São Jerônimo, que traduziu a Bíblia no século IV: a tarefa do tradutor é manter vivas quantas línguas puder, como o grego antigo dos EvangelhosSão Jerônimo, que traduziu a Bíblia no século IV: a tarefa do tradutor é manter vivas quantas línguas puder, como o grego antigo dos Evangelhos CREDITO: SÃO JERÔNIMO EM SEU ESTUDO_ DOMENICO GHIRLANDAIO_1480_THE PICTURE ART COLLECTION_ALAMY_FOTOARENA
As palavras e a felicidade
O que aprendi ao fazer uma tradução dos Evangelhos para o português
Marcelo Musa Cavallari | Edição 181, Outubro 2021
Em 2015, uma prestigiosa editora com a qual eu havia feito duas parcerias bem-sucedidas me convidou para discutir novos projetos de “livros de religião”. Como sou católico praticante desde os 22 anos e gosto de estudar a doutrina e a história do catolicismo, acharam que eu poderia ter ideias úteis.
Apresentei duas ou três propostas, sem causar grande entusiasmo nos editores. No meio da reunião, fiz uma sugestão que até aquele momento nunca me ocorrera: traduzir os Evangelhos segundo Mateus, Marcos, Lucas e João, que formam o cerne do Novo Testamento, a parte da Bíblia especificamente cristã. A tradução seria feita do original grego para uma coleção laica de clássicos daquela editora laica. Ideia aceita, saí de lá que não cabia em mim de tão feliz.
Voltei para casa e comecei imediatamente a trabalhar. Ainda sem um plano definido, resolvi experimentar com um trecho especialmente famoso do livro mais importante e influente do Ocidente. Escolhi o Sermão da Montanha. E lá estou eu, diante de Jesus que sobe o monte, senta-se e começa a ensinar: “Bem-aventurados os…” Seguem-se as famosas “bem-aventuranças”. Na escrita grega dos Evangelhos, a palavra é makários. Em português, as “bem-aventuranças” são definidas como “cada um dos oito preceitos que Jesus Cristo pregou aos discípulos e ao povo para poderem os homens alcançar a felicidade”, segundo o Dicionário Caldas Aulete. Ou, na definição do Dicionário Houaiss, “as perfeições evangélicas (oito, segundo o evangelista Mateus) exaltadas por Cristo no Sermão da Montanha, com suas recompensas específicas”. A resposta dos dicionários não me bastou. Explico por que mais adiante.
O grego era a língua franca da época de Jesus, e mesmo os judeus não falavam mais o hebraico. Liam nessa língua e a usavam para o culto, mas, no dia a dia, recorriam ao aramaico, a língua da cidade de Aram, na atual Síria. Quando os mesopotâmicos tomaram Aram, adotaram como sua a língua do povo subjugado, os arameus ou aramaicos. Os judeus, levados para o exílio na Babilônia, adotaram a língua de seus captores.
O aramaico era a língua franca da parte do mundo antigo à margem do Rio Eufrates em que se bebia cerveja e se comia com óleo de gergelim. Para os que viviam em volta do Mediterrâneo como sapos em volta da lagoa, no dizer de Sócrates, a bebida era o vinho, o óleo era o azeite e a língua internacional, o grego. Os judeus, espremidos entre esses dois mundos, falavam aramaico e grego com fluência. Especialmente na Galileia, região (hoje ao Norte de Israel) em que Jesus cresceu e viveu a maior parte de sua vida pública. É provável que os judeus da Galileia falassem, no dia a dia, o grego, de preferência ao aramaico. Dois dos discípulos de Jesus, quase todos galileus, embora judeus, têm nomes gregos: André e Felipe, o que mostra como os judeus daquela região circulavam à vontade na língua grega.
Jesus muito provavelmente falava grego. Talvez tenha pregado, ao menos ocasionalmente, em grego. Algumas de suas conversas devem ter sido em grego, como o diálogo que mantém com Pôncio Pilatos antes de ser crucificado. É muito pouco provável que um governador e funcionário de carreira do Império Romano temporariamente instalado na região falasse aramaico. Não há nenhum indício de que Jesus soubesse latim, de resto uma língua muito pouco usada nas porções orientais do império, a não ser por funcionários de origem romana.
Quase certamente Jesus sabia falar aramaico. Era a língua mais usada pelos judeus, mesmo na Palestina, à beira do Mar Mediterrâneo, e há passagens no Evangelho que registram suas falas nesse idioma. Como na ocasião em que ressuscita uma menina e, ao mandá-la se erguer da cama, usa a expressão aramaica: Talita, cum – “Menina, levanta”. Mas o fato de o evangelista Marcos registrar a fala em aramaico e dar a tradução em seguida pode ser sinal de que era raro Jesus falar publicamente nessa língua. Tanto assim que o evangelista quis registrar essas poucas palavras ditas por ele. Ao se dirigir a uma pessoa que, pela idade e por ser mulher, com uma vida fora de casa muito restrita, dificilmente saberia grego, Jesus pode ter usado o aramaico por ser a língua mais comum entre os judeus de seu tempo.
