Lavradores de dez comunidades do Vale do Ribeira, em São Paulo, participaram do mutirão – ou puxirão, como dizem – de colheita de coivara FOTO: CLAUDIO TAVARES_ISA_2019
Amarelo sobre verde
Quilombolas fazem primeira colheita de milho após sua técnica de plantio virar patrimônio imaterial
Vitor Hugo Brandalise | Edição 153, Junho 2019
Depois de quarenta minutos de caminhada sob chuva forte, de sucessivas subidas e descidas pela trilha, com lama na altura dos tornozelos, finalmente abriu-se uma clareira e apareceu o milharal. Enfiada na Mata Atlântica, a plantação se localiza a 7 quilômetros do quilombo São Pedro, em Eldorado, no interior de São Paulo, onde vivem descendentes de escravos fugidos e libertos desde meados do século XIX. Eldorado é também a cidade em que o presidente Jair Bolsonaro passou parte da infância e a adolescência. Ao redor dali, no Vale do Ribeira, ficam as comunidades às quais o então deputado se referiu como lugar de gente que “nem para procriador serve mais”, numa palestra no clube Hebraica, no Rio de Janeiro, no início de 2017.
Diante do roçado, no final de maio passado, quinze quilombolas vestiam capas de chuva pretas, azuis ou de plástico transparente. Estavam prestes a colher o milho que haviam cultivado utilizando um sistema agrícola transmitido de geração em geração – a roça quilombola de coivara.
Meses antes, em setembro de 2018, esse tipo de cultivo havia sido reconhecido como patrimônio imaterial brasileiro – especificamente para as comunidades do Vale do Ribeira. Aquela era a primeira colheita depois do reconhecimento. “Agora, os quilombos têm de fazer um plano para salvaguardar suas tradições, a ser colocado em prática com o apoio do poder público”, afirmou Deyvesson Gusmão, um dos coordenadores do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Ele foi ao quilombo São Pedro entregar um certificado às comunidades.
Os pés de milho tinham mais de 2 metros de altura e estavam carregados de espigas, cujo amarelo forte contrastava com o verde vivo da Mata Atlântica. Há gerações, aquela roça é usada pela família do agricultor Urias Morato, um homem miúdo e sorridente de 58 anos. Ele descende do escravo fugido Bernardo Furquim, fundador de alguns dos 88 quilombos que se espalham pelo Vale do Ribeira e se estabeleceram quase duzentos anos atrás. Esses povoamentos têm propriedade coletiva: uma vez reconhecido como quilombo, o território é registrado em nome de uma associação. O lavrador que trabalha num pedaço de terra fica com os seus resultados.
No terreno íngreme, Morato plantou do jeito que aprendeu com o pai e os tios, que, por sua vez, foram instruídos pelos seus ancestrais. Conforme a técnica coivara, um trecho pequeno da floresta (pouco mais de 1 hectare, nesse caso) é derrubado e queimado – e ali se faz o plantio. Há mais de três séculos é assim que se planta em comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, pelo interior do país. Essa lavoura é chamada também de agricultura itinerante: depois de um ou dois anos de colheitas num lugar, outro ponto é usado, para que solo e vegetação se regenerem. “Fiz as contas. Fazia dezessete anos que não plantava nada aqui”, comentou Morato, antes de se embrenhar no milharal com um cesto de vime nas costas.
O reconhecimento da roça quilombola pelo governo federal ajuda a preservar esse tipo de cultivo, que conserva a mata ao redor. Mas nem só de milho vive o quilombo São Pedro. Em hortas fora da floresta, planta-se banana, abóbora, mandioca, pupunha, maracujá. A diversidade da produção impressiona: um levantamento do Instituto Socioambiental, o ISA, que documentou o sistema agrícola para o reconhecimento do Iphan, listou 240 variedades de culturas em dezenove quilombos do Vale do Ribeira – só de arroz há 23 tipos, por exemplo, e nove de laranja.
Morato vive numa casa de alvenaria, como a maior parte dos cerca de cem moradores do quilombo. Sua roça foi a escolhida pela associação local para o primeiro mutirão de colheita coivara depois que esta virou patrimônio nacional. Logo cedo, no farto desjejum antes da faina (inhame, suflê de banana com farinha de milho, farofa de miúdos de boi e café com garapa), o agricultor estava eufórico: “Um dia eu não vou aguentar mais fazer roça, mas aí fica uma filmagem e alguém vai ver.”
Quilombolas de dez comunidades da região percorreram estradas precárias até São Pedro para o mutirão – ou “puxirão”, como dizem. Num trabalho rápido, ignorando a chuvarada, encheram sacas e cestos de milho. Morato voltaria no dia seguinte, com um burro e um cavalo, para terminar a colheita. Segundo seus cálculos, havia reunido grãos suficientes para oito meses de ração das galinhas.
A preocupação atual nos quilombos são os cortes nos programas federais de incentivo à agricultura familiar, cujos recursos começaram a minguar no governo Michel Temer. Em 2015, a cooperativa quilombola local, com 234 lavradores, recebeu 1,2 milhão de reais do Programa de Aquisição de Alimentos, para fornecer 69 variedades de produtos agrícolas às prefeituras. Em 2017, o valor caiu para 200 mil reais. Neste ano, até aqui, não houve nenhum repasse de dinheiro. Os quilombos ainda participam do Programa Nacional de Alimentação Escolar, pelo qual receberam 1,8 milhão de reais no ano passado. “Mas foi para a venda de uma única cultura, de bananas. A riqueza aqui é a alta diversidade. Poucos produtos em grande quantidade não é o perfil”, explicou a bióloga Raquel Pasinato, coordenadora do Programa Vale do Ribeira do isa.
O preconceito em relação ao modo de vida é outro assunto discutido nas comunidades. Mesmo nas escolas da região há discriminação. “Começa com a bronca do professor: ‘Estuda, senão você acaba na roça’, como se fosse ruim. Ninguém discute que lugar de criança é na escola, mas sempre que puder é bom que vá ao plantio com o pai e aprenda. Não dá para perder essa sabedoria por causa do olhar viciado de que só se vive bem na cidade”, disse Luiz Marcos de França Dias, de 32 anos. Primeiro quilombola com curso superior na sua comunidade, ele leciona português e inglês numa escola estadual no quilombo André Lopes, em Eldorado.
O professor relembrou a revolta de seus alunos em 2017, após a ofensa de Bolsonaro aos quilombolas – que rendeu ao presidente um processo no Supremo Tribunal Federal por crime de racismo, posteriormente arquivado. Urias Morato estava perto e entrou no assunto: “A gente se decepciona. Somos quilombolas, negros, mas somos gente igual. Ele não tem o direito de rebaixar as pessoas da área rural, menos ainda de um lugar que ele conhece.” O agricultor contou que foi o pai do presidente, um dentista prático chamado Percy Geraldo Bolsonaro, quem fez a prótese dentária usada por ele ainda hoje. “Faz uns trinta anos, mas eu lembro bem. Estranhei como saiu o filho, porque o pai era bem-educado.”
Já de noite, com o trabalho terminado, um tambor dava a cadência para um ritmo afro – não só o plantio, mas as manifestações artísticas da roça quilombola foram também reconhecidas pelo Iphan. Ao som da viola de arco, Antônio Jorge, de 74 anos, que desde criança faz lavoura no quilombo vizinho de Pedro Cubas, dançava miúdo, um pé fora do chão e depois o outro. Feliz da vida, segurava no ar, desafiadoramente, o documento que atestava sua roça como patrimônio nacional.
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