Adeus às armas
Em sua batalha final, Kadafi recorreu até aos deputados Protógenes e Brizola Neto
Paula Scarpin | Edição 60, Setembro 2011
Eram seis da manhã e os termômetros já avançavam a casa dos 30 graus centígrados em Túnis. Os deputados federais Protógenes Queiroz e Brizola Neto terminavam um café com torradas, frutas e suco quando um funcionário do hotel avisou que o motorista chegara. Ansiosos, eles já tinham descido dos quartos com a bagagem pronta. O motorista árabe, que arriscava um francês básico, os aguardava sorridente em frente ao Kia Borrego SUV prata. Na tarde anterior, a quinta-feira, 18 de agosto, o próprio Protógenes telefonara para a locadora e pedira um carro com boa tração e espaço para sete ou oito pessoas. Àquela hora o deputado ainda não tinha a conta exata do número de integrantes da comitiva brasileira que faria o estirão de quase 700 quilômetros até a fronteira com a Líbia para tentar testemunhar os conflitos.
A visita dos brasileiros vinha sendo ensaiada desde março, e fora marcada e cancelada várias vezes. A ONG líbia Fact Finding Committee, financiada por Muammar Kadafi e organizada depois da insurreição rebelde, havia divulgado um convite mundial a entidades interessadas em verificar o que de fato ocorria no país árabe, independente da cobertura que seus ativistas julgavam tendenciosa, fruto da “imprensa golpista”. O comitê oferecia passagens, hospedagem e visitas guiadas a hospitais, escolas e locais bombardeados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. Em contrapartida, os participantes deveriam redigir um relatório isento endereçado às Nações Unidas.
Pipocaram voluntários da Espanha, Itália e Estados Unidos para a missão proposta pelo comitê. Cynthia McKinney, uma ex-congressista americana, chegou a liderar uma delegação chamada Dignity, que redigiu um contundente relatório repudiando os bombardeios da Otan. A comitiva brasileira não tinha nome, mas seguia o exemplo da americana e era composta por nove integrantes.
Entre os convidados específicos da ONG de Kadafi estavam o veterano jornalista Mario Augusto Jakobskind, autor de Dossiê Tim Lopes, a militante feminista Alzimara Bacellar e Juliana Castro, jornalista freelancer que já fizera vários trabalhos de assessoria de imprensa para a Embaixada da Líbia em Brasília. Por ter organizado eventos nessa legação diplomática, Juliana conhecia alguns membros do Fact Finding Committee. Foi designada como a responsável pela interlocução entre a entidade e os integrantes brasileiros.
Ela conta que a ONG líbia teria convidado também os deputados Chico Alencar, Manuela D’Ávila e Luiza Erundina (fato que os gabinetes da ex-prefeita de São Paulo e da musa comunista negam; Chico Alencar confirma). Segundo a jornalista, questões de agenda teriam impedido a ida dos três. Encarregada de engrossar o pelotão de brasileiros, Juliana incorporou primeiro o marido, o advogado Felipe Boni Castro. Em seguida convocou o fotógrafo Sérgio Alberto e o cinegrafista Miguel Mello, com quem já havia trabalhado num evento em memória dos quarenta anos da morte de Che Guevara.
Robinson Pereira, escritor, jornalista freelancer, blogueiro e assessor do senador Acir Gurgacz, do PDT de Rondônia, foi um dos últimos a ser chamado. Pereira conheceu Juliana no começo de julho, no evento “Ler está na moda”, em Brasília, onde participava de um debate com outros autores. Ao ouvir Pereira falar de seus dois romances de espionagem, Fronteira e Souvenir Iraquiano, nos quais o vilão é um espião americano, Juliana apostou que o autor se interessaria em integrar a comitiva – e não errou. Sob o pretexto de pedir um autógrafo, fez-lhe o convite. Ele topou na hora.
Antes de embarcar, Pereira contatou a revista Carta Capital, que já publicou textos de sua autoria e acertou o envio de alguns flashes da expedição. A revista chegou a anunciar a novidade no seu portal, mas a nota sumiu no ciberespaço sem deixar rastro. “Eles não tinham entendido que a viagem seria paga pelo Kadafi”, esclareceu o jornalista.