Por maiores que sejam as credenciais acadêmicas de quem defende que língua Jesus falava ou em que língua ele pregou, tudo que se diz sobre isso é conjectural. O que temos, com certeza, é o registro dos Evangelhos – que são em grego.
O verbete “bem-aventurança” dos dicionários consagra a solução dada pelas duas primeiras traduções dos Evangelhos para o português à palavra grega makários. O português João Ferreira Annes d’Almeida (1628-91) vivia desde os 14 anos em Malaca, então parte das Índias Orientais holandesas e hoje da Malásia. Como pastor calvinista que se tornou, seu público era primordialmente formado pelos portugueses dos impérios coloniais do Oriente. Seu sonho era ser lido no reino e, com isso, ajudar a substituir a Igreja Católica pelo calvinismo em Portugal. Como não era católico, D’Almeida não traduziu a Vulgata, versão em latim da Bíblia que era o texto oficial da Igreja. Foi às fontes e verteu os Evangelhos e os demais livros do Novo Testamento direto do original grego. Sua tradução foi parcialmente publicada em 1681 (a íntegra só veio à luz no século XIX).
Antes, apareceu a tradução para o português do padre António Pereira de Figueiredo (1725-97). Apoiador do iluminista Marquês de Pombal, Figueiredo não tinha muito apreço pelo papado, mas se manteve católico a vida toda e fez sua tradução a partir da Vulgata. Sonhava, porém, com uma igreja nacional portuguesa, nos moldes da que o rei Henrique VIII criara na Inglaterra em 1534.
No século XVII em que D’Almeida viveu, e mesmo no XVIII de Figueiredo – apesar do Iluminismo e da guilhotina –, traduzir a Bíblia ainda era uma tarefa de enorme impacto, e meter mãos à obra significava entrar na briga. E não só com o texto. Também no espaço público.
Mesmo a Vulgata, durante mais de mil anos a única Bíblia aceita pela Igreja do Ocidente, gerou briga. Eusebius Hieronymus, o São Jerônimo, nasceu na província romana da Dalmácia, na cidade de Stridon, cuja localização exata é incerta, mas ficava em algum ponto do que hoje é a Eslovênia ou a Croácia. Jerônimo foi para Roma estudar retórica, isto é, direito. Por volta do ano 360, converteu-se ao cristianismo. Quando tinha 20 e poucos anos, tornou-se padre, asceta e viveu em vários lugares até voltar a Roma, por volta de 380, para ser secretário do papa Dâmaso I, que lhe encomendou uma revisão da Bíblia em latim que havia na época.
Essa tradução latina, incluindo o Antigo Testamento, fora toda ela feita do grego, a partir de uma versão encomendada no século III a.C. por Ptolomeu II, rei do Egito de origem grega. Conta a lenda que ele pediu a 72 sábios judeus de Alexandria uma tradução da Torá, os cinco primeiros livros da Bíblia hebraica, pois queria que a Biblioteca de Alexandria tivesse um exemplar da sabedoria dos judeus em uma língua mais acessível do que o hebraico. Os 72 sábios trabalharam isolados uns dos outros e, após 72 dias, entregaram suas traduções que eram milagrosamente idênticas, palavra por palavra. A tradução para o grego ficou conhecida como Septuaginta (“setenta” em latim) e foi a adotada pelos seguidores de Jesus, que no início do cristianismo eram todos judeus e usavam a tradução grega de Alexandria.
Mas Jerônimo decidiu deixar de lado essa tradução latina antiga, feita do grego, e fazer uma nova, diretamente do hebraico. Sofreu oposição de um peso pesado: Aurelius Augustinus, o Santo Agostinho, que também nascera numa província do Império Romano, a Numídia, no Norte da África, e fora para Roma estudar retórica. Depois de levar uma vida desregrada, encontrou a felicidade no cristianismo. “Fizeste-nos para Ti e inquieto está nosso coração até que descanse em Ti”, diz ele a Deus em suas Confissões, a primeira autobiografia da história (aqui na tradução dos jesuítas J. Oliveira Santos e Antônio Ambrósio de Pina, que nasceu em Manaus, mas cresceu e viveu em Portugal).
Agostinho era um campeão do latim e foi graças a africanos como ele que essa língua passou a ser adotada na liturgia da Igreja do Ocidente, pois até o século IV rezava-se oficialmente em grego, mesmo em Roma. Agostinho achava que um projeto como o de Jerônimo não se justificava. Para ele, a Bíblia hebraica só dizia respeito aos judeus, e os cristãos já tinham a tradução da Septuaginta para o latim, o que bastava, no seu entender.
Jerônimo, no entanto, venceu. Sua tradução para o latim se impôs entre a cristandade ocidental e ficou conhecida como a Vulgata, isto é, a “divulgada”.
