Manifestação do Movimento Negro Unificado, no Theatro Municipal de São Paulo, em 1978: para os historiadores e militantes, o MNU inaugurou a fase moderna das organizações negras no país, com uma presença maior nas arenas social e política CRÉDITO: FOLHAPRESS_1978
As frentes divergentes
Os caminhos – e os desencontros – do movimento negro no Brasil
Guilherme Henrique | Edição 187, Abril 2022
Na tarde de 6 de dezembro do ano passado, o empresário e ativista fluminense Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa), iniciou uma transmissão ao vivo no Instagram. Ao lado de Thales Athayde, seu filho, e de Leonam Silva, um empresário da Zona Norte do Rio de Janeiro, Celso falou sobre a roupa que usaria em um evento no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do estado de São Paulo. O traje escolhido consistia em camisa azul-clara, calça e terno azul-escuros. “Vou fazer uma costura maneira pra simplesmente desmoralizar o Rene Silva… Vou derrubar ele hoje”, brincou Celso, referindo-se ao editor-chefe do jornal Voz das Comunidades, que na mesma semana havia aparecido nas redes sociais com roupas formais – “alinhadão”, como definiu Leonam Silva.
Três horas depois, Celso Athayde fez outra transmissão, já na sede do governo paulista. “Pessoal, estamos aqui em São Paulo para receber esse prêmio no Palácio dos Bandeirantes, chamado Líderes de 2021. A nossa categoria é empreendedor do ano de impacto social. Então fica aqui meu agradecimento a todos os membros da Favela Holding […]. Meu agradecimento também a essa esteira que é a Cufa, a Central Única das Favelas”, comemorou. O prêmio foi lançado em 2010 pelo Lide – Grupo de Líderes Empresariais, criado por João Doria (PSDB), antes de ele se tornar governador de São Paulo, e que reúne parte da nata do PIB brasileiro. Ao subir ao palco para receber o galardão, Athayde, de 59 anos, ostentava um sorriso largo.
Como de praxe nesse tipo de celebração, foi tirada uma foto com todos os premiados da noite. Das 55 pessoas que aparecem na imagem, apenas duas são negras: o próprio Athayde, sorridente na última fileira, e Jandaraci Araújo, que recebeu uma homenagem especial pelo programa Conselheiras 101, do qual é cofundadora. O programa incentiva a participação de mulheres negras nos conselhos administrativos de empresas.
Na mesma noite de segunda-feira e na mesma cidade, São Paulo, o professor de história e ativista Douglas Belchior, de 43 anos, fundador da ONG União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora (Uneafro) e um dos criadores da Coalizão Negra por Direitos, era o astro de um evento no Teatro Oficina.
Vestindo calça cinza-clara e camisa branca, mesma cor do boné – apetrecho que sempre o acompanha –, Belchior estava no teatro ao lado de duas lideranças históricas do movimento negro, Regina Lucia dos Santos e Milton Barbosa, da deputada federal Gleisi Hoffmann, presidente nacional do PT, e de Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo. O objetivo do encontro era anunciar publicamente a refiliação de Belchior ao partido.
Depois de uma separação de quase duas décadas e de uma passagem conturbada pelo Psol, Belchior estava de volta ao pt, que firmou no Teatro Oficina o compromisso de apoiar a candidatura do ativista a deputado federal nas próximas eleições. “Vamos fazer silêncio e nos ajeitar nesta segunda-feira de Exu, pessoal, que é para abrir os caminhos”, disse a mestre de cerimônias ao público, majoritariamente negro, no teatro lotado e decorado com faixas de protestos, como “Fora Bolsonaro Genocida” e “Pela Vida do Povo Negro”.
É curiosa a coincidência de cidade e de data entre os eventos. Celso Athayde e Douglas Belchior são dois dos principais líderes negros do país, mas seguem caminhos diferentes e até opostos. Athayde criou uma importante rede nacional de apoio às necessidades imediatas das periferias e de incentivo ao empreendedorismo dos seus moradores. Belchior fez da luta antirracista e pelos direitos dos negros seu objetivo principal, almejando ampliar a participação política nas instituições e nos processos decisórios.
Eles representam as duas vertentes dominantes do movimento negro no Brasil: uma mais liberal, outra mais à esquerda. Uma postula que os negros precisam estar preparados para se impor na sociedade tal como ela é. Outra defende que a sociedade, estruturalmente racista, precisa ser modificada.
O termômetro do Largo Varadouro, em Olinda, registrava 33ºC na manhã do dia 1º de dezembro, quarta-feira. Na frente do Mercado Eufrásio Barbosa, hoje um centro cultural, algumas pessoas disputavam uma sombra antes de entrar no belo casarão colonial da cidade pernambucana para acompanhar o encontro nacional Enquanto Houver Racismo Não Haverá Democracia, promovido pela Coalizão Negra por Direitos.
Durante três dias de debates, cerca de duzentas pessoas participaram das reuniões cujo objetivo central foi formular estratégias para as próximas eleições. Criada em 2019 em São Paulo, a Coalizão é hoje uma das mais influentes organizações sociais do país. Reúne cerca de 250 entidades de defesa de direitos das pessoas negras, todas alinhadas à esquerda e empenhadas na luta contra o racismo e no aumento da participação política dos negros.
Depois das primeiras intervenções do dia, chegou a vez da palestra do economista Helio Santos, uma presença muito aguardada no encontro. Santos, de 76 anos, é presidente do Conselho Deliberativo das organizações sociais Oxfam Brasil e do Instituto Brasileiro de Diversidade. Sua fala foi baseada em um texto de catorze páginas que ele escreveu com sugestões para o sucesso do movimento negro nas eleições de outubro. Logo que chegavam ao centro cultural, os militantes recebiam uma cópia do trabalho, intitulado Cenários e Definição de Estratégias para as Eleições.
Após elogiar as proposições feitas no início dos debates, Santos comparou a mobilização do movimento negro com o ativismo ecológico dos anos 1990. “Naquela época, quem lutava por mudanças nas políticas ambientais era chamado de ecochato. Agora, nós precisamos ser os afrochatos”, disse, arrancando risadas do público. Cerca de 150 pessoas acompanhavam o evento presencialmente, e um número incontável de rostos assistia à apresentação por videoconferência.
