2008, os sargentos receberam uma intimação para que Laci comparecesse ao Hospital das Forças Armadas. Caso não o fizesse, ele seria considerado desertor e começaria a contar o prazo de seu processo de expulsão do Exército. Fernando fez uma petição à instituição pedindo um tempo para que o companheiro realizasse seus exames. Não obteve resposta. Na semana seguinte, foi até a Justiça Militar e pediu para ver o processo de Laci. O secretário do cartório autorizou, desde que ele não tirasse cópia. Fernando leu o documento. Era um calhamaço assinado pela procuradora Cláudia Lamas. Pedia que Laci fosse enquadrado no artigo 187 do Código Militar – ou seja, deserção – e solicitava sua prisão imediata. Fernando correu para casa, contou o que havia lido e desceu até a garagem arrastando Laci apoiado nos ombros. Acomodou-o no carro e o levou até a casa de um amigo, em Valparaíso, uma cidade próxima a Brasília.
Dias depois, ao voltar para casa, após o expediente no hospital, encontrou a porta do apartamento arrombada e fixada com pregos. Ao entrar, viu tudo revirado. Móveis tinham sido quebrados, gavetas remexidas, o computador violado. Cinco mil reais que eles tinham guardados sumiram. O sargento sentou-se no chão e chorou muito. Soube pelo porteiro que mais de quinze militares haviam chegado de manhã, por volta das oito, logo depois de sua saída. Tinham a intenção de prender Laci. Como não o encontraram, quebraram o apartamento. Fernando foi dar queixa na delegacia. O delegado de plantão recusou-se a fazer a ocorrência alegando que não se envolveria com assuntos do Exército. O delegado que o rendeu no plantão não concordou com a decisão e enviou um perito ao apartamento para registrar a invasão. A ocorrência foi encaminhada à Justiça Militar e lá, arquivada.
Fernando procurou o novo diretor do hospital, coronel Antonio André Cortes Marques, responsável pela representação de deserção, e reclamou da invasão ao apartamento. Explicou que Laci não tinha condições de trabalhar. Ouviu a seguinte resposta: “Não interessa. Para nós, ele é desertor.” No dia seguinte, o coronel Marques mandou um sargento com uma equipe arrumar o apartamento. Fernando se enfurece ao recordar o episódio. “Um sargento me falou pelo interfone: ‘Alcântara, abre a porta, que o coronel mandou arrumar.’” Ele respondeu: “Vão para a puta que os pariu, aqui ninguém entra.”
O cerco do Exército sobre eles se fechava. Uma tarde, o amigo que abrigava Laci em sua casa ligou para Fernando assustado. Disse que um telejornal local tinha divulgado uma foto, apresentando Laci como doente mental perigoso e desaparecido, orientando as pessoas a denunciá-lo à polícia. Fernando deduziu que eles estavam sendo rastreados. Pegou o carro e foi buscar o companheiro. No apartamento, concluíram que só tinham uma saída: falar com a imprensa. Era uma sexta-feira, no final de maio. Fernando ligou para a revista. Atendeu o repórter Rodrigo Rangel, que já havia feito, alguns anos antes, uma reportagem sobre o sargento cover da Cássia Eller. Fernando contou rapidamente a história. Marcaram uma entrevista e, durante a conversa, o repórter perguntou se eles eram homossexuais. Preferiram dizer a verdade, com medo de que uma mentira desacreditasse toda a história. No fim de semana seguinte, domingo, 1º de junho, a revista publicava, em reportagem de capa, uma foto dos dois sargentos fardados e abraçados. Logo abaixo, a chamada: “Eles são do Exército. Eles são parceiros. Eles são gays. A história do primeiro casal de militares a assumir sua homossexualidade.”