Lutero e os reformadores seguintes, no afã de se livrarem da autoridade de Roma, deixaram de lado a Vulgata e decidiram traduzir a Bíblia para as línguas de seus países, recorrendo aos textos originais. Mas o impulso de fazer da Bíblia um livro acessível em diferentes línguas começou com traduções da própria Vulgata – o que sempre gerava grande barulho. Na Inglaterra do século XIV, o padre John Wycliffe, professor em Oxford, fez uma tradução em inglês que causou escândalo, tanto mais que ele se alinhava à concepção de uma igreja popular, sem muita hierarquia e ritos, pois achava mais condizente com a essência do cristianismo.
Seus seguidores, chamados de lollards – uma onomatopeia equivalente a blá-blá-blá –, foram perseguidos e as traduções da Bíblia, proibidas na Inglaterra. A pena para quem infringisse essa lei era a morte, como ocorreu com o reformador William Tyndale, executado como herege em 1536, quando reinava Henrique VIII, que dois anos antes havia separado a igreja da Inglaterra da de Roma. Foi preciso esperar pelo rei James i para que uma tradução “autorizada” em inglês viesse à luz, em 1611. A famosa Bíblia do Rei James, aliás, era em boa parte uma compilação de trechos de traduções proibidas anteriormente, inclusive da que foi feita por Tyndale.
Na segunda metade do século XVI, entretanto, já circulavam várias traduções da Sagrada Escritura. O recente mercado de livros criado com o surgimento da prensa tipográfica fez explodir a oferta de Bíblias em toda parte. O primeiro livro impresso por Gutenberg (entre 1450 e 1455) foi justamente a Vulgata, em latim, mas 22 traduções em diferentes dialetos alemães foram publicadas entre 1466 e 1522. Em 1471, apareceu a primeira Bíblia em italiano. Seis anos mais tarde, em holandês. Em 1478, em espanhol e, pouco depois, em catalão e tcheco. A primeira tradução em português, parcial, apareceu em 1681. Muitas dessas traduções visavam a impulsionar a Reforma, como a da Bíblia de Lutero, publicada em 1534, feita por ele a partir do grego e do hebraico (neste caso com a ajuda de eruditos), mas o objetivo geral era tornar a Sagrada Escritura acessível ao maior número de pessoas.
A Europa do Renascimento, das grandes navegações e descobertas marítimas fervilhava com o comércio e o embate, às vezes violento, de novas ideias. O que antes fora uma única cristandade pareceu tomar a forma de uma nova Babilônia, a terra antiga onde os judeus sempre suspeitaram ter ocorrido a ramificação, numa multiplicidade de idiomas, da língua original falada pelos homens.
Babel – o local que aparece no Velho Testamento como sendo onde se deu essa traumática ruptura – é um erro proposital dos autores da Bíblia hebraica, que gostavam de fazer pouco dos deuses pagãos cunhando corruptelas pejorativas de seus nomes. O grande centro político e comercial da Babilônia chamava-se Bâb-Ilu, “Porta de Deus” (talvez, no plural, Bâb-Ilani, “Porta dos Deuses”). Pois os hebreus escreveram: “Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a Terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a Terra” (na tradução de João Ferreira Annes d’Almeida). “Babel” é um trocadilho com a raiz BLL, em hebraico, que gera o verbo que significa “confundir, misturar” e o substantivo que designa “confusão”.
Deus confundiu a língua de toda a Terra porque os homens, que até então falavam uma mesma língua, decidiram se juntar numa única cidade, contrariando a ordem divina de se espalharem pelo mundo: “E disse cada varão a seu companheiro: ‘Vinde, façamos tijolos e os cozinhemos ao fogo.’ E foi para eles o tijolo por pedra e o barro foi para eles por argamassa. E disseram: ‘Vinde, edifiquemos para nós cidade e torre, e que seu cume chegue aos céus, e faremos para nós fama, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a Terra’”, conta o Gênesis (na tradução do rabino Meir Matzliah Melamed, publicada no Rio de Janeiro em 1962). Decididos a usar os simulacros tecnológicos para chegar aos céus por conta própria, os homens tiveram sua língua confundida, “para que não entenda cada um a linguagem de seu companheiro”.
Parece uma maldição imposta por Deus, ao ser desobedecido, mas há uma longa tradição rabínica que vê na divisão da língua única mais uma benção do que um castigo. Ou ambas as coisas, como costuma acontecer com as ações de Deus. É essa confusão linguística que força os homens a se espalhar pela Terra.
À luz dessa tradição, a filósofa italiana Donatella Di Cesare, em seu livro Grammatica dei Tempi Messianici (Gramática dos tempos messiânicos), enxerga nessa ruptura uma benção política que fala muito de perto a nosso tempo. “Se Deus ordenou a dispersão, a humanidade escolhe em seu lugar a concentração”, escreve ela. “Uma única metrópole, uma cidade mundial, tão grande quanto o mundo, uma cidade-mundo, marcada por uma torre que toque os céus, onde se fale uma única língua: este é o fim último, o resultado extremo do centralismo totalizante e totalitário que anima a empresa babélica.”
