Telas em suportes de vidro, no Masp, seguindo o projeto original. Nos anos 90, o espaço foi dividido em salas tradicionais de exposição FOTO: PAOLO GASPARINI_INSTITUTO LINA BO E P. M. BARDI_1968
As telas suspensas de Lina Bo Bardi
O Masp reabilita os cavaletes de cristal
Paula Scarpin | Edição 111, Dezembro 2015
O expediente da segunda-feira chegava ao fim. As duas faxineiras que terminavam de encerar os 2 100 metros quadrados do 2º andar do Museu de Arte de São Paulo se entreolharam quando viram o homem magro de barba grisalha saindo do elevador. Famoso entre os funcionários por controlar de maneira minuciosa e obsessiva as atividades do museu, Adriano Pedrosa pôs-se a perambular pela sala de exposições, inspecionando as grandes estruturas de concreto e vidro espalhadas pelo ambiente, que traziam reproduções em lona de conhecidas obras da coleção do museu.
Pedrosa estava ali para acompanhar a execução de seu projeto mais ousado. Logo que foi nomeado diretor artístico do Masp, há pouco mais de um ano, revelou a intenção de retomar os polêmicos cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi, aposentados havia duas décadas. A criação da arquiteta ítalo-brasileira sustentou obras do acervo desde a inauguração da sede da avenida Paulista, em 1968. Seus cavaletes estavam para a expografia do museu como o vão livre está para a arquitetura do edifício.
A exemplo do desenho do prédio – um bloco suspenso no ar –, os cavaletes eram ao mesmo tempo simples e ousados. Fixavam as telas em retângulos de vidro, apoiados por sua vez em pequenos cubos de concreto. Reunidas numa sala grande e desimpedida, sem paredes, pareciam flutuar no amplo espaço de exposição do museu. Se o museu envidraçado convidava a cidade a entrar no ambiente, as obras presas em superfície igualmente transparente pareciam conviver com os edifícios da cidade. E assim foi até os anos 90.
Em 1996, poucos anos depois da morte da arquiteta e do afastamento de seu marido Pietro Maria Bardi do comando da instituição, a nova diretoria tomou decisões que descaracterizariam completamente o projeto original do museu. O novo presidente era o arquiteto Júlio Neves, hoje conhecido pela autoria de grandes empreendimentos imobiliários de estilo neoclássico espalhados pela capital paulista, como a Daslu e o complexo de luxo Parque Cidade Jardim. Logo depois de assumir a presidência do Masp, Neves mandou cobrir as janelas com enormes painéis e dividir o espaço em salas tradicionais de exposição. Os cavaletes de cristal foram para o depósito.
As justificativas para a decisão seguiam duas linhas principais. A primeira, estético-política, aderia ao conceito do “cubo branco”, então adotado por grande parte das instituições de arte. Esse modelo proporcionaria ao público a experiência de apreciar a obra com um mínimo de interferência externa, num ambiente neutro; por outro lado, permitiria que o curador orientasse a visita como quisesse. A segunda justificativa pendia para o lado técnico: as normas de conservação de obras de arte haviam se tornado muito mais rigorosas desde os anos 60. Deixá-las à mercê da luz e do calor que se infiltravam pelas janelas parecia tão insensato quanto pendurar quadros em painéis de vidro.
Curiosamente, na mesma época alguns museus mundo afora passaram a questionar o “cubo branco” e a experimentar novas lógicas de exposição. Os cavaletes de Lina Bo Bardi foram redescobertos e não demoraram a se tornar fetiche entre curadores internacionais. No mesmo ano em que o Masp os aposentou, retratos vitorianos foram exibidos em paredes de vidro na National Portrait Gallery de Londres, numa decisão declaradamente inspirada nos antigos totens de vidro do Masp. Em 2000, o Crown Hall, de Chicago, pediu autorização ao Instituto Bardi para organizar outra exposição nos moldes do projeto da arquiteta ítalo-brasileira.
Adriano Pedrosa também é responsável pela exposição “virtual” do Masp, na conta do Instagram do museu. Segundo ele, houve quem criticasse, ali, a volta dos suportes de vidro. “Esses cavaletes causam uma confusão horrível”, disse um usuário da rede social. O curador parecia se divertir com o parecer. “É verdade, olha que confusão”, comentou, indicando com um gesto largo todo o 2º andar do edifício.
Circulando por entre os cavaletes, Pedrosa não conseguia disfarçar o orgulho. Referia-se às ideias de Lina Bo Bardi como se recitasse trechos do livrinho vermelho de Mao na China da Revolução Cultural. Às vezes dava a impressão de crer que sua curadoria seria ainda mais fiel à filosofia da arquiteta do que ela própria fora capaz. Deu um exemplo de como seria possível avançar. Se, por um lado, Bo Bardi defendia que os cavaletes possibilitariam que as obras fossem dispostas com mais autonomia – menos dependentes de categorias e divisões canônicas da história da arte –, por outro, muitas de suas exposições agrupavam os quadros de maneira bastante conservadora. “O desejável é esse choque de inesperado, de fricção entre as obras; e nós não temos conhecimento de que isso tenha de fato acontecido.”
Na manhã de terça-feira, as reproduções em lona presas aos cavaletes começaram a ser substituídas pelas obras de verdade. Dois rapazes de luvas brancas levantaram delicadamente um quadro e o apoiaram sobre uma empilhadeira hidráulica revestida de tecido. Um terceiro rapaz posicionou a engenhoca diante de uma das placas de vidro, e acionou o mecanismo que elevava o quadro até a altura desejada. O objetivo era alinhar uma barra de metal, fixada na parte traseira da moldura, a dois furos que haviam sido feitos no retângulo transparente. O procedimento parecia se desenrolar em câmera lenta, e terminava com o aparafusamento e o ajuste fino da posição do quadro.
No verso da tela, as Cinco Moças de Guaratinguetá, de Di Cavalcanti, podiam-se ver vários pequenos selos através do vidro que a sustentava. Pareciam carimbos num passaporte e serviram, no passado, como registro da circulação das obras de arte. “Olha como era a logo antiga do MAM carioca”, observou uma moça presente à montagem, apontando para o adesivo maior, que assinalava o empréstimo do quadro para uma exposição em 1954.
Atento, logo atrás do grupo, Pedrosa fez questão de dizer que aquela era uma inovação sua. “Na expografia original, essa parte de trás era coberta de informações sobre a obra”, explicou, destacando a transparência radical de sua curadoria. De novo parecia se orgulhar de ser mais “linista” do que a da própria Lina Bo Bardi.
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