Quando viram a revista, os dois se apavoraram. “Nunca imaginamos que sairíamos na capa. Foi um susto para nós”, contou Laci, no dia seguinte ao seu julgamento, mais descontraído, de bermuda xadrez e camiseta amarela, sentado em uma das poltronas de seu apartamento. A sala é decorada com um jogo de cadeiras de ferro pintadas de branco com almofadas vermelhas. Duas estantes brancas abrigam porta-retratos e imagens de seus santos padroeiros. O aparador de mármore tem uma fenda visível, resultado da invasão dos militares. Numa das paredes, há um pequeno quadro com uma oração de São Jorge. “Para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me enxerguem.”
Com a chegada da revista às bancas, o telefone deles não parou mais de tocar. As respectivas famílias não sabiam que eram gays. A notícia logo correu pela vizinhança da mãe de Laci, em Natal, e dos pais de Fernando, no Recife. A mãe de Laci, cardíaca, passou mal. A de Fernando ligou aos prantos. O pai se recusava a falar com o filho. Um tio saiu em sua defesa: “Francisco, o seu filho precisa ser muito macho para assumir para o Exército que é gay.” Na segunda-feira, 2 de junho de 2008, pela manhã, o celular de Fernando tocou. Era a apresentadora Luciana Gimenez convidando-os para dar uma entrevista no seu programa, SuperPop, na RedeTV! “Eu nem conhecia essa Luciana Gimenez”, contou Fernando, voltando da cozinha com uma garrafa de café e um panetone. “Só sabia que ela era a mulher que tinha dado um golpe no Mick Jagger.” Ela insistiu para que fossem ao programa. Eles acabaram concordando, mas fizeram a ressalva de que era preciso tomar todos os cuidados porque Laci tinha ordem de prisão. A produtora do programa prometeu que não haveria perigo. Que o programa seria gravado e, ainda assim, se o Exército chegasse, eles seriam levados dali escondidos em um dos carros da emissora. O programa, disse a produtora, daria visibilidade maior para a história deles.
No dia 3 de junho pela manhã, Laci pegou um táxi para Goiânia, acompanhado do guitarrista da sua banda, e de lá embarcou num voo para São Paulo. Não podia sair pelo aeroporto de Brasília, como Fernando, porque estava sendo vigiado. Em São Paulo, nada do que havia sido prometido pelo programa foi cumprido. Foram levados diretamente para a emissora. Não existia o hotel em que iriam descansar. Doente, Laci começou a se sentir mal. Quando o programa começou, os dois não sabiam que estavam no ar ao vivo. A certa altura da entrevista, um dos produtores cochichou algo no ouvido de Luciana Gimenez. Ela fez uma cara teatral de espanto e falou: o Exército está vindo para cá! Laci se descontrolou. Câmeras da tevê estrategicamente colocadas no muro da emissora filmaram a chegada dos veículos militares, enquanto um repórter anunciava que o Exército viera prendê-los. Ao testemunhar o desespero de Laci em frente às câmeras, gritando que seria morto, algum telespectador ligou para o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, o Condepe, de São Paulo, e avisou o que estava acontecendo. Na emissora, os sargentos reivindicaram o carro prometido, mas ouviram que não havia como tirá-los dali. “Aquilo foi revoltante”, disse Laci. “Eles não estavam preocupados com o que aconteceria conosco, e sim com o aumento da audiência.”
Um coronel entrou no estúdio e deu ordem de prisão a Laci. Fernando entrou na frente do companheiro e avisou que não haveria rendição. Laci estava tão fora de controle que um dos produtores buscou um psicólogo da emissora para tentar acalmá-lo. Enquanto a prisão do sargento era discutida, dois conselheiros do Condepe, os advogados Francisco Lúcio França e Ariel de Castro, chegaram à RedeTV! e tomaram a frente da negociação com os militares. Nessa altura, Luciana Gimenez já tinha ido embora. Do lado de fora, a imprensa se aglomerava. Lúcio França avisou os militares de que o direito dos dois tinha que ser garantido. Principalmente porque Laci estava visivelmente doente. O coronel não esmoreceu. “Ele é um desertor. Vamos levá-lo.” O advogado exigiu um mandado de prisão. O militar retrucou: “Tenho autoridade para isso.” O advogado respondeu: “O senhor se engana. Quem está fora da legalidade não tem autoridade.” A discussão entrou pela madrugada. Ficou acertado que sairiam dali para um hospital. Os advogados propuseram a Santa Casa de Misericórdia. Os militares só aceitaram o hospital militar. Saíram todos juntos.
