O cemitério de Parisi, onde os enterros são solitários: “Eu não imaginava que a doença ia ser assim. Para mim, ia ser só uma gripe”, diz a neta que perdeu o avô paterno e o avô materno CREDITO: PIERRE DUARTE_2021
“Ai, meu Deus”
Parisi, um pequeno retrato de uma grande tragédia
Camille Lichotti | Edição 175, Abril 2021
A enfermeira Dirce Santos, de 48 anos, trabalha há quase uma década no posto de saúde de Parisi, uma cidadezinha de pouco mais de 2 mil habitantes no interior de São Paulo. Na manhã de 2 de março, dia em que o Brasil atingiu 257 mil mortos pela Covid-19, ela estava sentada à mesa de sua sala folheando uma pilha de papéis e contando, em voz alta, quantas notificações da doença havia registrado no dia anterior. Ao chegar na 14ª folha, percebeu que a porta lateral se abria devagar. A secretária de Saúde do município, Marli Donizeti, esticou o pescoço pelo vão de abertura da porta e varreu o local com os olhos. Quando finalmente entrou na sala, encostou-se contra a parede diante da enfermeira e levou a mão à testa, denunciando sua preocupação. Nenhuma palavra foi trocada entre as duas, até que Donizeti desabafou. “Nós não temos mais vaga”, disse. “Todos os hospitais estão lotados. Vamos ter que segurar todo mundo aqui, Dirce. Nossos pacientes vão morrer na porta do posto, e a gente não vai ter o que fazer.”
Dias depois, as irmãs Ana Paula e Karina Faria, de 36 e 33 anos, chegaram ao posto reclamando de dor de cabeça e dores pelo corpo. Passaram o dia tomando soro e analgésicos, mas o estado das irmãs se agravou e ambas precisavam ser internadas. Como previra a secretária, não havia leito vago nos hospitais da região. Elas tiveram que permanecer ali durante a noite. O posto é a única unidade de saúde de Parisi. Foi construído para ser a porta de entrada do sistema e não tem estrutura para atender casos graves, muito menos responder a uma pandemia. Tem apenas dois leitos e cinco poltronas. A equipe é formada por oito enfermeiras e auxiliares de enfermagem e quatro médicos, que se revezam para cobrir doze horas de atendimento, ao todo. Aos fins de semana e feriados, a unidade sequer abre as portas. O procedimento-padrão é recolher as informações dos doentes, preencher uma ficha e, quando possível, liberá-los. Pacientes que requerem maiores cuidados são encaminhados para hospitais de cidades vizinhas – a Santa Casa de Votuporanga, a 15 km de distância, e o Hospital de Base em São José do Rio Preto, a 95 km.
Mas o sistema de saúde no interior de São Paulo começou o ano de 2021 em colapso. Na primeira quinzena de março, a rede de saúde de Rio Preto estava perto da marca de 80% de ocupação das UTIs, situação que leva todos os municípios à fase vermelha do plano estadual. A Santa Casa de Votuporanga vivia situação ainda pior, chegando ao limite de lotação, e os gestores de saúde se reuniam para pedir ajuda a outras cidades. Era preciso um esforço coletivo para frear a transmissão do vírus e desafogar os hospitais de referência. Sem leitos vagos, os profissionais de saúde em Parisi estavam de mãos atadas. “Vamos ter que fechar a cidade”, concluiu Donizeti. A notícia não surpreendeu Santos. Como responsável pela Vigilância Epidemiológica, ela já sabia que o quadro era crítico. O que ela não sabia é que, àquela altura, Parisi, nos confins do interior paulista, era o município com a maior taxa de mortes por Covid-19 no Brasil, o país com a maior média diária de mortos no planeta.
“Meu Deus”, exclamou Santos, num sobressalto, ao ser foi informada da posição dramática de Parisi no quadro nacional. Até o fim de fevereiro, a cidade registrara onze mortes pela doença. Parece pouco, mas, se a tragédia parisiana se repetisse em escala nacional, a pandemia já teria ceifado a vida de mais de 1 milhão de brasileiros.