Santos prosseguiu falando sobre o crescente interesse da mídia pela pauta antirracista. “A expressão ‘racismo estrutural’ é repetida não só pela imprensa, mas também por líderes políticos e corporativos. Mas precisamos seguir expandindo e alcançar influenciadores e artistas. Como trazer um sujeito como o Emicida para estar mais próximo da Coalizão?”, perguntou, citando o rapper que tem grande influência cultural. Além de propor o alinhamento com influenciadores e personalidades, o texto do economista sugere que se faça uma pré-seleção de candidatos para definir aqueles com chances reais de vitória – e a partir daí definir uma agenda rigorosa de eventos e atividades nacionais. Também aconselha que haja um amplo diálogo com partidos de esquerda – definindo interlocutores principais de ambos os lados –, um número mais significativo de mulheres na disputa, a criação de comitês eleitorais em todos os estados brasileiros, divididos em grupos (finanças e interlocução política, por exemplo) e a unificação das diversas vertentes do movimento negro, incluindo quilombolas e a comunidade LGBTQIA+.
A palestra durou uma hora e meia e terminou com um provérbio: “Se desejar ir mais rápido, vá sozinho. Se quiser ir mais longe, vá em grupo.” Santos foi aplaudido de pé e cercado por pessoas que queriam cumprimentá-lo. “Ele é foda”, comentou a escritora e jornalista Bianca Santana, uma das articuladoras da pré-campanha de Belchior a deputado.
Em conversa com a piauí, após a palestra, Santos ressaltou que a articulação do movimento em prol de candidaturas próprias vai criar uma situação da qual não será possível recuar. “Se há um campo em que não tem sorteio ou brinde, esse campo é o poder. Então, nós precisamos conquistar esse espaço. Ao mesmo tempo, os partidos estão percebendo a centralidade da pauta racial”, afirmou.
O objetivo da Coalizão nas próximas eleições é eleger um grande número de pessoas negras, especialmente para o Congresso. No movimento, fala-se da ideia de criar uma unidade semelhante à do Black Caucus, grupo que reúne mais de cinquenta parlamentares negros no Congresso norte-americano, boa parte deles alinhados ao Partido Democrata. No Brasil, dos 594 senadores e deputados federais, 129 declararam ser da cor preta ou parda. É uma representatividade baixa – se considerada a proporção de pretos e pardos na sociedade como um todo (56%) – e nem todos os parlamentares estão nos partidos de esquerda, como gostaria a Coalizão. “Nós não temos para onde correr. Só não podemos nos aliar com a direita, e o que temos na esquerda é isso aí”, brincou a engenheira agrônoma Nilma Bentes, de 74 anos, que também participou dos debates em Olinda. Ela é uma das mais importantes ativistas do país, criadora do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), maior entidade de defesa dos direitos dos negros na Região Norte, também vinculada à Coalizão.
Aumentar o bloco de políticos negros em Brasília passa antes pelo diálogo com os partidos, algo historicamente complicado. A reclamação é que as legendas utilizam o discurso racial para conquistar o apoio do movimento negro, mas não distribuem poder internamente ou quando estão legislando. As demandas são quase sempre engavetadas. “Essa é uma tensão que está nas legendas desde sempre”, disse a deputada estadual Renata Souza (Psol-RJ), em Olinda, na varanda do apartamento com vista para o mar de sua colega de partido, a vereadora recifense Dani Portela. A deputada – que foi chefe de gabinete de Marielle Franco, vereadora do Psol assassinada a tiros – afirmou que o seu partido está “na vanguarda” da questão racial, se comparado a outras legendas de esquerda. “Mas isso foi resultado de muita luta”, completou.
No segundo dia do encontro, quinta-feira, uma das palestrantes foi Anielle Franco, irmã de Marielle. “Mulheres e homens negros, estejam vivos. Isso é tudo que eu peço”, disse ela, que é diretora do instituto que leva o nome de sua irmã, também vinculado à Coalizão Negra. “A Marielle fazia política de uma maneira diferenciada. Está para nascer quem faça como ela. Por isso a mataram. Nós sabemos o que devemos fazer. Mas temos que estar vivos.”
Na Coalizão, as candidaturas precisam se alinhar amplamente com os conteúdos defendidos pela organização. “Ser preto não basta”, disse Belchior – que também participou do encontro em Olinda –, em uma live intitulada A Cor do Voto, em setembro do ano passado. Além de uma escolha certeira de nomes, ele defende a disputa por recursos do fundo partidário. “Os partidos estão colocando bilhões no bolso. É dinheiro público que financia as eleições, e os dirigentes brancos, para manter seus grupos de poder, decidem em quem vão investir”, afirmou. Em Olinda, o economista Helio Santos disse que a Coalizão tem “musculatura” para incidir nos partidos e que a população negra “não pode mais aplaudir decisões de cúpulas partidárias que raramente consideram em sua justa dimensão o aspecto racial”.
Nos três dias de evento, os participantes analisaram a conjuntura do país. No atual contexto, Lula parece ter a preferência da maioria, mas com ressalvas. “Lula, o senhor não pode errar com a gente de novo. Nós precisamos construir um país juntos e estar nos espaços de poder”, afirmou Anielle Franco. Ela disse à piauí que não será candidata neste ano, mas cogita seguir os passos da irmã na política.
A Coalizão Negra por Direitos foi criada depois que alguns graves acontecimentos impactaram os militantes, como o assassinato de Marielle Franco, em 2018, um crime político que até hoje não foi solucionado, e a eleição de Jair Bolsonaro, que vem arruinando as conquistas até agora obtidas pelo movimento. Do exterior, vieram os estímulos do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).
Belchior aponta outros fatos que contribuíram para o estabelecimento da Coalizão. Em fevereiro de 2019, mais de trinta entidades negras denunciaram à Organização dos Estados Americanos (OEA) o pacote anticrime proposto por Sergio Moro, então ministro da Justiça. Argumentaram que o pacote oferecia um salvo-conduto para que policiais deixassem de ser punidos por seus erros em operações – cujas vítimas estão sobretudo nas periferias brasileiras, amplamente habitadas por negros e pardos. Em março, as entidades resolveram pressionar diretamente os parlamentares em Brasília para evitar que a política de cotas nas universidades fosse extinta, como aspiram os ultraliberais próximos do governo, e obtiveram do deputado Rodrigo Maia (PSDB-RJ), então presidente da Câmara, a garantia de que nada seria alterado. “Foi uma puta vitória”, afirmou Belchior.