No hospital, foi negociado que Laci só viajaria para Brasília depois de ser examinado por uma junta médica. Ele ficou em um quarto no 7º andar, cercado por soldados armados com metralhadoras. Marcaram uma avaliação para o dia 5, às 8h30. Às seis da manhã, o diretor do hospital, o coronel médico Fernando Stolet, entrou no quarto de Laci aos berros, ordenando que se levantasse para fazer o exame. “Me colocaram numa cadeira de rodas e avisaram que, se eu me recusasse a ir, as enfermeiras tinham ordem para me sedar”, contou. Fernando viu quando levaram o companheiro, aos gritos, para uma sala. Ali o colocaram numa maca e proibiram que se mexesse. Três médicos o olharam rapidamente e lhe deram alta. Fernando ligou para Lúcio França, que estava se arrumando para ir ao hospital, e avisou que o companheiro estava sendo preso. O advogado, sem entender o que se passava, tentou acalmá-lo. “Fique tranquilo, a junta médica será às 8h30.”
Nesse mesmo instante, Fernando ouviu o barulho de um helicóptero pousando no alto do hospital. Era um Puma, destinado a operações de guerra. Sentaram Laci numa cadeira de rodas e o embarcaram às pressas no helicóptero, com Fernando a seu lado. Do hospital foram levados para o fundo da base aérea em São Paulo. Dez homens fardados e sem identificação os esperavam. Foram colocados em um avião Bandeirante e levados para Brasília. “Achei que fossem nos jogar lá do alto, como faziam com os presos políticos na época da ditadura”, disse Fernando, enquanto cortava um pedaço de panetone.
Na base aérea de Brasília, Laci foi algemado com as mãos para trás. Ele perdeu o equilíbrio e foi arrastado até um Opala preto. Fernando ficou sozinho, desnorteado. Seu celular tocou. Do outro lado, ouviu uma voz pausada, inconfundível. Era o senador Eduardo Suplicy, do PT, já avisado da situação pelos advogados do Condepe. Disse que ele fosse direto para o seu gabinete, no Senado. Quando chegou, Suplicy discursava sobre o caso na tribuna e orientou que Fernando fosse até lá. Como estava de moletom, teve que vestir um terno reserva que Suplicy deixava no gabinete. Muito menor que o senador, Fernando foi engolido pela roupa. Os assessores ajustaram o traje com grampos, ainda assim o segurança do plenário não se convenceu e não o deixou entrar. Os jornalistas cercaram o sargento, que tentava escapar do assédio. Foi resgatado por assessores do senador e, já no gabinete, teve uma crise de choro.
Da base aérea, Laci fora levado à força para o hospital do Exército. Antes de ser internado, avistou a procuradora Cláudia Lamas e a acusou de fazer parte do esquema de corrupção. Foi quando ela resolveu processá-lo. O sargento foi mantido numa ala isolada do hospital. A mesma onde havia ficado o traficante Fernandinho Beira-Mar, quando, depois de preso, precisou fazer uma cirurgia, em 2001. Laci reclamou da falta de janelas. Um militar foi irônico. “Logo, logo você vai para um lugar com janelas.”
Alguns senadores foram visitá-lo e o encontraram em estado deplorável. Chegaram a um acordo com os administradores do hospital: ele não seria preso, pois era evidente que precisava de tratamento psicológico. Na sexta-feira, quando os políticos deixaram Brasília, Laci foi colocado em um camburão por quatro militares e levado para a prisão do Exército, o PIC, onde, no regime militar, ficavam os presos políticos. Sua versão é de que, no caminho do hospital para a prisão, foi torturado. Diz que levou socos na barriga, apanhou com palmatória na planta dos pés e foi sufocado com saco plástico. O Exército nega a tortura e Laci, por isso, responde a um outro processo, por calúnia.