“Eu me sinto frustrada, como se eu tivesse falhado”, desabafou Santos, com os olhos marejados. Mesmo emocionada, ela consegue controlar o tom de voz e mantê-lo sempre baixo e afável, como é comum entre as pessoas que gostam de cuidar das outras. A voz combina com sua figura: Santos não tem mais que 1,60 metro de altura e sempre usa os cabelos encaracolados presos em um rabo de cavalo baixo. Por cima da roupa branca, veste o colete azul-escuro bordado com o logotipo da Saúde da Família. Ela sempre trabalhou no comércio até se formar no curso de enfermagem, aos 32 anos. Acumulava mais de um turno de trabalho em hospitais da região e no posto de Parisi – até que a rotina se tornou insustentável por causa da Covid-19. Aos poucos, ela foi perdendo a força que costumava ter.
No ano passado, Santos trabalhou para evitar o pior. Foram incontáveis turnos dobrados e noites sem dormir. O estresse se materializou em uma úlcera, que ela descobriu recentemente. “Tem dias que eu só choro e me pergunto onde foi que nós erramos para termos tantas mortes em uma cidade desse tamanho”, disse. Para ela, só uma coisa poderia explicar dados tão aterrorizantes: o desrespeito às medidas de prevenção.
Parisi é uma cidade minúscula no noroeste do estado de São Paulo, a 58 km do Rio Grande, divisa natural com Minas Gerais. A maior parte do território é área rural, com chácaras e plantações de seringueira, laranja e cana-de-açúcar. O perímetro urbano é cortado ao meio por uma rodovia, que divide a cidade em duas porções, com casas baixas e portões de grades finas. Nesse trecho principal, que se estende por uns 500 metros, concentra-se o pequeno comércio do lugar. À tarde, as portas ficam abertas e os moradores, sentados nas calçadas, contemplam o escasso movimento das ruas. De suas casas, ouvem o relógio da cidade marcar as horas. O som de cada badalada vem da praça da matriz, na entrada do município. Lá, os alto-falantes foram instalados na torre da igreja, a 10 metros do chão – o ponto mais alto da cidade.
Em 1991, Parisi se emancipou de Votuporanga, cidade com quase de 100 mil habitantes que funciona como o centro de gravidade dos dezessete municípios vizinhos. “Em Votuporanga não tem shopping center, mas pelo menos tem McDonald’s e uma loja da Havan”, resumiu uma moradora. No município de Parisi, a prefeitura é a maior empregadora local – ainda assim, a maioria dos moradores trabalha em Votuporanga. Esse fluxo foi a porta de entrada para o Sars-CoV-2. O primeiro caso de Parisi foi notificado no dia 17 de junho de 2020 e confirmado três dias depois no boletim epidemiológico estadual. Era uma profissional de saúde de 24 anos, que trabalhava em um ambulatório na Santa Casa de Votuporanga e se recuperou sem maiores complicações.
Diante da notícia do surgimento de um novo vírus na China, a enfermeira Dirce Santos não acreditava que Parisi estivesse em perigo. Era muito longe. Quando se confirmou o primeiro caso na capital paulista, em fevereiro de 2020, ela ainda achava que a doença não se espalharia pelo interior do estado, nem chegaria a Parisi, que fica a mais de 500 km da capital. Quando se noticiou o primeiro caso na vizinha São José do Rio Preto, ela então começou a se preocupar. Mas era difícil convencer os moradores da pacata Parisi a usarem máscara e evitarem aglomerações, tanto mais quando o próprio presidente da República desdenhava das medidas de prevenção. Em 2009, durante a epidemia de H1N1, o posto fez treinamento com profissionais de saúde e realizou campanhas de conscientização entre os moradores. Mas o vírus sequer chegou à cidade. Todos acreditavam que o mesmo se daria com a Covid-19.