Falar uma só língua, seja a língua original de que fala o Gênesis, seja qualquer uma das novilínguas que as utopias políticas não cansam de tentar impor, é talvez a técnica mais eficaz, e certamente a mais insidiosa, de totalitarismo.
A tarefa do tradutor é resistir à língua única. É manter vivas quantas línguas puder, como o grego antigo dos Evangelhos. É levar o habitante de uma língua a conversar com o de outra, distante seja no espaço, seja no tempo.
Trata-se de uma tarefa humilde. As palavras de um tradutor nunca são dele. Sua versão nunca é definitiva, já que não é ele o autor das palavras traduzidas. Por outro lado, sua tarefa é “libertar na sua própria [língua] essa Língua pura que está desterrada no estrangeiro, e descativá-la da obra em que está presa, enquanto a remodela e lhe dá forma”, como escreve o filósofo alemão Walter Benjamin em seu ensaio chamado, justamente, A Tarefa do Tradutor. “Por causa dessa Língua pura, ele [o tradutor] demole e remove as velharias obsoletas da sua língua e lhe alarga as fronteiras”, continua o filósofo.
Há um eco cabalístico nessa ideia. Para Isaac Luria, um dos pais da cabala na Espanha do século XVI, o objetivo da observância religiosa era reunir as partes do Ser Divino que foram espalhadas como consequência da desobediência humana. Para Benjamin, o objetivo da tradução é reunir as partes exiladas da Língua pura perdida. Talvez o poeta Haroldo de Campos tivesse algo assim em mente quando resolveu traduzir partes da Bíblia. Uma anedota repassada por seus amigos conta que, quando traduzia o livro do Gênesis, ele gostava de dizer que não tinha tempo para mais nada, pois estava “traduzindo Deus”. O chiste seria ainda mais verdadeiro se ele estivesse traduzindo o Alcorão. A lenda corrente no islamismo é que o livro sagrado dos muçulmanos foi ditado a Maomé, palavra por palavra, pelo arcanjo Gabriel.
Segundo a tradição judaica, aceita também por cristãos, a Torá (composta dos primeiros cinco livros da Bíblia) foi escrita por Moisés. A única intervenção direta de Deus na escrita está narrada no Êxodo: “E deu a Moisés, ao acabar de falar com ele no Monte Sinai, duas tábuas de testemunho, tábuas de pedra escritas com o dedo de Deus.” São as pedras com os Dez Mandamentos. É uma exceção, pois, para os judeus, a palavra de Deus sempre passou pela caligrafia humana: Josué escreveu o livro que leva seu nome; Davi é o autor dos Salmos; Salomão, do livro da Sabedoria e do Cântico dos Cânticos, e assim por diante.
Os Evangelhos vão ainda mais longe, pois precisam dar conta dos feitos e ditos de um homem, Jesus, que é também Deus. Para seus autores, Jesus é Deus feito homem ou, como diz São Paulo na Epístola aos Filipenses, um Deus que se esvaziou ao encarnar. Trata-se de um Deus encarnado que aceitou as limitações humanas que implicam ter um rosto reconhecível, uma voz própria e uma determinada estatura, nascer num lugar específico, falar uma determinada língua.
Entre os judeus, ninguém discutiria a autoridade da Lei expressa na Torá, porque ela foi transmitida diretamente por Deus, embora não escrita por Ele. Os autores dos Evangelhos se deparam com outra situação. Eles precisam convencer que aquele homem do qual falam, Jesus, é também Deus. Assim, os Evangelhos formam um conjunto de narrativas que tem, de certa forma, objetivo retórico deliberativo ou demonstrativo. Os evangelistas escrevem como se estivessem diante de um juiz e precisassem demonstrar a verdade daquilo em que acreditam, seguindo, como judeus, a Lei que diz, no livro do Deuteronômio, o último da Torá: “Pela boca de duas testemunhas, ou pela boca de três testemunhas, se afirmará a causa.”
Por isso, três Evangelhos – os de Mateus, Marcos e Lucas – reiteram, com narrativas muito semelhantes, os mesmos feitos e ditos de Jesus. São como três testemunhas, como exige a Lei, que repetem, no texto, os mesmos episódios vividos por Cristo. O próprio Jesus, em vários momentos, fazia-se acompanhar de três discípulos para que testemunhassem tudo que fazia: Pedro, João e Tiago. Foi a partir desses três testemunhos, tal como exige a lei judaica, tal como configurados nos Evangelhos, que começa a se propagar a tradição sobre Jesus e seus ensinamentos.
Humildemente, com temor e tremor, meu objetivo com a tradução dos Evangelhos foi entrar na linha antiquíssima de transmissão dessa tradição. Eu me imaginei, então, como um “língua”, o nome que os portugueses davam às pessoas que serviam de intérpretes entre eles e os indígenas no início da colonização do Brasil. O língua, entre a apreensão e a esperteza, tentava fazer comunicar mundos distantes, sempre tateando o abismo do desentendimento.
