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Adeus papa-defuntos
A indústria do luxo funerário joga o Brasil no além do Primeiro Mundo
Marcos Sá Corrêa | Edição 37, Outubro 2009
O bom e velho papa-defunto está com os dias contados. Depois dos casamentos, das formaturas, dos bailes de debutantes e dos aniversários infantis, os enterros também estão virando festa. E com ela acaba o tempo em que um simples coveiro podia encarar as incertezas da vida com macacão de zuarte, pá de pedreiro e a expressão imperturbável do profissional que tem o emprego regulado por convênios seculares entre as Santas Casas de Misericórdia e os cemitérios municipais.
O último sinal da novidade foi a Funexpo 2009, “a maior feira de produtos, serviços e equipamentos para o setor funerário”. Ela assinalou de uma vez por todas o ingresso do Brasil na era da tanatopraxia, do rejuvenescimento póstumo e da reconstituição facial, cujo destino final o professor Vital Walter de Oliveira Filho traduziu para empresários e funcionários do ramo funerário na palestra “Cerimonial: celebração da vida”.
Eles atuam num setor que cresceu mais de 15% nesta década. Sua freguesia se renova regularmente, ao ritmo de 1 milhão de óbitos por ano. Em torno da indústria de sepultamentos “diferenciados” gravitam 5 500 empresas. A Funexpo 2009, que ocorreu em Santos entre os dias 4 e 6 do mês passado, limitou-se a assinar o atestado de que há vida, sim, depois da morte. E muita.
Foi a oitava edição da feira. Ela começou modestamente em 1996, promovida pelo Sindicato das Empresas Funerárias do Estado de São Paulo. Contentou-se, na estreia, com poucos estandes perfilados “em apenas uma rua” do Expo Center Norte, na cidade de São Paulo. Os expositores não estavam prontos para a ideia de saírem por aí exibindo seus serviços e produtos, sem que a fatalidade trouxesse os clientes até suas portas.
No ano seguinte, ela passou às mãos do Ctaf – quer dizer, Centro de Tecnologia em Administração Funerária. E virou outra coisa. Trocou o ambiente paulistano por locais mais turísticos, como Águas de Lindoia ou o Guarujá, onde “os Diretores Funerários e seus familiares” pudessem aliar os negócios ao lazer. Fisgou as famílias dos expositores. E virou bienal.
Em 2001, ela atraiu pela primeira vez agentes funerários de outros países “da América Latina e da Europa”. Em 2003, “apresentou a maior urna funerária do mundo, na entrada do pavilhão”. Em 2007 bateu o recorde de público, com 4 mil pessoas, com a adesão maciça dos “fornecedores de fornos crematórios”. Enfim, este ano, instalada nos 10 mil metros quadrados e auditório para 3,5 mil pessoas do Mendes Convention Center, encontrou em Santos, no litoral paulista, um ambiente “aconchegante e mais familiar”, onde os congressistas se sentissem “mais relaxados e, por isso mesmo, mais aptos para o aprendizado”.
A TAM apoiou o Funexpo 2009 com descontos de 25% nos voos dos expositores. A General Motors ofereceu “condições muito vantajosas para o setor funerário” na aquisição de veículos Chevrolet zero quilômetro. Sobram sinais por todos os lados de que os caixões, as lápides, os anjos de mármore e as coroas de flores não monopolizam mais as atenções dos agentes funerários. O público mudou. E o mercado foi atrás das novidades.
E vice-versa. Os caixões continuam marcando ponto na feira. Expõem as últimas palavras em material ou acabamento. Garantem a presença de fabricantes tradicionais, como a Santa Rita de Urnas, antiga movelaria familiar de Bilac, no noroeste de São Paulo, que há mais de trinta anos trocou sua linha de poltronas e sofás pelos esquifes estofados.
Mas os caixões, os castiçais e as esculturas funerárias de outrora disputam o espaço com escritórios de arquitetura, fábricas de carros elétricos, representantes de equipamentos hospitalares, programadores de sistemas eletrônicos e até telefônicas, porque funerária é comércio e todo comércio consome mesa de PABX e linha de celular.
Mais de sessenta firmas dos mais variados ramos pegaram este ano uma alça no cortejo da Funexpo. Uma das novidades mais fotografadas por dentro e por fora pelos visitantes era, em princípio, um troféu tecnológico da indústria automobilística – o Chrysler 300C Funeral Car De Luxe, o máximo em solução de transporte desta para melhor, pelo menos no Brasil.
O veículo fúnebre foi encomendado pelo Grupo Bom Pastor, de Limeira, com a intenção explícita de revolucionar os cerimoniais fúnebres no Brasil. Gigante pela própria natureza da marca americana, o carro foi esticado em meio metro pelos artesãos da Procópio Limousines, oficina paranaense de coach builders, que materializa os mais delirantes projetos de megalomania sobre rodas, mesmo à custa de passar a serra sem a menor cerimônia em carrocerias de Mercedes, BMWs, Volvos ou Peugeots 307 zero quilômetro.
“Ofereça um traslado fúnebre diferenciado e conquiste novos mercados”, diz a Procópio. O Bom Pastor ouviu-a. E recebeu da oficina uma limusine negra com porte de micro-ônibus. O Chrysler customizado veio com o nome da funerária pintado na porta do motorista em arabescos dourados. Com tanto “luxo e conforto”, inspirado no slogan “para cuidar de sua família, conte com a nossa”, o Bom Pastor acha que deu forma palpável à “filosofia” empresarial de humanizar os enterros. A viagem do morto, banhado pelo neon azulado da cabine de estofamento claro, quase uma alegoria do céu, é secundária. A prioridade, nessas horas, é a “situação emocional” de quem “sofre com a perda”. No mínimo, a julgar pela comoção que causou no estande da Funexpo, o Chrysler matará de inveja os vizinhos.
Esteve também na Funexpo a Catharine Hill, firma de maquiagem, com 27 anos de experiência em desfiles de moda, elencos teatrais, emissoras de tevê e casamentos. Daí para melhorar a aparência de cadáveres foi menos que um pulo. A tanatopraxia já tem sua passarela. Na feira, disputaram com Catharine Hill, entre outras, a Tanart, de Santa Felicidade, no Paraná, e a Tanatus, de Botucatu, em São Paulo.
Elas oferecem produtos capazes de simular “condições surpreendentemente melhores” para o morto. Há kits com 25 itens que restauram, senão a vida, suas cores e seus hálitos, como o “redutor de palidez cadavérica”, o “aromatizante especial”, o “aspirador de fluidos”, a “bomba injetora a quente”, a cola “com alto poder de aderência” e o pó que previne supostos vazamentos. Os cursos da Tanart juntam alunos de Goiânia, Arapoti, Canoinhas, Umuarama, Dourados e Rosário do Sul. A tanatopraxia está se espalhando no interior como os campos de soja. Quando chegar às capitais, adeus papa-defunto.
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