Em março de 2020, quando o governo paulista suspendeu aulas e eventos que causavam aglomeração, Parisi acompanhou as medidas, quase que por inércia, pois não tinha um único caso de infectado. Em junho, a doença finalmente chegou à cidade, mas ninguém deu muita importância. No mês seguinte, a prefeitura, então sob o comando do prefeito anterior, chegou a organizar uma carreata e montou uma blitz na entrada da cidade para conscientizar os moradores sobre a importância de usar máscara e manter o distanciamento social. A essa altura, já havia 22 casos em Parisi, e outro decreto estadual mandou fechar o comércio e os templos religiosos aos domingos. A cidade, contudo, continuou sua vida normal. A igreja na praça da matriz, que tem capacidade para duzentas pessoas, passou a transmitir missas online, mas o modesto comércio da rua principal não levou a medida muito a sério. A maioria funcionava meio às escondidas, com as portas de aço parcialmente abertas, prontos para atender à clientela.
No dia 4 de agosto, a doença fez sua primeira vítima: o agricultor Ricardo Gimenez, de 72 anos, conhecido como Dim. O mais provável é que ele tenha se infectado ao usar a ambulância de Parisi para ir a uma consulta médica em outra cidade – ou no próprio hospital. Gimenez foi internado na UTI da Santa Casa de Votuporanga oito dias depois do diagnóstico. A doença se agravou rapidamente e, em menos de uma semana, ele faleceu. Seu corpo foi levado ao cemitério de Parisi dentro de um saco preto e, por causa dos protocolos de segurança, foi sepultado imediatamente. Era a primeira vez que um habitante de Parisi não tinha direito a um velório e um enterro com a presença dos moradores da cidade. Pela tradição local, quando um parisiano morre, toda a cidade se mobiliza para acompanhar o sepultamento. Desde a morte de Gimenez, esse antigo hábito precisou ser vetado e os novos protocolos sanitários deixaram um trauma do qual a cidade ainda não se recuperou. “Eu não desejo isso nem para um cachorro”, diz a neta Francielli Hernandes Gimenez, de 23 anos. “A dor é tanta que às vezes eu nem tenho mais vontade de viver.” Assim que terminou de enunciar seu desejo, sua avó, sentada ao seu lado, imediatamente a repreendeu.
Quando Luzia Fedoce, de 65 anos, chegou em Parisi, tudo era mato. As ruas eram de terra batida, a cidade era uma pequena vila de moradores, dividida em lotes. Ela cresceu em uma cidade vizinha e se mudou para Parisi quando casou, aos 19 anos. Viu o asfalto chegar, acompanhou a construção do prédio da prefeitura e da Câmara de Vereadores. Fedoce conhece a cidade – e seus moradores – como a palma de sua mão. Até a chegada da Covid-19, ela nem sabia o significado da palavra “pandemia”. Hoje, está chocada com a sucessão de mortes que a doença causou. “É como se a cidade fosse uma irmandade. Às vezes tem aqueles irmãos que a gente não gosta muito, mas quando alguém morre, morre também uma coisa da gente”, lamenta. “Vai embora toda a lembrança que a gente vivia.”
Fedoce conta que ouviu de muita gente que a pandemia era um esquema político, uma mentira global. Alguns moradores não acreditavam que estavam infectados mesmo com o teste positivo. Eles comentavam que aquele cotonete longo, usado no teste RT-PCR para coletar amostras no trato respiratório, não era capaz de “achar” o vírus. Talvez por isso mesmo a primeira morte não tenha sido um sinal de alerta. Quando chegou a notícia do segundo óbito, a cidade tomou-se de uma certa preocupação. “Era um tal de ‘ai meu Deus, tá tendo Covid’ para lá, ‘a gente vai morrer de Covid’ para cá”, lembra Fedoce. “Ninguém nunca tinha visto morrer assim, um atrás do outro.” Mas o choque da notícia logo se dissipou e não teve resultados práticos. O uso de máscara não pegou, as aglomerações prosseguiram.