Levei dois anos para finalizar a minha tradução dos quatro Evangelhos. Não é muito tempo, mas é preciso levar em conta tudo o que ocorreu antes – e então os anos se multiplicam. Minha relação com a língua grega é antiga e devo parte do meu interesse ao cantor e compositor Jorge Mautner. Quando fui estudar linguística na Universidade de São Paulo (USP) aos 18 anos, no fim dos anos 1970, havia lido ou ouvido uma entrevista do mestre do Maracatu Atômico em que ele, expressando-se daquele jeito amalucado de Nietzsche dos trópicos, falava sobre a beleza dos pensadores pré-socráticos. Eu não tinha ideia de quem eram esses pensadores, mas, num dia de aula, me deparei com o livro Os Filósofos Pré-Socráticos, de G. S. Kirk, M. Schofield e J. E. Raven, professores em Oxford, uma edição bilíngue (grego-português) e comentada dos fragmentos de Anaximandro, Heráclito, Parmênides etc. Comprei e mais tarde vim a saber que essa obra é uma das melhores introduções ao tema.
Aprendi o alfabeto grego, decifrando os nomes dos pensadores nos fragmentos nesse livro. Enquanto fazia isso, fui me apaixonando pela língua e pela mente gregas, por essa filosofia dos primórdios, em que a sagacidade e o encantamento ainda caminham juntos. Eu não era católico de verdade, embora, nascido numa família nominalmente católica, tivesse sido batizado e feito a primeira comunhão. Quando me converti, em 1982, aos 22 anos, já me sentia próximo do grego o suficiente para deixar o curso de linguística e me dedicar ao grego e ao latim na universidade, indo em busca da mesma sagacidade e do mesmo encantamento nos Evangelhos.
Assim que comecei a decifrar algumas frases em grego, decidi comprar o Novo Testamento nessa língua. Fui até a Casa da Bíblia, uma livraria (que já não existe mais, como loja física) na Rua Senador Feijó, 133, no Centro de São Paulo. Quando cheguei, estava ocorrendo algum evento especial, uma palestra ou um lançamento, não sei, e havia dezenas de pessoas no local. Cavei uma brecha em meio à multidão e consegui chegar ao balcão, onde me deparei com uma jovem vendedora, linda, azafamada e descabelada (eu tinha 20 e poucos anos e praticamente todas as jovens me pareciam lindas, especialmente as azafamadas e descabeladas). Ela me perguntou o que eu queria. “Um Novo Testamento em grego”, eu disse. Em segundos a vendedora tirou de uma prateleira uma caixinha e me entregou, passando logo a atender outro cliente.
Dentro da caixinha havia um livro de capa dura azul. Era uma edição cara, mas eu tinha juntado dinheiro suficiente para a compra. Paguei e fui embora. Sem saber, levei para casa a melhor edição possível do Novo Testamento em grego, a famosa Nestle-Aland – os sobrenomes de seus editores, os alemães Eberhard Nestle (1851-1913), que cuidou das primeiras edições, e Kurt Aland (1915-94), que prosseguiu o trabalho. Até hoje levo comigo aquele exemplar da 26ª edição, embora tenha recorrido a uma mais recente, a 28ª, para o trabalho de tradução.
Ao começar a ler o livro, fiquei fascinado com a paisagem que o texto grego dos Evangelhos engendrava. Nunca mais parei de frequentar essa paisagem, muito mais seca e árida do que a de outras traduções do Novo Testamento que eu conhecia. Também muito distante do grego em que Heráclito, quinhentos anos antes, descreveu que “a rota para cima e para baixo é uma e a mesma”, na tradução de meu saudoso professor de grego José Cavalcante de Souza, que morreu em 2020, aos 95 anos. Num ensaio sobre os pré-socráticos, Nietzsche escreveu que ainda é possível encontrar um estado elevado da humanidade em meio a uma dúzia de livros “muito antigos, mas jamais esquecidos”. Tenho certeza de que a Bíblia hebraica e o Novo Testamento estão entre esses livros.
Com o tempo, fui aprendendo alguma coisa sobre o texto dos Evangelhos, as conjecturas sobre seu possível método de composição, suas edições e traduções. Aprendi a lê-los melhor e mais fluentemente em grego e a pensar sobre eles. Portanto, de certa forma, o meu trabalho de tradução, que levou apenas dois anos, precisou de quase quatro décadas para se viabilizar.
