Kincaid, fotografada em Cambridge: “Mas eu era jovem e não entendia absolutamente nada” CREDITO: EMIL WESOLOWSKI
Antes do coronavírus
Somos todos de lugar nenhum, e lugar nenhum é onde terminamos
Jamaica Kincaid | Edição 165, Junho 2020
Tradução de Otacílio Nunes
Começa assim:
É como se estivéssemos mortos e de algum modo tivéssemos ganhado a oportunidade inédita de ver a vida que vivemos, o jeito como a vivemos: lá estamos nós com amigos que acabamos de encontrar por acaso e a surpresa em nossos rostos (surpresa feliz, surpresa desagradável) quando nos abraçamos (apertado ou nem tanto) e dizemos coisas totalmente a sério ou dizemos coisas só meio a sério, mas nunca dizemos coisas ruins, só dizemos coisas ruins quando a pessoa que abraçamos está completamente fora de nossa vista; e tudo está fora da vista imediata e, no entanto, há tudo na vista imediata; as ruas tão lotadas de pessoas de todos os lugares do mundo e por que elas não retornam de seja lá de onde vêm e todo mundo vem de lugar nenhum porque lugar nenhum é o nome de cada lugar, todos os lugares são lugar nenhum, lugar nenhum é de onde todos nós viemos; os vestidos pendurados na vitrine de uma loja que são destinados a pessoas com metade da minha idade são tão atraentes e a cintura desse vestido é mais fina que meu braço e eu sigo em frente; a combinação homeopática de vitamina C, flavonoides e zinco estão em uma prateleira na Brattleboro Coop e eu os deixo ficar ali, mas na Brattleboro Coop há cortes de carne que costumam ser partes de animais e esses animais foram tratados muito bem e receberam o melhor alimento para comer e é por isso que estão na prateleira de carnes da Brattleboro Coop; o céu azul, o céu azul e as nuvens brancas ficam ainda menos azul e menos brancas, realmente modificados, quando os comparo ao azul do céu e ao branco das nuvens que sei que existem no lugar onde nasci e cresci, St. John’s, Antígua, lugar nenhum, lugar nenhum; as longas filas na entrada/dentro do aeroporto e as pessoas que guardam os vários portais de entrada e depois saída para me permitir comparecer ao enterro do meu irmão mais velho, embora ele fosse nove anos mais novo do que eu era quando nasceu, mas quanto mais novo ele é agora que está morto, ele está morto e eu estou viva no tempo dos mortos, sendo o tempo dos mortos o tempo em que estar vivo é uma forma de estar morto, nós estamos mortos neste momento, pois não podemos ser de todos os jeitos que somos, que são jeitos de estar vivo que são familiares; posso ouvir Martha and the Vandellas fazendo o vocal de apoio para Marvin Gaye enquanto ele canta, fecho os olhos à noite, embora fechar os olhos à noite não traga sono nem sonhos de ser amada, só me faz pensar em como cheguei a achar que estar morta resultaria de bombas nucleares, não de algo que meus olhos não podem nem ver; aquela parte muito sombreada ao longo das margens de um riacho que alimenta um rio mais largo, que alimenta, tudo terminando no Oceano Atlântico, aquela área muito sombreada está começando a ser preenchida com rampas; houve enterros, houve casamentos, houve Bar Mitzvás, houve reuniões às quais nunca compareci e fui penalizada, houve avaliações e eu pensei muito e fiz o melhor que pude para ser imparcial; houve sentenças que não puderam ser completadas por longos períodos de tempo; sinos, todos os tipos de sino, em igrejas, em jantares, em jardins, quando alguém foi enforcado na prisão de Sua Majestade às oito horas de uma manhã de quarta-feira; moças com peitos pequenos, senhoras com peitos grandes, homens que não conseguiam ficar de pé eretos, o telefone tocando, alguém me dizendo que minha mãe tinha morrido; o medo de usar banheiros públicos porque pessoas que eu não conhecia os tinham usado antes; uma coisa que eu teria amado: navegar pelo Atlântico Sul, da Argentina à Cidade do Cabo, África do Sul, e fazer um pequeno desvio para o Estreito de Drake; a maravilha deste mundo, a maravilha deste mundo e não há palavras para ela, cada palavra a estraga; a prisão para mulheres na esquina da Rua Oito com a Sexta Avenida e nela estavam mulheres que tinham violado todos os tipos de regras: sexuais que eram políticas e políticas: Grace Paley e Angela Davis, uma escritora de um tipo e uma escritora de outro, mas pensadoras observando a mesma coisa e não sendo ouvidas e não ser ouvido está na terra dos mortos onde estou agora; Jean e Dinah, Rosita e Clementina; caminhar tão perto de alguém só para ouvir o que a pessoa está dizendo e depois contar a outro alguém o que foi ouvido, assim eu podia fazer graça disso; a alegria de ridicularizar alguém que não conheço e nunca mais encontrarei; houve aquele momento em que eu disse a meu melhor amigo que se me casasse e tivesse filhos ele deveria me internar em uma instituição para loucos porque isso significava que eu nunca seria uma grande escritora e me casei e tive filhos e nunca me tornei uma grande escritora, essa coisa: a grande escritora: agora parece tão ridículo, como um palhaço ou algo indigno de atenção humana, não lixo, de jeito nenhum, só algo para ser, mas, mas, eu era jovem e não entendia absolutamente nada, embora soubesse tudo de tudo e dançasse nas ruas usando o pijama que me tinha sido dado por um hospital de câncer, onde se descobriu que eu não tinha nada de câncer, mas depois que deixei o hospital continuei a usar o pijama porque ele tinha sido tão confortável; e ter filhos, como foi difícil ver que eles não eram eu e que sua infância confortável não era a minha e minha filha menina, ó como ela sofreu com minha confusão e aquele mundo está separado de mim, perdido para sempre por causa dessa coisa que veio de lugar nenhum, como nós todos ela vem de lugar nenhum, China, Estados Unidos da América, Antígua, tudo isso é lugar nenhum, somos todos nós de lugar nenhum, e lugar nenhum é onde terminamos, ele é nosso destino; vivos mas mortos, mortos mas vivos; uma grande separação caiu sobre nossa vida, sobre minha vida certamente e no caminho vejo o mundo: na própria vida há muitos mortos nela, os reinos de mamíferos, vegetais, minerais e todos os outros, estão todos nos vivos às vezes, mas nos mortos o tempo todo.
Texto publicado originalmente na Paris Review
Tradução de Otacílio Nunes
Leia Mais