O recorde histórico de queimadas no Brasil – 272 mil focos de incêndio em 2017 – é uma prévia do que nos aguarda num mundo mais quente FOTO: JOHN MAIER JR_THE IMAGE WORKS
Apocalipse now
O mundo que o aquecimento global nos reserva
Bernardo Esteves | Edição 150, Março 2019
No dia 4 de fevereiro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, declarou à rádio Jovem Pan que “o assunto do clima deve ser tratado no âmbito da academia, pela imprensa e por técnicos, porque precisamos dar foco à administração pública para cuidar de problemas tangíveis”. Salles já havia extinguido, no começo de janeiro, os departamentos e secretarias de sua pasta que tratavam da mudança climática. “Nossa prioridade não é mandar um grupo de vinte pessoas viajar de classe executiva para discutir como vai estar o mundo daqui a 500 anos”, continuou. “Precisamos discutir o Brasil de amanhã.”
Dois dias depois, o Rio de Janeiro foi atingido por um temporal que deixou seis mortos, arrancou centenas de árvores, interditou ruas e derrubou uma ciclovia. É precipitado cravar que a chuva decorreu do aquecimento global, mas a ciência climática projeta justamente tempestades mais intensas e inundações mais frequentes caso não se faça nada para frear o avanço da temperatura do planeta. Naquela noite de verão, o Rio – cidade particularmente vulnerável às intempéries, por suas condições sociais e geográficas – teve um aperitivo do amanhã.
Quem quiser mais detalhes sobre o prato principal encontrará num lançamento recente uma descrição minuciosa de como será o mundo daqui a alguns graus. Livro de estreia do jornalista norte-americano David Wallace-Wells, The Uninhabitable Earth: Life After Warming [A Terra Inabitável: A Vida Depois do Aquecimento] é leitura recomendada para Ricardo Salles, que, numa entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, não soube citar o título de um volume sequer sobre meio ambiente.
Editor-assistente da New York Magazine, onde cobre o aquecimento global, o autor diz não ser ambientalista nem amante da natureza, o que confere mais gravidade à sucessão de horrores que narra ao longo de 320 páginas. Baseado em dezenas de entrevistas com cientistas e nas pesquisas mais recentes sobre o tema, Wallace-Wells nos leva a um mundo de seca crônica, metrópoles submersas e escassez de alimentos, em que as pessoas correrão risco de vida se saírem à rua durante o verão, nas regiões mais quentes. Um mundo com mais suicídios e doenças – tanto as conhecidas quanto aquelas que não estão em nosso radar, causadas por vírus e bactérias ressuscitados pelo derretimento das calotas polares. A violência também vai crescer: haverá mais assaltos, estupros, homicídios e conflitos armados. O contingente de humanos obrigados a fugir de lugares inóspitos pode superar o tamanho da população brasileira atual.
É difícil pensar em qualquer dimensão da existência que escape aos efeitos devastadores da mudança climática. O livro enumera prédios monumentais que podem ser engolidos pelo mar – incluindo a Basílica de São Marcos, em Veneza, a Casa Branca, em Washington, e a sede do Facebook, na Califórnia –, além de esmiuçar como se morre de calor: depois de suar em profusão e sofrer náuseas, a vítima tem o sangue bombeado para a pele, numa tentativa de resfriar o corpo; os órgãos começam a falhar e, em meio à confusão mental, sobrevém um ataque cardíaco.
A maioria dos cenários discutidos no livro se baseia nas projeções mais pessimistas dos cientistas para o fim deste século – aquelas em que a humanidade não consegue conter a escalada dos termômetros. Nesse caso, chegaremos a um mundo no mínimo 5 graus mais quente que o do século XIX, quando começamos a lançar gases do efeito estufa em grandes quantidades na atmosfera.
O Acordo de Paris, assinado por quase 200 países em 2015, tem por objetivo limitar o aquecimento a 2ºC. No entanto, os compromissos assumidos até agora pelos signatários são insuficientes para alcançar a meta e limitarão o aumento a pouco mais de 3ºC. Isso se forem efetivamente cumpridos. Com os patamares atuais de emissões, a humanidade está contratando um plano de pelo menos 4ºC de aquecimento até o fim do século XXI, o bastante para tornar realidade muitos dos pesadelos apontados no livro.
Se é esse o mundo que temos pela frente, por que governos e sociedades civis reagem à ameaça de forma tão lenta e tímida? Filósofos da ciência já afirmaram que, ao tratar da questão com normalidade, nos comportamos como se fôssemos todos céticos do clima. Um resenhista de The Uninhabitable Earth sugeriu que deveríamos encarar o problema como se estivéssemos diante de uma invasão alienígena. Wallace-Wells parece concordar: “É hora de entrar em pânico”, conclamou no título de um artigo para o New York Times.
Resta ver se o terror que ele pretende provocar nos leitores vai estimular algum tipo de mobilização. O autor foi criticado pelo tom alarmista quando publicou, em 2017, o artigo da New York que originou o livro. “Não há necessidade de exagerar as evidências científicas, especialmente quando isso alimenta uma narrativa paralisante de desgraça e desespero”, escreveu na ocasião o climatologista norte-americano Michael Mann.
Alinhado com Mann, o biólogo Marcos Buckeridge – pesquisador da Universidade de São Paulo e coautor do último relatório do IPCC, o painel do clima da Organização das Nações Unidas – prefere guardar o pânico para quando não houver mais nenhuma saída. “Agora é hora de agirmos. Ainda estamos num ponto em que podemos nos revoltar, mudar a governança e sair dessa.”
Menos esperançosas, as ilhas Fiji vêm deslocando povoados inteiros desde o começo da década para que não sejam tragados pelo mar. Nas ilhas Marshall, outro arquipélago cuja existência está posta em risco pela mudança do clima, em 2015 o então ministro das Relações Exteriores Tony deBrum comparou a ameaça da migração forçada a um genocídio. É gritante a diferença de tom em relação ao discurso do chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, que considera o aquecimento global uma ideologia de inspiração esquerdista.
Além das tempestades, outros eventos já mostraram ao Brasil uma prévia do que pode vir por aí. O livro de Wallace-Wells cita o recorde de queimadas em 2017, a crise hídrica de São Paulo em 2015 e as secas que atingiram a Amazônia em 2005 e 2010. Buckeridge – um estudioso de como diferentes cultivos reagirão às alterações de temperatura – diz que os eventos extremos podem trazer danos importantes para o agronegócio e deixa uma pergunta no ar: “O que faremos se perdermos 50% de uma safra de soja devido a uma grande onda de calor?”
A perspectiva está menos distante do que parece. No mês passado, a Associação dos Produtores de Soja e Milho calculou que, por causa de problemas climáticos em doze estados, a safra de soja deste ano deve ser até 14% menor do que indicavam as projeções. O reflexo disso será uma queda nas exportações do grão e um prejuízo nada intangível de até 7 bilhões de reais.
Leia Mais