A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Gilda Pereira de Carvalho, é uma mulher formal, de voz firme, com forte sotaque pernambucano. Numa manhã no final de janeiro, ela descreveu, em seu gabinete, no prédio redondo e envidraçado da Procuradoria, em Brasília, sem disfarçar a indignação, o quadro exasperante em que encontrou Laci quando foi visitá-lo na prisão, em 2008. “Era claro que ele estava sendo torturado. Não posso afirmar se houve tortura física, porque é a palavra dele contra a dos militares. Mas havia tortura psicológica. Abusos inadmissíveis.” Ao entrar no presídio, junto com mais dois colegas, a procuradora se deparou com o sargento algemado, sentado em uma cadeira. Mandou que lhe tirassem as algemas. Notou que ele vestia bermuda e camiseta, enquanto os outros presos estavam agasalhados. Era junho e fazia frio. Ela lhe perguntou a razão de estar trajado daquele jeito. Laci respondeu que não lhe davam roupas. Disse que a cela era suja e malcheirosa e que várias vezes ficava sem comer. Também não estava recebendo medicamentos. Disse ainda que era frequentemente humilhado. A cada visita, militares o obrigavam a se despir e se agachar, várias vezes, enquanto ouvia insultos e chacotas. “Ele se esforçava para manter o controle, mas nós percebemos que estava sofrendo muito”, disse a procuradora. Ela acreditou na versão de Laci. “Tecnicamente, os ilícitos relacionados com a tortura se passam dessa forma. A pessoa que está sofrendo diz o que está passando e o torturador nega. Até hoje há pessoas que negam o Holocausto”, argumentou.
Gilda Carvalho saiu do presídio e fez um relatório para a Justiça solicitando que fosse expedido um habeas corpus para a soltura do sargento. Elencou 21 pontos de sinais claros de abuso. Entre eles: ficar despido diante de militares, ser obrigado a usar roupa inadequada para o clima, ficar algemado sem justificativa, não receber os medicamentos necessários nem as refeições. Também condenou o uso de algemas no deslocamento do sargento do presídio para a Auditoria Militar, “quando os militares acusados de morte no morro da Providência, no Rio de Janeiro, são deslocados sem algemas”. Em seu relatório, a procuradora afirmou ainda que o tratamento dado ao sargento “afrontava a Constituição Federal e a convenção da ONU que trata dos crimes de tortura”. E concluiu seu parecer afirmando que as práticas do presídio sugeriam existir ali um tipo de tortura institucionalizada, o que, para ela, era de tudo o mais grave. “É necessário que haja urgente medida contra esse estado de coisas, que é assimilado pelos quartéis, e os militares, pela severa hierarquia e observância aos regulamentos, passam a cometer ou tolerar essas abomináveis condutas.”
Dois dias antes que o sargento completasse dois dos seis meses de prisão por deserção a que havia sido sentenciado, o STF determinou que ele fosse solto. Em dezembro daquele mesmo ano, Laci recebeu indulto de Natal e sua pena foi prescrita. O Exército não poderia mais expulsá-lo.
O advogado Marcio Palma, que cuida do caso, é um homem de poucas palavras. Ele se dispôs a defender o sargento, sem custas. Palma tem aversão a holofotes e se limitou a fazer um comentário: “O Exército foi, no mínimo, inábil. Qualquer um, ao ver o Laci, percebia que ele estava gravemente enfermo.” Estava satisfeito com a absolvição do cliente no processo de injúria. “Agora falta apenas o julgamento do processo de calúnia, em que o sargento é acusado de ter inventado a denúncia de tortura, para que a história chegue ao fim.”
Laci e Fernando não estão muito seguros disso. Evitam sair de casa. Temem ser agredidos. Ainda recebem ameaças anônimas por telefone. Pediram proteção ao Exército, mas a instituição respondeu que não tinha como atendê-los. Fernando sacou do meio de uma das grossas pilhas de documentos sobre o caso, que eles guardam no quarto de empregada do apartamento, uma folha com uma instrução do general Adhemar Costa Filho, expedida em julho de 2008, destinada a “todos os militares”. Trata-se do “apoio do Exército aos militares envolvidos no incidente do morro da Providência”, no Rio de Janeiro, quando um oficial e seus subordinados entregaram um grupo de jovens da favela a traficantes de um morro rival. Os jovens foram mortos. O comunicado informava que o Serviço Social da instituição “vem prestando apoio contínuo aos militares envolvidos e seus familiares”. “Isso é revoltante”, disse Laci.