Em maio, a OEA convidou as lideranças negras para uma audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na Jamaica, para discutir o pacote anticrime de Moro. “Levamos mães que perderam seus filhos para a violência policial. Um dos propósitos da Coalizão é este: eliminar o intermediário”, afirmou Belchior. Foi durante esse encontro que uma funcionária da OEA chamou o grupo de líderes de “coalizão” – título que agradou.
Em novembro do mesmo ano, ocorreu o Primeiro Encontro Internacional da Coalizão Negra por Direitos, em São Paulo, com a participação de cerca de cem entidades, além de organizações da Colômbia, África do Sul, Reino Unido, Togo e Estados Unidos. Foi divulgada uma Carta Programa da Coalizão, na qual constam catorze princípios e 25 tópicos de uma agenda política. “Lutar por um país justo, com igualdade de direitos e oportunidades que, para se concretizar, exige um longo e profundo processo de reparação histórica à população negra brasileira” – este é o primeiro item da lista de princípios, que estabelece um modelo de atuação pautado na defesa dos direitos sociais, no combate à discriminação racial e à intolerância religiosa e sexual.
Na agenda política da Coalizão constam a luta pela erradicação da pobreza, o fim do desemprego e do subemprego da população negra, o direito à saúde e à educação gratuitas, a defesa da continuidade das políticas de cotas e das ações afirmativas. E, como o poder não vem de brinde nem por sorteio, o estímulo a candidaturas negras “do campo progressista” é um tópico-chave.
Militantes da Coalizão afirmam que a organização só foi possível porque outras iniciativas abriram caminho ao longo da história. “Acredito que a Coalizão esteja inserida em uma linha do tempo que começa com a Frente Negra Brasileira, em 1931”, disse a socióloga Flavia Rios, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). A Frente foi a principal organização dos negros depois da abolição da escravatura, em 1888. Criada em São Paulo, chegou a ter 30 mil filiados (alguns falam em 100 mil) e espalhou-se para outros estados. Seu foco primordial era a educação, mas também defendia a atuação política e eleitoral. Em 1936, transformou-se em partido político (foi o primeiro partido negro da história brasileira), até ser dissolvida, com outras legendas, após o golpe de 1937, que implantou o Estado Novo.
Outras iniciativas surgiram nas décadas seguintes, muitas delas nas artes, como o Teatro Experimental do Negro, criado no Rio de Janeiro pelo ator e intelectual Abdias Nascimento, o Centro de Cultura e Arte Negra, em São Paulo, e o Grupo Palmares, de Oliveira Silveira, no Rio Grande do Sul. Também houve uma forte atividade jornalística, com o aparecimento de periódicos como Notícias de Ébano, Alvorada, O Mutirão e A Voz da Negritude. A ditadura militar soterrou o movimento negro, mas, com o enfraquecimento do regime no final dos anos 1970, as coisas começaram a mudar.
Em 1978, surgiu em São Paulo o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, depois chamado apenas Movimento Negro Unificado (MNU), em protesto contra o racismo sofrido por jovens no Clube Tietê, na capital paulista, e a morte sob tortura de Robson Silveira da Luz por policiais, após ele ser acusado de roubar frutas. “Fomos vanguarda. Há quarenta anos colocamos a pauta do genocídio da população negra e da violência policial como uma agenda a ser priorizada”, disse Regina Santos, uma das fundadoras do MNU com Milton Barbosa, seu companheiro há quatro décadas. “O MNU foi importantíssimo, com um caráter reivindicativo importante de buscar cidadania plena para as pessoas negras. Mas essa cidadania não se restringe a buscar melhores condições de vida: vai além e inclui a luta pela cultura cidadã, pelo direito às tradições de matriz africana, do feminismo… Foi muito amplo”, avaliou a artista e professora paraense Zélia Amador de Deus, que também ajudou a criar o Cedenpa e é professora emérita da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Para os historiadores e militantes, o MNU inaugurou a fase moderna do movimento negro no país, levando-o a ter uma presença maior nas arenas social e política. Ele está na origem de organizações como o Geledés Instituto da Mulher Negra, em São Paulo, uma das principais entidades do feminismo negro, criado pela escritora e intelectual Sueli Carneiro, e o próprio Cedenpa, cuja sede fica em Belém. Outras ações incentivaram a formação de um movimento unificado, como a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, ocorrida em Brasília em 1995, a Terceira Conferência Mundial de Combate ao Racismo, realizada em Durban, na África do Sul em 2001, e a Marcha das Mulheres Negras, ocorrida em diferentes regiões do país, em 2015.
“A Coalizão é uma abstração”, disse Belchior à piauí, dois meses após o encontro em Olinda. “Ela se confirma na ação unificada dos grupos, em uma aliança com centenas de entidades. Não existe uma sede, não temos CNPJ.” Decisões de alcance nacional são tomadas em conjunto por dezenove entidades, em uma Secretaria Operativa, que funciona como uma diretoria. Desde a pandemia, esse grupo se reúne semanalmente, às sextas-feiras, por videoconferência, para analisar a conjuntura. Com participações em encontros nacionais e internacionais, como na COP26 Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, realizada na Escócia no ano passado, Belchior tem assumido posição de destaque, embora a organização evite personificar a luta racial em um único rosto.
Douglas Belchior vive com os pais em Poá, cidade onde nasceu, vizinha da capital paulista. Na parte da frente da casa fica o bar de seu pai, um local com mesas brancas de plástico e paredes pintadas de azul-anil. O ativista mora no segundo andar, erguido quando se casou pela primeira vez, há duas décadas. Desde então, teve mais três relacionamentos e seis filhos.
Em meados de fevereiro, Belchior recebeu a piauí na sala da sua casa, onde há uma estante repleta de livros, a maioria deles de história, um sofá-cama e dois retratos, em paredes distintas, de Marielle Franco. O ativista mede 1,85 metro, é corpulento, mas não aparenta estar acima do peso. Tem a pele negra, mas não retinta, e por ser calvo ostenta fios grisalhos apenas no cavanhaque.