No fim de 2020, quatro meses depois da primeira morte, a cidade já tinha seis óbitos – uma enormidade para um vilarejo tão pequeno. A mortandade, no entanto, não mudou o cenário. O produtor rural Sebastião Galeti, de 56 anos, um dos grandes anfitriões da cidade, seguiu reunindo amigos e familiares em sua chácara a 3 km do centrinho de Parisi. O sítio é simples, tem uma churrasqueira e um espaço para eventos, que pode ser alugado, e seus frequentadores se aglomeravam sem a proteção de máscaras. Em meados de janeiro passado, por exemplo, Galeti, conhecido como Tiãozinho, reuniu vinte pessoas em seu rancho. Ninguém usava máscara. Cada um levou suas bebidas, e Galeti, mais uma vez, confirmou a fama de servir o melhor peixe da cidade. Seu rancho, assim como outros da região, chegou a ser interditado em 2020. “Não importa o quanto a gente fale, parece que as pessoas não querem entender”, lamentou a enfermeira Dirce Santos. “Você acha que, desse jeito, o número de casos não vai explodir?”
Como se não bastasse a dificuldade para controlar os próprios moradores, o prefeito de Parisi, Oclair Bento (PSDB), assim que assumiu o cargo no início deste ano, teve a extravagante ideia de inaugurar uma feira livre na praça da cidade. Até há pouco, a feira vinha funcionando toda sexta-feira. “Tinha gente de tudo que é lugar aqui vendendo as coisas, até brinquedo para criança tinha. Todo mundo com a máscara no cotovelo. O prefeito mesmo ficava ali comendo pastel como se nada estivesse acontecendo na cidade”, desabafou Fedoce. No dia 5 de março, o Ministério Público Federal recebeu uma denúncia de improbidade administrativa contra Bento. Segundo o documento, a prefeitura contratou, sem licitação ou concurso público, a filha da secretária de Saúde para funções administrativas no posto da cidade. De acordo com a denúncia, o salário dela foi pago com verba destinada ao enfrentamento à Covid-19. Até o fechamento da reportagem, o processo estava em análise. Procurado para explicar a lógica de abrir uma feira popular em meio a uma pandemia, o prefeito mandou dizer que não tinha interesse em dar entrevista.
O motorista Fernando Santos, 54 anos, até tentou denunciar a aglomeração na praça. Em uma das sextas-feiras, ele ligou para a polícia. “Disseram que não podiam fazer nada porque o prefeito tinha autorizado a feira”, explicou Santos. Ele percebeu que a fiscalização não funcionava em uma cidade como Parisi, onde todos se conhecem, e os responsáveis preferem não se indispor com a população. Pelo tamanho do município, deveria ser mais fácil controlar a transmissão da doença, mas é essa mesma característica que inviabiliza o trabalho de prevenção. O motorista resolveu começar sua própria fiscalização no começo deste ano. Toda semana ele percorre as ruas de Parisi, atento a qualquer indício de aglomeração. A ronda termina em quinze minutos e ele relata a situação nos grupos de WhatsApp. “Lá no bar da Boate Azul tem umas trinta pessoas comendo churrasquinho”, dedurou certa vez. A ideia é espalhar a denúncia até que alguém resolva tomar uma providência, o que raramente acontece. Mas sem o apoio do poder público, a pressão social é a única arma que os moradores têm para inibir aglomerações. “Eu faço isso por medo. Tenho um filho de 8 anos e quero vê-lo formado.”
Quando deixou o posto naquela manhã do dia 2 de março, a secretária de Saúde, Marli Donizeti, caminhou 100 metros até chegar ao Paço Municipal de Parisi. A notícia que dera à enfermeira Dirce Santos foi repassada ao prefeito – não havia mais como atender os doentes. Seguindo as restrições adotadas em toda a região de Votuporanga, a prefeitura publicou um decreto naquele mesmo dia. As medidas foram as mais severas desde o início da pandemia: por duas semanas, estavam proibidas as atividades em bares, feiras livres e chácaras. A resolução também estabelecia um toque de recolher em Parisi – a partir das 20 horas, ninguém poderia circular pelas ruas sem justificativa. O pequeno comércio da cidade também deveria respeitar essa restrição de horário e só poderia funcionar em dias de semana.