A pressão do Exército atingiu o psiquiatra de Laci, Ricardo Lins, diretor do único hospital psiquiátrico público de Brasília, que atende o sargento desde a sua prisão, em 2008. Em 15 de abril do ano passado, ele foi procurado em seu consultório pelo major Antônio Carlos Pereira Leal para que declarasse, de próprio punho, que Laci podia receber alta. Ao telefone, o médico Ricardo Lins confirmou as pressões, mas disse que o caso estava na Justiça e que preferia não falar do assunto. Ele denunciou o major médico na Procuradoria dos Direitos do Cidadão. Sua denúncia foi levada também ao Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal. Em março de 2010, o CRM já havia condenado dezoito médicos militares por praticar atos danosos ao paciente Laci Araújo. O conselho entendeu que “os médicos militares, atendendo aos ditames da caserna, se comportaram como militares médicos, renegando, assim, o juramento de Hipócrates”, de aplicar o conhecimento para o bem do doente. O Conselho Regional de Medicina de São Paulo também abriu, em 1º de julho do ano passado, processo ético-profissional contra oito médicos do Hospital Geral de São Paulo, HGeSP, administrado pelo Exército, entre eles o diretor do hospital, coronel Fernando Stolet. O conselho concluiu que ficou comprovada a má intenção na atitude dos médicos do hospital contra Laci quando ele esteve internado. O Exército recorreu, alegando que seus médicos não estão sujeitos a decisões dos conselhos de classe. O caso está na Justiça.
Quatro anos após serem enviadas ao Ministério Público Militar, as irregularidades no Hospital Geral de Brasília foram comprovadas. Mas o resultado foi mantido em sigilo. Um documento reservado do Ministério da Defesa, datado de 14 de julho de 2010, traz o parecer dos auditores da 11ª Inspetoria de Contabilidade e Finanças do Exército sobre as denúncias de corrupção no HGeB. Nele, os auditores enumeram diversas faltas: compras de material a preços superfaturados, falta de critério na auditoria das faturas, impropriedades administrativas na gestão do hospital, participação de militares “em suposto esquema de direcionamento de encaminhamentos de pacientes”. Os auditores listam os nomes dos envolvidos, entre eles, dois diretores do hospital, e estimam um prejuízo para o Erário da ordem de 3,6 milhões de reais. No final de fevereiro deste ano, o subtenente Davi Reis foi expulso do Exército por ter gravado a conversa com o seu superior, general Adhemar da Costa Machado Filho. O caso de corrupção não foi avaliado. O general foi promovido a comandante militar da Região Sudeste.
Indagado sobre o caso dos sargentos, o Centro de Comunicação Social do Exército encaminhou, no começo de fevereiro, uma nota para piauí. Nela, afirma que, apesar das denúncias de Fernando e Laci, “até o momento não há nenhuma decisão que ampare ou confirme suas acusações”. Que, pelo contrário, o sargento Araújo “foi condenado por desacato, deserção e por propalar fatos inverídicos”. O Centro pela Justiça e o Direito Internacional, uma ONG de Direitos Humanos com sede em Washington, encaminhou o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, a OEA, por considerar que houve abusos e perseguição aos dois militares. A procuradora Cláudia Lamas informou, por meio da assessoria de imprensa da Auditoria Militar, que, ao ouvir o sargento Laci, cumpriu os procedimentos previstos na legislação militar. O general Adhemar da Costa Machado Filho não quis se manifestar sobre as gravações, cuja autenticidade foi atestada pela Polícia Federal. A nota da instituição, contudo, sai em sua defesa, afirmando que “o Exército brasileiro não discrimina qualquer de seus integrantes em razão da raça, credo ou opção sexual”.