Belchior se recuperava da Covid, que o infectou no dia 4 daquele mês. “Ainda sinto cansaço”, comentou. Por isso, estava há algumas semanas sem ir ao Centro de São Paulo na sede da Uneafro, criada por ele em 2009. “Pai, a mãe falou que vem me buscar”, interrompeu Fidel, seu filho de 9 anos que estava na sala vendo vídeos no TikTok. “Calma aí, que o assunto é sério”, pediu Belchior à reportagem. “Ela está achando que eu fui para São Paulo.” E ligou para a ex-mulher.
O pai de Belchior era operário, e a mãe, empregada doméstica, ambos vindos de Minas Gerais para São Paulo. “A minha infância é igual à dos Meninos de Kichute”, disse, citando o filme brasileiro sobre um garoto pobre de 12 anos que sonha ser jogador de futebol. “Meu pai branco, minha mãe negra, e essa mistura vivendo em um bairro periférico da cidade e sonhando em jogar futebol”, resume.
Sua infância foi marcada pela morte da irmã mais nova, Juliana, vítima de sarampo, e pelas horas que passou, ainda garoto, vendendo doces na porta de um supermercado. “Nas eleições de 1989, quando eu tinha 11 anos, pintei o nome do Lula no guarda-sol debaixo do qual eu vendia os doces. O dono do supermercado era malufista e foi reclamar com o meu pai, dizendo que a gente estava fazendo propaganda para comunista.” A inclinação política veio da mãe, uma “petista ferrenha”, na definição de Belchior, e do seu professor de história no ensino médio, Milton Bueno, filiado ao pt.
Na véspera de fazer faculdade, o ativista começou a participar da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro), comandada pelo frade franciscano David Raimundo dos Santos. É uma ONG de cursinhos pré-vestibular gratuitos na periferia da capital paulista. Belchior passou em história na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e ganhou uma bolsa de estudos integral. Em paralelo, envolveu-se com o PT. Tornou-se assessor de Bueno, seu professor, que fora eleito vereador em Poá, em 2000, e fazia parte de uma ala mais à esquerda do partido, ao lado de Luciana Genro, Heloísa Helena e João Batista Oliveira de Araújo, o Babá – todos os três, mais tarde, foram expulsos do PT e participaram da fundação do Partido Socialismo e Liberdade (Psol).
Na campanha de 2002, quando Lula decidiu que seu vice seria o empresário José Alencar, do PT, Belchior torceu o nariz. Duas décadas depois, a provável escolha de Geraldo Alckmin para o mesmo posto também não agrada o ativista. “Vivo a experiência de ter como algoz um estado gestor de uma das polícias mais violentas do país, dirigido há décadas pelo PSDB e em grande parte por Alckmin. É isso que me localiza em relação ao que ele representa. Discordo e lamento a escolha por Alckmin”, disse, embora ressalvando: “Mas não exerço influência sobre essa decisão. Me dedicarei à eleição de Lula seja qual for seu vice, com foco em derrotar Bolsonaro e construir força na Câmara.”
Belchior saiu do PT em 2005, com a insatisfação acumulada. Além de questionar a figura de Alencar, não concordava com a proposta de Reforma da Previdência defendida por Lula e aprovada no primeiro ano de governo. De modo geral, sentia que o partido estava menos à esquerda do que gostaria. Quatro anos depois, rompeu com frei David e fundou a Uneafro com a intenção de continuar atuando no movimento de educação popular, estimulado pelos debates sobre a política de cotas raciais nas universidades. No Psol, integrou a campanha presidencial de Plínio de Arruda Sampaio, um “branquelo, aristocrata e rico”, segundo Belchior. “Mas foi uma honra conviver com ele, ir à casa dele”, ponderou. O ativista se candidatou a vereador ou a deputado federal pelo Psol em todas as eleições entre 2012 e 2018, sem sucesso. Na última tentativa, como candidato a deputado federal, recebeu 46 mil votos, e sua vitória foi até anunciada, mas o partido não obteve o quociente eleitoral. A “vitória” durou apenas quatro horas. “Aqui em frente de casa já estava lotado de gente, todo mundo comemorando”, contou.
O episódio ajudou a minguar a sua relação com o Psol. Belchior criticou o partido por racismo e questionou a distribuição dos recursos de campanha para as candidaturas de pessoas brancas, em detrimento das negras. “Há um acordo tácito na esquerda de que essas situações não podem ser publicizadas. Foda-se. Eu faria de novo, porque já reclamava disso internamente desde 2016. Mas os dirigentes do Psol nunca vão admitir a prática racista”, disse. No ano passado, ele se desfiliou do partido.
Em nota enviada à piauí, Juliano Medeiros, presidente nacional do Psol, afirmou que “as declarações de Douglas Belchior são descabidas”. Disse que o partido tem três mulheres negras entre seus oito parlamentares na Câmara e destina uma cota de 30% para negros em todas as instâncias da direção. Ressaltou que, em 2020, o Psol dedicou mais 50% de recursos a candidaturas de pessoas negras e que em seu último congresso nacional, no ano passado, aprovou a destinação de 5% da verba do fundo partidário para organizações negras do partido. “Diante disso, a desfiliação de Belchior, feita sem qualquer diálogo, parece ter sido motivada, na realidade, por razões de natureza eleitoral”, conclui a nota.
O convite a Belchior para que voltasse ao PT foi feito por Fernando Haddad. “O partido quer valorizar a agenda racial neste contexto de Brasil, que é diferente do governado pelo Lula e pela Dilma, e cujo peso racial é muito grande”, disse o ativista. “O nosso papel, enquanto movimento negro, é pressionar e demandar o partido. Eleger e depois disputar para que nossas exigências sejam atendidas.” A escritora e intelectual Sueli Carneiro, fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra, e Bianca Santana, que dirige a Casa Sueli Carneiro, participam da campanha de Belchior para deputado federal.
Um dia após receber o prêmio do Lide, em São Paulo, Celso Athayde pegou a ponte aérea rumo ao Rio de Janeiro. No fim da tarde de 7 de dezembro passado, fez outra transmissão ao vivo no Instagram para mostrar um novo traje. “Ontem o sapato não estava legal, mas hoje não tem chance para o Rene Silva”, voltou a gracejar. A indumentária consistia em terno e calça azuis, num tom quase celeste, com camisa branca e sapato preto.