As medidas chegaram tarde. No dia 12 de março, Parisi acumulava 253 casos, sendo que 39 foram registrados nas duas primeiras semanas do mês, já sob restrições mais rígidas. O número de infecções ativas saltou de 2 para 37 nesse período. Mesmo com as orientações dos profissionais do posto de saúde, pacientes infectados são flagrados diariamente circulando pela cidade. O motorista da ambulância de Parisi, que conhece todos os moradores, é quem monitora extraoficialmente os fujões. Quando vê alguém descumprindo o isolamento, avisa a enfermeira Dirce Santos. Mas ela não pode fazer muita coisa além de apelar para o bom senso. “Todo mundo diz que está cansado de ficar em casa. É um desrespeito às pessoas que estão sofrendo com a doença.”
Além disso, nem todos são favoráveis às medidas de isolamento. Aparecida de Fátima de Jesus, 36, sentiu na pele as trágicas consequências econômicas da pandemia e acredita que o fechamento da cidade pode piorar ainda mais a situação do município. Ela trabalha como empregada doméstica desde os 8 anos de idade. Quando o medo da Covid-19 se espalhou pela cidade, Cidinha, como é conhecida, ficou sem trabalho. Ela recebe a pensão alimentícia do pai de seus quatro filhos, mas o dinheiro é pouco. No começo de 2020, ela decidiu abrir uma quitanda improvisada na porta de casa. “Eu não tinha capital de giro, precisava vender para pagar os fornecedores”, lembra. Naquele ano, atuando como fornecedora de hortifrúti, vendeu três toneladas de abóbora para a prefeitura.
Quando Parisi e Votuporanga decretaram o fechamento do comércio aos fins de semana, Cidinha vendia seus produtos pela porta dos fundos. “Se alguém denunciasse eu ia ser pega, mas precisava arriscar”, explicou. “Um dia veio gente até de Votuporanga comprar comigo e eu limpei meu estoque. Dei graças a Deus.” No fim do ano, a crise apertou. Cidinha fechou a quitanda e voltou a trabalhar como diarista. Como as escolas e creches não estão funcionando, a filha mais velha, de 12 anos, cuida dos irmãos. “Aqui tem muita gente passando necessidade. A doença é muito triste, mas se fechar tudo, o povo vai morrer de fome”, argumenta. “Eu não quero isso para os meus filhos.”
Ela entende a gravidade da epidemia em Parisi, mas acredita que as restrições do comércio são inócuas. A cidade tem dois mercados pequenos, três padarias – uma delas vende bebida alcoólica – e cinco bares. “Se fechar, o povo vai comprar cachaça e se juntar para beber na esquina. Aglomera do mesmo jeito”, diz ela. Além disso, Cidinha não confia na fiscalização de eventos privados, que acontecem nos quintais apesar da proibição municipal. Sua sugestão é que as pessoas infectadas usem pulseiras de identificação para que os outros moradores possam se proteger com mais facilidade, pois a publicação da quantidade de casos confirmados e suspeitos no site da cidade não é transparente. Às vezes, o portal fica mais de quatro dias sem atualizar os dados. Os moradores se informam sobre as novas infecções pelo boca a boca. “A gente fica no escuro”, relata. Ela própria teve Covid-19 no início de 2021 depois de participar de uma festa com amigos. Só desenvolveu sintomas leves da doença. Seus filhos tiveram vômito e dores no corpo, mas não conseguiram fazer o teste no posto de saúde. Todos se recuperaram.
Com dificuldade para adotar o isolamento, Parisi também sofre com as crendices terapêuticas. “Aqui na cidade tá todo mundo tomando. Parece que é bom”, diz Fedoce, ao contar que faz uso de ivermectina, um antiparasitário sem eficácia contra a Covid-19. Ao ser indagada se também toma cloroquina, outro remédio inócuo para a doença, sua resposta é incisiva: “Isso aí, não. Não acredito em tratamento precoce.” Alguns moradores relatam que o posto de saúde da cidade também administrou doses de ivermectina para tratar pacientes infectados, mas a Secretaria de Saúde não quis se manifestar sobre o assunto. Fedoce não costuma sair, sempre preferiu ficar em casa bordando ou fazendo crochê. Ela mora ao lado da igreja da matriz. Da varanda, é possível ver a torre da igrejinha. No portão, ela acompanha o movimento da cidade. “Esse povo fica todo assustado quando alguém morre, mas no outro dia já tá na rua”, diz, apontando para uma pessoa que passava do outro lado da calçada sem máscara.