O maior beneficiário de uma tradução é, provavelmente, o próprio tradutor. Seu trabalho o obriga a ler muito de perto o texto e, por mais que o conheça, o leitor-tradutor acabará sempre descobrindo coisas que não tinha visto. No caso de textos em grego antigo é preciso proceder com muito cuidado. A língua utilizada já não existe como meio de expressão dos que nos são contemporâneos. Sobraram apenas os textos – da épica, da poesia lírica, da filosofia, da tragédia – que, por um motivo ou outro, são venerados no original por algumas pessoas: uma população muito sui generis de estudiosos e tradutores. Não há ninguém mais usando o grego antigo, menos ainda o do Novo Testamento, que, escrito por judeus que rezavam em hebraico e falavam aramaico num império latino, só existe nesse livro.
Em grande medida, o significado das palavras não é senão o modo como os falantes empregam essas palavras. Os dicionários são, assim, um registro desse uso. Para uma língua morta, os únicos falantes são os livros. A necessidade de consultar pacientemente os verbetes dos dicionários, às vezes longuíssimos, é inescapável. Mas não existe um bom dicionário de grego antigo em português.
Quem estuda grego usa em geral o dicionário francês, de Anatole Bailly, e o inglês, de H. G. Liddell e R. Scott. Não há bons dicionários em outras línguas. Para o grego da Bíblia, porém, tudo é mais complicado. Há um dicionário do grego utilizado na Septuaginta – a tradução da Bíblia encomendada por Ptolomeu iii –, que usei, feito por um homem que encarna como poucos o projeto antibabélico dos tradutores: o japonês Takamitsu Muraoka, nascido em Hiroshima em 1938 e que, aos 7 anos, testemunhou a destruição de sua cidade pela primeira bomba atômica da história. Muraoka fez curso universitário em Tóquio, prosseguiu seus estudos de hebraico em Jerusalém, ensinou no Reino Unido, traduziu para o inglês a pioneira e importante gramática hebraica escrita pelo alemão Heinrich Friedrich Wilhelm Gesenius (1786-1842) e compôs, também em inglês, seu dicionário da Septuaginta quando era professor em Leiden, nos Países Baixos, onde encerrou sua carreira acadêmica.
Na mesma Leiden ensinava o linguista neerlandês Robert Beekes (1937-2017), autor de um dicionário etimológico do grego (para o inglês) que também usei, junto com o do francês Pierre Chantraine (1899-1974), do qual eu não consigo me afastar, oriundo que sou da francófila USP. Graças a Beekes, o reinado de Deus, na minha tradução está “à mão”, e não “próximo”, como as palavras de Jesus são normalmente traduzidas. Beekes, pesquisador do indo-europeu – língua conjectural que estaria na base da quase totalidade das línguas europeias e do sânscrito, ramo principal das da Índia –, registra a possibilidade de que a palavra grega eggýs (usada nos Evangelhos para designar “perto”, “próximo”) venha da raiz *gus,[1] que significaria o oco da palma da mão com a qual se consegue pegar um pouco de água, por exemplo. O que está próximo é aquilo que está na palma da mão.
A origem das palavras foi um importante guia em várias das minhas escolhas, tanto para tentar entender um termo grego quanto para achar uma boa equivalência em português. Mas também não existe um bom dicionário etimológico do português. Vali-me do Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, do catalão Joan Corominas (1905-97), que registra um número enorme de variantes de palavras em todas as línguas e dialetos da Península Ibérica, incluindo o português.
A tradução dos Evangelhos era de longe o projeto mais ambicioso a que me dediquei. E o mais complexo. Era preciso ir anotando tudo e, por isso, decidi começar o trabalho em um caderno, usando lápis. Numa página, eu escrevia a tradução do texto; na página ao lado, registrava as dúvidas que tinha e o que ia pesquisando a respeito. Dessa maneira, traduzi o evangelho de Marcos inteiro e o capítulo 5 de Mateus, o das “bem-aventuranças” – o que consumiu 177 páginas dos cadernos. Somente quando achei que tinha resolvido alguns dos problemas fundamentais e estabelecido um método de trabalho, comecei a traduzir direto no computador.
Por tradição, o primeiro evangelho de qualquer edição do Novo Testamento é sempre o de Mateus. Entretanto, para uma parte considerável dos estudiosos, o mais antigo é o de Marcos. É também o mais seco e o mais direto. Mas não foi por esses motivos que comecei por ele.
Em 1998, uma editora britânica lançou uma série com livros da Bíblia, publicados em separado e introduzidos por pessoas, digamos, inesperadas. O evangelho de Marcos teve introdução de Nick Cave, o roqueiro australiano que morou algum tempo no Largo Santa Cecília, em São Paulo. Cave diz na sua introdução que, durante parte de sua vida, não gostava muito do Novo Testamento. Preferia as narrativas mais movimentadas do Antigo e achava a figura de Jesus um pouco anódina e adocicada. Um dia, já adulto e famoso, um vigário anglicano lhe recomendou que deixasse de lado o Velho Testamento e lesse Marcos. “Por que Marcos?”, perguntou. “Porque é curto”, foi a resposta. “Então segui o conselho do vigário e li. E o evangelho de Marcos me arrebatou”, escreve o roqueiro.