O cuidado com o figurino tinha explicação. Pela segunda noite consecutiva, Athayde estaria em um palco para receber um prêmio, dessa vez o Inspira Rio – promovido pela Band no Copacabana Palace –, que a Cufa ganhou na categoria Responsabilidade Social. “Isso aqui é para você da Cufa e da Favela Holding. É para você que está nas favelas. E também às empresas que nos ajudaram nesse desenvolvimento”, disse o empresário após receber o prêmio, em vídeo divulgado nas redes sociais. A piauí pediu uma entrevista com Athayde, por meio da assessoria de imprensa da Cufa. A conversa estava para ser agendada, quando a revista informou que também falaria com outros grupos do movimento negro, como a Coalizão Negra por Direitos. A partir de então, a assessoria informou que “não fazia sentido” ter a Cufa na reportagem, pois isso poderia “alimentar discórdia”.
Athayde nasceu em Olinda, um distrito da cidade de Nilópolis, na Baixada Fluminense, em 1963. Até os 6 anos de idade, viveu em um barraco com os pais e o irmão, César. O casal brigava com frequência. Um dia a mãe resolveu deixar a sua casa e levar os filhos. (Athayde reencontrou o pai quase trinta anos depois, no enterro de César, que foi assassinado em 1995. “Vi suas lágrimas descendo, vi o tamanho da tristeza daquele homem ausente, distante, mas que, apesar de tudo, sofria com a mesma intensidade”, relatou o empresário em um texto publicado no Facebook em 2015.)
A mãe e os dois filhos foram morar na rua. Viveram debaixo de uma marquise na região do bairro de Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Depois, se instalaram debaixo do Viaduto Negrão de Lima, em Madureira, bairro onde, anos depois, o empresário criaria a Cufa. “O cheiro da rua é de urina. Com o tempo, esse cheiro já não é tão ruim. Depois, ele passa a ser o seu cheiro. É uma tragédia, porque você sabe que aquele é o seu cheiro e que as pessoas também estão sentindo”, contou Athayde em dezembro do ano passado, em entrevista ao programa #Provoca, da TV Cultura.
Athayde disse que cheirou cola e pediu esmolas. “Se eu acordasse e visse a luz do Sol, já estava no lucro.” Uma enchente no Rio levou, paradoxalmente, a uma melhoria de vida. A mãe e os dois meninos entraram na fila para receber a ajuda que o estado estava dando aos desabrigados pela chuva torrencial. Os três perambularam por abrigos públicos e conjuntos habitacionais por meses, até se fixarem em um apartamento na Cehab em Senador Camará, na Zona Oeste. Os irmãos vendiam os doces preparados pela mãe e acompanhavam as “rinhas de gente”, disputas entre rapazes em uma favela próxima de onde moravam. Novamente no Facebook, só que em fevereiro de 2014, Athayde contou que a pancadaria entre os jovens era organizada por Rogério Lemgruber, o Bagulhão, conhecido por fundar a organização criminosa Falange Vermelha, que deu origem ao Comando Vermelho.
Aos 19 anos, Athayde entrou na Polícia Militar. O dinheiro para a inscrição e para a compra do calção usado na prova de condicionamento físico foi oferecido por Bagulhão (morto em 1992), segundo o relato publicado em 2015 no Facebook. A passagem do jovem na corporação durou seis meses. “Nunca me sentiria um deles”, confessou no mesmo texto. Athayde, então, tornou-se camelô em Madureira. “Eu vi o Celso começar de baixo, pobre, fugindo do ‘rapa’ e tentando se virar a todo custo. Fomos a manifestações do movimento negro, ele muito garoto ainda”, contou à piauí Ivanir do Santos, de 67 anos, professor de história comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj) e conselheiro estratégico do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), importante organização social do estado do Rio.
Santos estreitou relações com Athayde quando ele passou a se dedicar a atividades relacionadas à música. Primeiro, promovendo bailes charme (um estilo musical dançante baseado em várias vertentes da black music), em Madureira. No início dos anos 1990, se envolvendo com o rap, que começava a ganhar força nas periferias brasileiras. Athayde se orgulha de ter gerenciado o início de carreira de artistas como Racionais, MV Bill e Nega Gizza.
Foi com estes dois últimos músicos que ele criou, na virada dos anos 2000, a Central Única das Favelas, a fim de promover ações culturais e de inclusão social nas regiões marginalizadas do Rio. A entidade se expandiu enormemente desde então, com ramificações em todo o país e no exterior. Em seu site, diz que suas ações já impactaram 15 milhões de pessoas nas favelas brasileiras. “O meu sonho é que o país não tenha favela. Não é orgulho nenhum existir a Cufa. Eu quero que a Cufa seja algo do passado o mais rápido possível”, disse Athayde no #Provoca. Desde 2015, a sede da entidade fica na favela paulista de Heliópolis, uma das maiores do país, com cerca de 200 mil moradores.
Os projetos da Cufa se desdobram em ações humanitárias, culturais e esportivas, programas de saúde e bem-estar, mas não incluem atividades políticas ou eleitorais. Desde 2012, promove a Taça das Favelas, campeonato de futebol entre favelas do Brasil inteiro que já revelou atletas como Patrick de Paula, atualmente no Palmeiras. Outro programa é o Mães da Favela, gestado ao longo da pandemia e que auxilia financeiramente, com 100 reais e cesta básica, famílias comandadas por mulheres. Segundo dados disponíveis no site do projeto, o programa arrecadou 400 milhões de reais até o início de março passado, distribuiu cestas básicas a 3,8 milhões de famílias e transferiu a 198 mil famílias o benefício em dinheiro.
Por suas atividades sociais, a Cufa arrebatou vários prêmios no Brasil e no exterior e chamou a atenção de líderes mundiais, como o ex-presidente norte-americano Bill Clinton, que recebeu Athayde em 2013, em um evento da fundação que leva seu nome. “O Celso é pragmático. Compreendo o que ele faz, mesmo que eu não esteja necessariamente no mesmo campo. Como é que eu vou criticar alguém que recebe um prêmio em Davos justamente por sua atuação?”, disse Santos, do Ceap. Em 2021, Athayde ganhou o prêmio Empreendedor Social do Ano dado pela Fundação Schwab – instituição vinculada ao Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos –, e a Folha de S.Paulo.