Como acontece no resto do país, a pandemia também afetou os pobres de Parisi com mais intensidade. A assistente social Giane Estela dos Santos Martins, 45, única mulher eleita para a Câmara de Vereadores da cidade, acompanha o efeito da Covid-19 na população mais vulnerável. Entre os onze mortos confirmados em Parisi até o dia 3 de março, pelo menos quatro eram pessoas em situação de dificuldade. “Além de viver o luto, essas famílias passam por necessidades sociais e econômicas”, lamenta. A procura por cestas básicas quadruplicou desde que a Covid-19 chegou à cidade. A assistente social também observou que os casos de violência contra a mulher aumentaram, assim como o uso de entorpecentes e bebida alcoólica. Os homens perdem o emprego, ficam mais tempo em casa e a situação financeira começa a deixá-los nervosos. Quem paga a conta são as mulheres. “É difícil colocar isso em números porque a cidade não tem sequer pesquisa para produzir indicadores sociais”, conta ela. “Mas desde que a pandemia começou, meu celular não para de tocar com essas histórias. Eu passo várias noites sem dormir preocupada com o futuro dessas pessoas aqui.”
Naquela tarde quente de 3 de março, Francielli Hernandes Gimenez, cujo avô foi a primeira vítima de Covid-19 em Parisi, estava na calçada, sentada numa cadeira de plástico, com sua avó. As duas sempre fazem isso nos fins de tarde. A neta tem os olhos muito verdes e expressivos. Mesmo com a máscara cobrindo metade do rosto, seu olhar revela o que está sentindo. Durante a conversa, ela checava seu celular com frequência. Esperava uma ligação da Santa Casa de Votuporanga, onde seu outro avô, Nivaldo Hernandes, estava internado. “Ele teve que ser intubado no corredor da enfermaria porque não tinha vaga em nenhuma UTI, nem em hospital particular”, contou, com a voz embargada. “Eu não imaginava que a doença ia ser assim. Para mim, ia ser só uma gripe.” A notícia sobre o estado de saúde de seu avô chegava sempre por volta das 17 horas. Depois de conferir o celular algumas vezes, ela subitamente se lembrou de um detalhe. “Ih, hoje é meu aniversário”, disse, tentando sorrir.
Antes que ela terminasse de contar sua história, um carro prata que descia a rua parou rente à calçada. O motorista, um senhor de cabelo branco que usava uma blusa de botão aberta e calça jeans suja de terra, não desligou o motor. De dentro do veículo, sem máscara, ele gritou: “Como está o Bimba?” “Ele está por um milagre de Deus”, respondeu a neta. O motorista ficou em silêncio por alguns segundos. “Ele vai ter! Boa tarde aí para você”, finalizou, pronunciando o “r” retroflexo próprio do linguajar caipira.
Bimba é como toda a cidade se refere a Nivaldo Hernandes. Todo dia, sua neta responde a inúmeras perguntas sobre o estado de saúde do avô. Ele fazia bicos como taxista e conhecia a cidade inteira. Desde que foi internado, tornou-se o principal assunto do lugarejo, do posto de saúde ao mercadinho. Todos temiam que ele fosse a 12ª morte pela doença. Em 1991, Bimba estava entre os primeiros vereadores eleitos na cidade recém-emancipada. Ele não era apenas um número na planilha de internados – era um pedaço da história do lugar.