E aí está a razão por que comecei com Marcos – é curto. Achei que seria uma boa ideia iniciar pelo evangelista que me levasse do início ao fim da narrativa o mais rápido possível. Além disso, em sua “misteriosa simplicidade e economia”, para usar as palavras de Cave, Marcos desmente a “pregação descafeinada da Igreja” sobre um “homem que sorri benevolente para um grupo de crianças ou pende sereno da cruz”. Para Cave essa pregação “nega o Cristo, Seu sofrimento poderoso e criativo, Sua ira ardente, que nos confronta com tanta força em Marcos”.
Mesmo depois de ter terminado Marcos e passado a traduzir direto no computador, não abandonei o papel. Fiz extensas tabelas com todas as ocorrências de palavras que se repetem nos Evangelhos e dos sentidos em que são usadas para decidir como traduzi-las. Os verbos que se referem a “dizer”, por exemplo. Graças a um livrinho de Henri Fournier dedicado exclusivamente ao tema (Les Verbes “Dire” en Grec Ancien), ocorreu-me algo que pus na tradução. O verbo usado por Mateus para designar algo que foi dito pelos profetas, eíro, em grego, tem uma característica especial: vai da fala para o mundo, e não do mundo para a fala, para usar os termos do filósofo norte-americano John Searle. O verbo não diz algo sobre o mundo, mas, ao ser dito, altera o mundo. Traduzi-o por “declarar”, no sentido em que o juiz de paz diz a um homem e uma mulher: “Eu vos declaro marido e mulher.” Antes de ele o declarar, eles não eram.
As palavras implicadas na ressurreição de Jesus ganharam a maior de todas as tabelas. Usei canetas coloridas para mapear os vários sentidos que essas palavras adquirem, porque nem sempre se referem à ressurreição, mas, às vezes, ao simples erguer de algo ou de alguém. Decidi-me por um grupo de palavras em português que não incluiu “ressurreição”, como “levantar-se” e “erguer-se”. Nenhum dos termos gregos utilizados pelos evangelistas significa “restituir à vida”, primeiro sentido de “ressuscitar” anotado pelo Dicionário Houaiss, que está claramente indo atrás do uso cristão do termo.
Os cristãos eram poucos quando os Evangelhos foram escritos. Ainda não havia se desenvolvido um vocabulário próprio. Eles usaram as palavras que estavam a seu dispor, tal como eram empregadas comumente, e esse foi um dos dois critérios que decidi usar na minha tradução: buscar o sentido que as palavras tinham quando foram escolhidas pelos evangelistas, e não os termos carregados de sentido, cristalizados após 2 mil anos de discussões teológicas.
Não foi completamente sem hesitação que segui meu critério “arqueológico”. Ao terminar o trabalho, havia produzido um texto dos Evangelhos em que não ocorrem as palavras “Cristo”, “batismo”, “anjo”, “apóstolo”. Essas palavras são simples transliterações, isto é, palavras gregas escritas em português. Quando foram escolhidas pelos evangelistas, porém, significavam “ungido”, “mergulho”, “mensageiro” e “enviado”, respectivamente, que foram as palavras utilizadas por mim. Todas as minhas escolhas estão justificadas no livro.
O outro critério que utilizei foi manter o quanto pudesse o efeito estético dos textos, que desenham, com sua aspereza e suas arestas, um Jesus menos adocicado. Os dois critérios se combinam. Afinal, “o propósito da arte é desnudar as perguntas escondidas pelas respostas”, como disse o escritor norte-americano James Baldwin.
A editora que havia se interessado inicialmente pela tradução dos Evangelhos desistiu da publicação, e fui atrás de outras. Procurei cinco ou seis, sem sucesso, o que me levantou a dúvida de que talvez Deus não quisesse minha tradução publicada. Numa das vezes em que fui me confessar na Igreja de Santo Antônio, na Praça do Patriarca, no Centro de São Paulo, perguntei ao padre se ele achava que era isso. “Não”, disse ele, para meu grande alívio. “É a palavra de Deus. Você fez seu trabalho e ela produzirá os frutos.”
Ainda demorou algum tempo e muitas peripécias para que o trabalho se transformasse em um belo livro, Os Evangelhos, com capa dura e bilíngue (grego-português), graças à arte do mestre Plinio Martins Filho, da Ateliê Editorial, e à confiança do amigo de infância Marcelo Azevedo, agora se aventurando na Editora Mnēma. Quando isso ocorreu, no último trimestre do esquisitíssimo ano de 2020, a hesitação, o medo e a ansiedade deram lugar à mais completa felicidade.
Estamos, então, de volta à felicidade. Não à “bem-aventurança” dos dicionários, pois foi pelo termo “felizes” que decidi traduzir o grego makários, que Jesus usa no Sermão da Montanha. É uma palavra muito antiga. Na Ilíada e na Odisseia, makários designa um estado exclusivo dos deuses. “Com bem-aventurados não me avenho./Mas, se a Terra te nutre com seus frutos,/chega-te, e as raias tocarás da morte”, diz Diomedes no Canto VI da Ilíada a um guerreiro que não sabe se é um deus ou um mortal (recorro à tradução magistral de Manuel Odorico Mendes, que se formou em medicina e foi membro da primeira Constituinte brasileira).