Ao longo dos anos, Athayde aprimorou seu papel como líder social e empresário, ampliando os contatos de maneira heterodoxa. “Outro dia estive com Paulo Guedes”, contou ele ao programa #Provoca, falando sobre o encontro ocorrido com o ministro da Economia em julho do ano passado, com o objetivo de articular políticas públicas para as comunidades. E, antes que o questionassem por causa disso, afirmou: “Não tenho amor por nenhum político. Tenho a obrigação de me comunicar com gestores públicos. Meu partido é a favela. É com ela o meu compromisso.”
Athayde não tem amor por políticos nem ojeriza ao capitalismo. Já declarou que a Cufa foi criada para ser uma organização com fins lucrativos e que a entidade “sempre deu lucro”. “Lá não tem voluntariado. Eu queria todo mundo recebendo e, por isso, me chamavam de vendido”, disse ao professor Dennis de Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP), em uma live no YouTube no fim do ano passado. Um dos que o atacavam por causa do seu apreço pelo sucesso financeiro era o ativista e ex-lavador de carros Preto Zezé. “Nem lembro quantas vezes escrevi artigos e longos textos criticando o Celso”, contou, no livro Preto Zezé: Das Quadras para o Mundo.
Os desencontros entre os dois cessaram em 2004, quando Preto Zezé fundou um polo da Cufa no Ceará. Hoje, ele é presidente nacional da entidade. “Celso e Preto Zezé deram um salto. Esse salto não está necessariamente ligado a uma forma de militância política que se costuma relacionar ao movimento negro. São outras formas de organização, que vão existir cada vez mais, em paralelo com os coletivos negros próximos da política. Não se pode estigmatizar as pessoas só porque elas não estão na minha caixinha”, disse Santos.
Em janeiro e fevereiro deste ano, Athayde fez transmissões ao vivo pelo Instagram mostrando galpões lotados de cestas básicas nas sedes da Cufa da Bahia e em Petrópolis, regiões afetadas por fortes chuvas. No início de março, anunciou em um dos vídeos: “Pessoal, vou postar uma série de agradecimentos aqui para prestar contas com quem tem ajudado.” E seguiram-se oito vídeos, citando empresas como Unilever, Ultragaz, Casas Bahia e DeMillus. Apenas na campanha Abrace a Bahia, parceria com a Band, a Cufa diz ter arrecadado pouco mais de 70 milhões de reais em doações.
Uma das frases prediletas de Athayde é esta: “Favela não é carência, favela é potência.” Ele é um entusiasta da ideia de que é preciso desenvolver o empreendedorismo nas periferias, contando com o Estado como principal fornecedor dos serviços públicos. “Quando digo que é preciso que o governo de esquerda crie ações de empreendedorismo para o desenvolvimento econômico, outros pretos dizem que quero transformá-los em capitalistas, como se o nosso papel na sociedade não fosse também fazer gestão daquilo que consumimos”, disse ele ao professor Dennis de Oliveira.
A aposta no empreendedorismo ganhou mais força com a criação, em 2012, da Favela Holding, um grupo formado por mais de vinte empresas que atuam na periferia das cidades. Foram criadas por Athayde em parceria com empresários, alguns deles de fora das comunidades, mas que tinham o desejo de atuar nas favelas. É o caso da Data Favela, empresa de pesquisa e estratégias de negócios montada com Renato Meirelles, do Instituto Locomotiva. Há ainda as de distribuição de produtos (Favela Log), de painéis publicitários (Comunidade Door), de venda de pacote de viagens (Favela Vai Voando) e de chips de celular (Alô Social). Segundo reportagem do portal UOL de dezembro de 2020, as empresas da Favela Holding atendiam naquele ano cerca de 9,5 milhões de pessoas em quinhentas cidades do país. Em 2017, Athayde deixou a Cufa para ser o diretor executivo da holding, mas retornou em meados de 2020, na condição de “colaborador”, para ajudar nos programas desenvolvidos durante a pandemia.
Em 2019, a consultoria Plano CDE, que faz análise de dados sociais das famílias das classes C, D e E, sobretudo nas periferias, realizou uma pesquisa para entender o perfil do empreendedor negro no Brasil. Constatou que a maioria é formada por mulheres (52%), tem entre 18 e 39 anos (68,6%) e renda familiar de até 5 mil reais (66%). Grande parte tem ensino médio completo (48,6%) ou o curso superior completo (31,1%). A pesquisa estabeleceu três tipos de perfis: os que empreendem por necessidade (ou por estarem desempregados), os que o fazem por vocação (por familiaridade com a atividade ou desejo de ser autônomo) e os “engajados”, nos quais o desejo de empreender se soma a algum tipo de afirmação ou luta racial – tendência característica de empreendedores com maior nível de escolaridade. “Empreendedorismo negro e combate ao racismo não são a mesma coisa”, disse Breno Barlach, diretor de Inovação e Pesquisa da consultoria. Um dos perfis do estudo – o do empreendedor por vocação – tenta, inclusive, se distanciar da luta racial.
No início deste ano, Athayde lançou o Favela Fundos, um fundo de investimento de 50 milhões de reais e que será usado em negócios criados nas comunidades. Em entrevista à revista Forbes, ele salientou que o capital veio de empresas da Favela Holding. Os aportes para os empreendedores vão variar entre 50 mil reais e 2 milhões de reais.
Athayde costuma preferir o caminho da conciliação ao do confronto. É abertamente contra movimentos mais aguerridos de protesto. “Os movimentos são importantes. Não só no momento de protestar, mas no ato de construir”, afirmou em uma entrevista ao advogado e professor Silvio Almeida. “O protesto é importante, mas existem vários caminhos que nós precisamos construir para chegar aos nossos objetivos, inclusive a conciliação. Nós pautamos uma agenda positiva. Nos últimos tempos, temos provado o quanto é possível transformar momentos de caos em ativos reais.”