Como uma das moradoras mais antigas de Parisi, Luiza Fedoce conhecia todas as demais vítimas da Covid-19. Lembra-se de quando recebeu a notícia do falecimento de cada uma. “A gente já fica sabendo pelo boca a boca e agora recebe pelo WhatsApp, mas esperamos passar o carro para oficializar”, conta. O carro é um Ford Fiesta 1996, adaptado com dois alto-falantes no teto. A cor roxa da lataria fez a cidade apelidá-lo de “Azeitona”. Quando alguém morre, seu dono cobra 30 reais para rodar pelas ruas quietas de Parisi anunciando o falecimento. “Primeiro toca uma musiquinha de morte, aí a gente já fica atento para ouvir quem é. Depois o Azeitona fala o nome de quem morreu, o apelido, o nome da família e, quando tinha enterro, falava o horário”, explica Fedoce. “O que mais assustou a gente nessa doença foi o saco preto. A família não vê o morto, a gente também não vê. É uma tristeza, não tem velório, não tem nada.”
No começo de fevereiro, Azeitona circulou anunciando a morte de Galeti, o dono do sítio das aglomerações. Depois da peixada com duas dezenas de amigos, ele começou a sentir sintomas do que achou que era apenas uma gripe. Quando buscou atendimento no posto de saúde, já estava com dificuldade para respirar. Desmaiou enquanto fazia o teste para Covid-19 e, às pressas, foi levado à Santa Casa de Votuporanga, onde ficou internado com parte do pulmão comprometido, mas não resistiu. Pelo menos seis pessoas que estavam na festa tiveram sintomas e procuraram atendimento no posto. Como visitou sua família, Galeti também contaminou os parentes. Seu sobrinho, Marcos Franchini, de 50 anos, morreu uma semana depois do próprio Galeti, em 15 de fevereiro. Nesse mesmo dia, morreu a mãe de Galeti, também infectada pelo vírus.
Na ampla varanda de sua casa, Luzia Fedoce tem uma mesa de madeira escura e um banco feitos por Galeti, que trabalhava com marcenaria. “A gente sentiu muito a morte dele e do sobrinho porque eram novos, não tinham comorbidade.” A essa altura, com a quantidade crescente de mortos, começaram a surgir sinais de que o luto dava lugar ao desespero. Nos grupos de WhatsApp da cidade, pipocavam mensagens angustiantes. “Isso tudo tá escrito na Bíblia e só vai piorar daqui para a frente”, disse uma moradora. “Nós vai tudo é morrer aqui”, respondeu outra.
No dia 13 de março, Azeitona nem precisou passar pelas ruas de Parisi para anunciar a morte de Karina Faria, a 12ª da cidade. Todos acompanharam sua situação dramática no posto de saúde e quase instantaneamente receberam, pelo WhatsApp, a notícia do seu falecimento. Naquela noite em que passou no posto ao lado de sua irmã tomando soro e analgésicos, o caso de Karina se agravou muito e ela começou a sentir dificuldade para respirar. Precisava ser intubada com urgência, mas todos os hospitais da região estavam lotados e o posto de saúde não tinha os materiais necessários para realizar o procedimento. O pessoal do posto conseguiu alugar uma UTI móvel de uma empresa privada para usar os equipamentos do veículo. A médica de plantão, que não é intensivista, fez então a intubação no posto com o respirador portátil da ambulância. “Esse tipo de ambulância só dá um tempo a mais para a pessoa chegar ao hospital, não é para salvar vidas”, desabafa Douglas Farias, seu irmão de 26 anos. “Só me disseram que não tinha leito, não tinha vaga, não tinha nada. Se tivessem algum reforço, quem sabe minha irmã poderia ter sobrevivido.” Karina morreu na madrugada do dia 13, dentro do posto de saúde de Parisi.
Assim que recebeu a notícia, Douglas foi à cidade. Ele chegou no sábado de manhã para acompanhar o enterro de Karina. Como o posto de saúde é pequeno, ele pôde ficar na entrada e observar a remoção do corpo. “Eles pegaram minha irmã, nua, e jogaram dentro de um caixão, sem pano nem nada. Botaram dentro do carro, levaram ao cemitério, tacaram naquele buraco e acabou”, lembra, tentando segurar o choro. Antes de acompanhar o carro da funerária, Douglas ainda teve tempo de ver, de longe, sua outra irmã, Ana Paula, que naquele momento estava sendo transferida para a Santa Casa de Votuporanga. “A gente nem sabia se ela iria conseguir vaga”, lembra. “Depois de enterrar a Karina, eu liguei desesperado para o hospital e me disseram que a Ana Paula estava em um leito, esperando na fila para entrar na UTI.”