Completado o grupo, todos decolaram de São Paulo num mesmo voo da Air France. Para a surpresa da comitiva, os deputados Protógenes e Brizola Neto viajaram de primeira classe; os demais, de classe econômica.
De acordo como plano original, os brasileiros seriam recebidos por um membro da ONG em Túnis, e de lá seguiriam num avião fretado até Ben Gardane, na fronteira. Partiriam então por terra até o destino final, Trípoli, onde passariam uma semana. Animados, chegaram a posar para uma foto de grupo no saguão do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, durante a escala. Ao desembarcarem em Túnis, porém, não havia ninguém à espera e Juliana foi informada por telefone de que a fronteira fora tomada pelos rebeldes. Seguindo novas instruções, o grupo hospedou-se no Hotel Diplomat, de quatro estrelas e diária moderada, à espera de novas instruções.
Aquartelados na capital da Tunísia, Protógenes e Brizola Neto tentaram marcar um encontro com diplomatas brasileiros lotados no país. Só então, segundo o Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores tomou ciência da participação dos dois deputados na eclética comitiva. “Foi uma situação excepcional. Há uma área do Itamaraty destinada a lidar com o Congresso, e existe uma interlocução fluida com o objetivo de tratar de questões logísticas. Mas nada impede que os parlamentares viajem sem prestar contas ao Itamaraty”, informou a assessora Amena Yassine. Como nenhum dos dois deputados faz parte da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Congresso, é possível que eles não soubessem deste canal de comunicação.
Desde o primeiro dia em terras tunisianas, Protógenes, Brizola Neto e parceiros de missão arregaçaram as mangas e se puseram a trabalhar. Das instalações do Hotel Diplomat passaram a divulgar em seus respectivos blogs informações que consideraram essenciais. A primeira foi uma “Nota de repúdio aos bombardeios da Otan”, na qual ambos descreviam, de Túnis, como eram os ataques aéreos na Líbia.
Robinson Pereira foi o mais prolixo da comitiva. Estreou com uma análise tão original quanto um roman à clé: “A intromissão das forças lideradas por Sarkô [Nicolas Sarkozy, presidente da França] e Obama é o mesmo que um exército internacional ajudar a torcida do Brasil de Pelotas a tomar o governo das mãos de Dilma Rousseff”. Um enigma. Também entrevistou uma jovem tunisiana, que foi taxativa sobre as revoltas na terra de Kadafi: “As manifestações são pacíficas.”
Passados três dias e frustrados pela impossibilidade de cumprir a missão, os integrantes da comitiva decidiram alugar um carro por conta própria e seguir até a fronteira. Além dos dois deputados, os mais empolgados eram Robinson Pereira e o fotógrafo Sérgio Alberto. Juliana Castro e o marido optaram por ficar no Diplomat, junto com Mario Jakobskind e Alzimara Bacellar. O cinegrafista Miguel Mello, que tentava adiantar a volta para o Brasil, acabou sendo convencido a mudar de planos e se integrar à expedição. “Eu não ia deixar o pessoal na mão, certo? Eles estavam tão empolgados, decididos, e eu só pensava: será que a gente é tão importante assim?”, contou por telefone.
Robinson Pereira, sem maiores explicações, acabou não embarcando.
A caravana brasileira levou nove horas para chegar à cidade de Ben Gardane, ainda em território tunisiano, ali ficou cerca de cinco horas e deu meia-volta, retornando à capital. Segundo Miguel Mello, o motorista árabe tinha se recusado a entrar na convulsionada Líbia. No dia seguinte, em seu blog, Protógenes informou que havia avistado “um avião do governo venezuelano esperando seis membros da família Kadafi para serem asilados”.
Cansados da viagem, os expedicionários aportaram na madrugada de sábado no Hotel Diplomat e embarcaram no mesmo dia de volta ao Brasil. Na escala em Paris, a comitiva teve algumas horas para almoçar e relaxou tirando fotos no Arco do Triunfo. Protógenes Queiroz preferiu não sair do aeroporto.
Apesar de se dizer frustrado por não ter conseguido cumprir seu objetivo, Brizola Neto deixou a Tunísia convicto. “A Otan está extrapolando o seu papel, interferindo no processo interno líbio”, disse durante a festa de comemoração dos 50 anos da Campanha da Legalidade, no Bar Mofo, na Lapa carioca, dois dias depois da volta ao Brasil.
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