Não há, no Exército, nenhuma norma que trate explicitamente da homossexualidade. Mas a presença de homossexuais nas Forças Armadas é frequentemente condenada por oficiais mais graduados. No Exército norte-americano, a proibição era explícita até bem pouco tempo. Uma lei, de 1993, estabelecia a regra “Don’t ask, don’t tell”, que proibia os militares de revelarem sua orientação sexual sob pena de expulsão. No ano passado, a lei foi derrubada pelo Congresso, que aprovou nova legislação, permitindo a entrada de homossexuais declarados nas Forças Armadas.
Numa tarde no final de janeiro, os sargentos foram até o hospital onde trabalharam para obter informações sobre o pedido de inclusão de Fernando como dependente no plano de saúde do companheiro (Fernando se desligou do Exército em junho de 2008 para cuidar de Laci). O pedido fora autorizado por ordem judicial. É a primeira vez que um casal homossexual tem garantido esse benefício pelo Exército. Agora, os dois aguardam pela última reivindicação: a ida de Laci para a reserva. O Exército reconheceu, depois de quase seis anos, em um documento datado de 11 de outubro do ano passado, mas divulgado somente em janeiro deste ano, que os problemas de saúde de Laci, ou “sargento De Araújo”, são reais e o tornam inapto para a carreira militar. Uma nova junta médica concordou com o diagnóstico da neurologista Candice Alvarenga, de que Laci sofre de epilepsia do lobo temporal.
No caminho de volta do hospital, no Setor Militar Urbano, Laci apontou para o presídio, o PIC, um prédio branco em forma de caixote, onde ficou preso por dois meses. “Está vendo aquela escada íngreme? Era de lá que eles atiravam os presos políticos na época da ditadura. Morria de medo que fizessem isso comigo”, disse. Ao passarem pela vila dos generais, Laci apontou novamente. “É aqui que mora o general Enzo Peri, comandante do Exército, aquela bicha cocoricó.” O maior rancor é dirigido ao ex-ministro da Defesa Nelson Jobim, a quem ele chama de “inseto”: “Ele sabia de tudo e não tomou nenhuma atitude para pôr fim às arbitrariedades.” A mágoa se estende ao ex-secretário de Direitos Humanos do governo Lula, Paulo Vanucchi. “Ele ficou indiferente. Como pode? Um cara que foi preso pela ditadura e conhece o modo como o Exército opera.”
Fernando pediu que Laci parasse com as críticas. O companheiro não lhe deu ouvidos. “Sabe o que eu penso? Quando aprovarem a lei contra a homofobia, será a morte desses parasitas que vivem à custa da causa gay, mas que não fazem nada efetivamente para nos proteger.” E citou a senadora Marta Suplicy, do PT. “O que é a Marta? É nada. Ela só se aproveita da situação dos gays para ganhar votos. É uma cobra venenosa. Estivemos lá para falar com ela da nossa situação. Sabe o que ela fez? Tirou uma foto conosco, mandou colocar no Twitter e depois nos virou as costas como se não existíssemos”, disse. Fernando insistiu para que o companheiro se calasse. “Laci, fecha essa boca, já temos inimigos demais.” Laci continuou: “E esses dirigentes de associações de gays e lésbicas que só sabem pegar dinheiro do governo para fazer campanha contra a Aids?” Fernando pôs a mão na cabeça em desespero. “É verdade, só sabem fazer encenação. Montam seminários caríssimos, ficam em hotel cinco estrelas, tudo à custa do governo. Depois, sacodem o cabelo e vão para a boate causar.” Dessa vez, Fernando foi firme: “Chega, Laci. Cala a boca. Pronto. Cassei a sua palavra.” Laci deu de ombros. Já ia voltar a falar quando foi interrompido pelo toque do celular. Não era um toque qualquer. Imitando o bordão de um programa humorístico da tevê, o aparelho dizia em tom sarcástico: “Ai, como eu tô bandida, ai, como eu tô maléfica.”
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