O empresário já disse em entrevistas que, quando morava na rua, sonhava ser rico. Hoje, ele mantém discrição sobre seus rendimentos. Não revela quanto ganha em sua holding nem o tamanho do seu patrimônio. Nas redes sociais, mantém aparência simples e não ostenta nada que possa desviar a atenção das pessoas das atividades profissionais que realiza.
O dia 19 de novembro de 2020 é uma data decisiva para entender alguns dilemas do movimento negro brasileiro. Nesse dia, João Alberto Freitas, um homem negro de 40 anos, foi agredido e asfixiado até a morte por seguranças da Vector, uma empresa que prestava serviços em uma unidade da rede de supermercados Carrefour em Porto Alegre. O crime – ocorrido na véspera do feriado da Consciência Negra – mudou bastante a dinâmica das organizações negras. “Foi um divisor de águas”, ressaltou Belchior.
Após a morte de Freitas, a Coalizão Negra por Direitos, além de prestar apoio à família, pilotou uma série de protestos nas capitais. No dia 23 de novembro, o Carrefour havia perdido 2,2 bilhões de reais em valor de mercado, além de acumular prejuízos por causa de depredações em suas lojas. Dois dias depois, a empresa anunciou a criação de um comitê externo formado por pessoas negras para auxiliá-la no combate ao racismo. Para esse comitê convidou, entre outros, Celso Athayde, Silvio Almeida, Rachel Maia, ex-diretora executiva da Lacoste no Brasil, e Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, que faz pesquisas estatísticas.
Em 2 de dezembro, a Coalizão divulgou uma nota criticando a iniciativa. Para Belchior, “o problema foi que a iniciativa do comitê surgiu do compliance do Carrefour, para limpar a barra da empresa em uma crise institucional”. O advogado Carlos Barata, que representou Milena Alves, viúva de Freitas, afirmou à piauí que o comitê também gerou incômodo na família. “Foi algo unilateral, feito sem diálogo”, disse. Para Belchior, o movimento negro perdeu a chance de impor, nesse episódio, uma marca histórica na luta contra o racismo, acionando judicialmente o Grupo Carrefour Brasil. O militante defendia a responsabilização civil e criminal da empresa francesa, o fechamento da unidade onde Freitas foi morto e um acordo financeiro maior do que o firmado com a família da vítima.
Por determinação da Justiça, a empresa assinou em junho do ano passado um Termo de Ajuste de Conduta destinando 115 milhões de reais para projetos sociais. Em nota enviada à piauí, o Carrefour afirmou que “segue empenhado na valorização da diversidade, inclusão e na luta antirracista”. Disse ainda que o valor acordado no Termo de Ajuste de Conduta será distribuído, ao longo de três anos, para educação, empregabilidade, empreendedorismo e combate à discriminação. A família de Freitas teria sido indenizada em 5,2 milhões de reais, segundo o uol.
A ação civil pública contra o Carrefour teve a participação de entidades do movimento negro, como a Educafro, de frei David, o ex-amigo de Belchior, e o Centro Santos Dias de Direitos Humanos, da Arquidiocese de São Paulo. “A comunidade negra se dividiu ainda mais, porque alguns achavam que o termo de conduta não deveria ter acontecido. Mas a Educafro não concorda com isso”, afirmou frei David. “O futuro da luta negra passa pela judicialização das nossas demandas. Nós estamos no capitalismo, e o capitalismo só se reconhece errando quando enfia a mão no bolso. O dinheiro não é sujo, ele traz justiça a uma morte injusta.”
O embate entre as entidades por causa desse episódio fez surgir uma nova organização do movimento negro: a Frente Nacional Antirracista. “Poucos dias depois do caso Beto Freitas, o Celso Athayde me ligou para falar de outras coisas e eu o provoquei, dizendo que ele precisava estar mais perto do movimento. A Cufa é movimento negro”, disse frei David. Eles conversaram das onze da noite até quase uma da manhã. “No dia seguinte, nos reunimos aqui em São Paulo para criar a Frente.” A entidade também quer exercer protagonismo no debate racial, com a “defesa intransigente dos direitos humanos”, mas sem deixar de dar “destaque para a dimensão econômica”, como explica em seu site. “Queremos repetir ações ousadas como essa do Carrefour”, acrescenta frei David.
Também no site, a Frente Nacional Antirracista diz reunir mais de seiscentas entidades – número muito superior ao da Coalizão Negra por Direitos –, mas não descreve quais são essas organizações. Além da Educafro, participam a União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro) e a Frente Favela Brasil, projeto de partido político criado em 2017 com a participação de Athayde, mas que não conseguiu reunir assinaturas suficientes para disputar eleições.
A Frente Nacional Antirracista é a resposta dos grupos de Athayde e frei David à mobilização política da Coalizão Negra por Direitos. O seu principal rosto, porém, é também de esquerda. Trata-se de Tamires Sampaio, jovem negra de 28 anos, filiada ao PT, diretora do Instituto Lula e secretária adjunta de segurança pública em Diadema, no ABC paulista. Ela esteve na Bahia durante as enchentes e tem participado de programas de tevê e rádio para falar sobre a organização. “Tamires é o expoente de uma nova fase do movimento negro. Ela simplesmente acordou dizendo que o movimento não poderia ficar na condição de pedinte de doação, e que deveria ser protagonista das soluções do seu povo”, escreveu Athayde na revista Exame em 1º de janeiro deste ano. Sampaio não quis dar entrevista à piauí.
Para frei David, a Frente Nacional Antirracista é benéfica ao movimento negro, sobretudo porque acaba com a ideia de que todas as organizações devem estar sob um mesmo teto – com isso sugerindo que nem tudo precisa ficar sob o guarda-chuva da Coalizão Negra por Direitos. “Eu defendo a diversidade. No momento, os brancos têm mais de cinquenta partidos políticos para se organizar. Por quê? Porque eles pensam diferente. É uma ideia racista achar que todo preto é igual”, disse. Para ele, o mais importante é não ser omisso. “Quem não faz nada eu quero pegar pelo pescoço”, brincou.
O professor Ivanir do Santos, do Ceap, disse que tenta “fazer um meio-campo” entre as diversas forças do movimento negro, mas assumiu que não é coisa fácil. “Novos atores surgiram no debate racial. A agenda vai mudando e a gente faz o que é possível.” Para ele, os movimentos não podem confundir tática com estratégia. “As táticas podem ser completamente diferentes e isso deve ser respeitado por todos. Mas a estratégia é única: fortalecer a luta e o combate contra o racismo no Brasil.”