Diomedes encadeia as duas principais diferenças entre deuses e homens: homens comem dos frutos da terra, pelos quais têm que dar duro no trabalho. E morrem. Odorico Mendes cravou o mesmo “bem-aventurado” que o padre António Pereira de Figueiredo e João Ferreira Annes d’Almeida haviam utilizado na tradução de makários em sua versão da Bíblia.
“Bem-aventurado”, porém, contém “aventura”, “conjunto de fatores que determinam um acontecimento ou um fim qualquer; contingência, eventualidade”, na definição do Dicionário Houaiss. Há que ter uma dose de sorte para ser bem-aventurado, portanto. O termo que Jesus usou se refere mais ao tipo de felicidade imutável e duradoura de que gozam os deuses ou aqueles especialmente agraciados por eles. O bem-aventurado tem, talvez por sorte, tudo de que precisa. O makários não precisa de nada.
Com essa acepção, o termo gerou até um subgênero poético, o macarismo, um tipo de poema que, elogiando alguém ou algo, termina por compará-lo aos deuses. Pode até ser uma cigarra: “Quanto, cigarra, és ditosa!/Bebendo frescos orvalhos,/Cantas, qual uma rainha,/sobre os ramos dos carvalhos”, diz a Ode 34 da Anacreôntica, uma coleção de versos à moda de Anacreonte, um poeta arcaico grego, composta muito depois, nos primeiros séculos da era cristã (aqui na tradução de Francisco da Silveira Malhão). A cigarra é “macária” porque não precisa de nada, é estoica, vive de orvalho, como acreditavam os antigos, e canta. Os antigos não concebiam a felicidade como um estado interior. Para eles, a felicidade era um dado objetivo e, portanto, feliz era alguém que os outros poderiam dizer que é feliz.
No Sermão da Montanha, Jesus vai muito mais longe. Seus macários não são estoicos que aguentam as inevitáveis vicissitudes. Não estão satisfeitos com o que têm, nem têm tudo de que precisam, uma vez que lhes coube a melhor sorte. Os macários de Jesus têm fome e sede, ainda que de justiça. Choram, serão perseguidos, caluniados. Tudo o que têm, diz Jesus, são vicissitudes e por causa delas são macários. A recompensa que Jesus lhes anuncia é tão transcendente que eles não precisam de nada, a não ser das vicissitudes. Aí começa a concepção cristã de felicidade como bem interior, algo muito diferente da visão dos antigos.
O Sermão da Montanha não é a primeira vez que o termo makários aparece na Bíblia. Na Septuaginta, é a palavra grega utilizada para traduzir o termo hebraico asheri, usado, por exemplo, por Moisés em seu último discurso aos judeus às portas da Terra Prometida: “Bem-aventurado, ó povo cuja salvação vem do Eterno, que é o escudo de tua ajuda e a espada de tua glória.” São Jerônimo traduziu asheri do hebraico do Antigo Testamento e makários do grego do Novo, por beatus, que se tornou, depois, quase um termo técnico do cristianismo e resultou no português “beato”.
Makários, como tradução de asheri, também é a primeira palavra que aparece no livro dos Salmos da Septuaginta, onde é repetida várias vezes, como no Salmo 127. Usei esse salmo como dedicatória da minha tradução dos Evangelhos a meus filhos.
Quando começaram a nascer as crianças, era comum os parentes e conhecidos perguntarem quantos filhos teríamos. Meio em tom de brincadeira, eu respondia que a mesa de casa tinha seis lugares. Cabiam, pois, além de minha mulher e eu, mais quatro crianças. O Salmo 127 diz “Louvável é aquele que teme o Senhor, que anda em Seus caminhos”. A versão que cito, de Adolpho Wasserman e Chaim Szwertszarf, traduz asheri, makários na Septuaginta, por “louvável” e, assim, registra com precisão a ideia antiga e pré-cristã de que feliz é um elogio que os outros precisam fazer. O Salmo prossegue: “Quando tu comes do trabalho de tuas mãos e tudo está bem contigo. Tua mulher será como uma videira frutífera nos recintos internos de teu lar; teus filhos serão como rebentos de oliveira em torno da tua mesa.” Assim, minha última filha, o quarto e último ramo de oliveira que completou a mesa, chama-se Olívia.
Entre deuses imortais, cigarras estoicas e aqueles como nós, que vivem do trabalho de suas mãos, têm mulher e filhos, temem o Senhor e andam em seus caminhos, as palavras e suas traduções vão reverberando-se e clareando umas às outras. É isso, então, a felicidade. Muito mais do que uma aventura.
[1] O asterisco é um padrão utilizado para indicar que a palavra que representa a raiz é uma conjectura.