No dia 16 de março, três dias depois da morte de Karina, Azeitona voltou às ruas. Desta vez, para anunciar o falecimento de Ana Paula, a 13ª morte em Parisi. Ela faleceu no dia de seu aniversário. De manhã, depois de ficar 48 horas sem notícias da irmã, Douglas recebeu a primeira informação sobre o estado de saúde dela. Soube então que Ana Paula sofrera uma parada cardíaca e não estava respondendo aos medicamentos – mesmo intubada, o pulmão não aceitava mais oxigênio. Douglas perguntou se poderia visitá-la, mas os protocolos de segurança do hospital não aceitavam acompanhantes de pacientes com Covid-19. Algumas horas depois dessa ligação, Douglas recebeu a notícia da morte da irmã. “Eu não imaginava que a dor era tanta, não botava fé que essa doença era desse jeito”, diz. “Tive que perder minha família para enxergar a verdade.”
Ana Paula era mãe de trigêmeos de 5 anos. Em outubro do ano passado, ela ficara viúva. Seu marido morreu em um acidente de trânsito. Seu filho mais velho, de 18 anos, também pegou Covid-19, ficou internado na Santa Casa de Votuporanga, mas recuperou-se e já teve alta. Sua mãe, Valentina, de 62 anos, também adoeceu. Ela procurou o posto de Parisi quando sentiu febre e dores no corpo. Foi diagnosticada com o vírus. Como os hospitais estavam lotados, Valentina acabou sendo transferida para o Centro de Saúde de Valentim Gentil, uma pequena cidade vizinha. Três dias depois da transferência, já não conseguia comer nem conversar. Levada às pressas para o Hospital de Base de São José do Rio Preto, foi intubada.
No dia do falecimento de Ana Paula, no fim da tarde, as ambulâncias do posto de saúde de Parisi circularam pela cidade. Com as sirenes ligadas, o alto-falante nos veículos avisava sobre o toque de recolher. “Atenção: das oito horas da noite às cinco da manhã, todo mundo em suas casas. Ninguém nas ruas e calçadas. Todo mundo em suas casas”, dizia. O anúncio reforçava a sensação mórbida que pairava sobre a cidade depois do falecimento das duas irmãs. As ruas estavam desertas – mas já era tarde.
Nos dois dias seguintes, Parisi registrou mais duas mortes por Covid-19. Uma das vítimas era Bimba, o antigo taxista que mobilizou correntes de oração na cidade. Na Santa Casa de Votuporanga, ele chegou a ser desintubado, mas não resistiu. Faleceu no dia 18 de março. Foi a 15ª vítima da doença na cidade. Francielli Hernandes Gimenez, que já tinha perdido seu avô paterno, agora perdera seu avô materno. Quatro dias depois, Parisi entrou em luto de novo: Valentina, a mãe de Karina e Ana Paula, não resistiu à intubação e morreu de madrugada. Dois dias depois, outro senhor faleceu no posto de saúde da cidade aguardando vaga em hospital. O sistema de saúde de todo o estado de São Paulo estava em colapso. Em apenas duas semanas, o número de óbitos por Covid-19 em Parisi saltou de 11 para 17.
Giane dos Santos, a dublê de vereadora e assistente social, também conhecia todas as vítimas e tem certeza de que a pandemia vai deixar cicatrizes profundas na cidade. Ao rememorar os mortos, ela contava histórias de cada um e descrevia os laços de parentesco. Sobre a mesa de sua varanda, há uma peça de crochê no formato de uma flor, cercada por triângulos brancos, bege e marrons. “Foi a Priscila que fez esse caminho de mesa para mim”, disse, alisando o artesanato. “Ela veio me entregar duas semanas antes de falecer de Covid.”
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