Gilson Rodrigues saltou apressado de um jipe preto, na garagem de um galpão em Paraisópolis, comunidade na Zona Sul de São Paulo. “Desculpa, acabei de voltar de Betim, em Minas, e estava nessa reunião com o pessoal do Sebrae”, disse ele à piauí. “Rapaz, você viu que loucura aí fora?”, emendou. Na entrada do galpão, cerca de 250 pessoas se aglomeravam à espera de uma marmita. No início de fevereiro passado, Rodrigues e sua equipe continuavam a fornecer quentinhas para as pessoas da favela, prática iniciada no começo da pandemia. No auge da crise sanitária e econômica, chegaram a entregar 10 mil refeições por dia, ele contou. Hoje, distribuem cerca de trezentas.
A sala do empresário baiano de 36 anos é ampla e envidraçada. Uma das paredes ostenta publicações em que ele foi destaque, como o jornal Folha de S.Paulo e a extinta revista Época. Na mesa de centro, uma Bíblia – ele se define como “espirituoso” – e uma edição da revista Raça, tradicional publicação negra, que estampou seu rosto na edição de fevereiro passado. “Às vezes fico preocupado com essa exposição. A minha luta é para que a favela e sua população sejam reconhecidas, não o meu rosto”, comentou.
Rodrigues nasceu em Itambé, no Sul da Bahia. Não conheceu o pai, e a mãe morreu quando ele tinha 9 anos. Perambulou pela casa de parentes na Bahia e em São Paulo – até aportar em Paraisópolis, em meados dos anos 1990, onde já viviam alguns dos seus familiares. “Eu vinha para cá, ficava com minhas tias e pensava que queria viver aqui, ser rico e importante na cidade de São Paulo.”
Na juventude, presidiu por dois anos o grêmio estudantil da Escola Estadual Professora Etelvina de Góes Marcucci, em Paraisópolis, e obteve apoio da seguradora Porto Seguro para implantar uma rádio, uma biblioteca e festas culturais na escola. O projeto começou a ser replicado em outras instituições de ensino da favela – e o jovem ficou mais e mais famoso. A sua atuação na escola também chamou a atenção de artistas e empresários da região. “Mandamos cartas, ofícios, tudo para sermos vistos e entrar no radar dessas pessoas.”
Quando deixou a escola, Rodrigues passou a atuar na associação de bairro de Paraisópolis, da qual se tornou presidente. Exerceu vários mandatos consecutivos por dez anos. “Sempre fui o cara do consenso. Aqui, tem gente de tudo que é religião, cor, preferência política. Eu não procuro culpados, mas soluções, e de maneira apartidária”, disse.
Esse propósito serviu de base, em 2019, para a criação do G10, bloco que reúne dez das maiores favelas do Brasil, como Rocinha (no Rio), Heliópolis (em São Paulo) e Coroadinho (em São Luís), representadas por suas associações. O bloco comandado por Rodrigues e associado ao Instituto Escola do Povo está voltado principalmente à alfabetização de jovens.
Representantes do G10 estão em outras 389 favelas, em 16 estados, e cada uma delas tem seus “presidentes de rua”, alcunha criada por Rodrigues para designar os voluntários que organizam as ações locais, como distribuição de cestas básicas e atendimento médico comunitário. O objetivo do G10 é criar uma rede de apoio para empreendedores nas periferias. “Nós não queremos apenas doações, mas investimentos reais que gerem retorno para o investidor e progresso econômico na comunidade”, disse Rodrigues. “Há uma diretriz que eu comando, com seus coordenadores regionais. Nós fazemos um trabalho social, mas o nosso foco é empreender.”
Em Paraisópolis, comunidade com cerca de 100 mil pessoas, há quase uma dúzia de iniciativas, entre elas a Favela Brasil Express, empresa de logística para melhorar a entrega de produtos dentro do bairro, e o Emprega Comunidades, que ajuda moradores da favela a arranjarem trabalho.
Todas essas iniciativas são de empreendedores das favelas. “Eles têm autonomia para tocar seus negócios. O que nós fazemos é ajudar com mentorias, buscar recurso nas empresas, fazer a conexão com executivos”, afirmou Rodrigues, que é responsável direto por apenas um negócio: o G10 Bank, uma instituição financeira para facilitar o crédito a microempreendedores da periferia.
Mas foi outra parceria de Rodrigues que mais chamou a atenção – alimentando a hipótese de que parte do movimento negro estaria flertando com a extrema direita. Em outubro do ano passado, ele travou contato com a Brasil Paralelo, produtora de vídeos que se inspira em ideias negacionistas e revisionistas, como as promovidas pelo falecido ex-astrólogo Olavo de Carvalho, e vem sendo acusada de distorcer os fatos atuais e históricos.
“Eu nem sabia quem era Olavo de Carvalho”, disse Rodrigues, que contou ter ganhado quinhentas assinaturas da Brasil Paralelo para ter acesso à plataforma de streaming da produtora, com todos os seus filmes. “Resolvi distribuir as assinaturas entre os moradores de Paraisópolis”, afirmou. “A gente passa filmes de todo mundo aqui. Revolução chinesa, russa, os italianos. Mas desses ninguém nunca falou nada. E tem mais: por que as pessoas querem decidir que filme o favelado vai ver? Deixa o sujeito escolher. Não sou de direita, mas defendo que a pessoa possa definir o próprio pensamento. Não gosto de curral.”
Para Rodrigues, o G10 faz parte do movimento negro, mesmo que não esteja vinculado a partidos nem participe de protestos. “Não dá para achar que o movimento negro é só um. Nós somos diversos, inclusive nas táticas. Penso assim e não quero ninguém querendo dizer o que devo ou não fazer.” Ao ser perguntado sobre quem preferia ver na Presidência do país em 2023, ele ficou em silêncio por alguns segundos e por fim respondeu: “Vou no Lula, se o vice for o Geraldo Alckmin, que foi ótimo para Paraisópolis. Se for outro vice, não sei.” Depois pegou o copo à sua frente e tomou um gole generoso do suco de maracujá trazido por sua assistente.
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