Da esquerda para a direita, Zenão, Descartes, Nietzsche, Spinoza e Hegel, que entendiam muito mais de banquete do que Platão ILUSTRAÇÃO: GETTY IMAGES E THE BRIDGEMAN ART LIBRARY
Assim comia Zaratustra
Descoberto o livro de dieta do autor de 'Além do Bem e do Mal Passado' e 'A vontade de Poder Encher a Pança'
Woody Allen | Edição 5, Fevereiro 2007
Nada como a descoberta de uma obra desconhecida de um grande pensador para deixar a comunidade intelectual alvoroçada e fazer os acadêmicos correrem para todos os lados, como aquelas coisinhas que a gente vê quando examina uma gota d’água num microscópio. Durante uma recente viagem a Heidelberg, feita com o intuito de conseguir algumas raras cicatrizes de duelo do século XIX, calhou de eu esbarrar justamente com um tesouro desse tipo. Quem poderia imaginar que existia um Livro da dieta de Friedrich Nietzsche? Embora sua autenticidade possa parecer temerária para os que se deixam tolher por ninharias, a maior parte dos que estudaram a obra concorda em que nenhum outro pensador ocidental chegou tão perto de conciliar Platão com Dr. Atkins. A seguir, trechos seletos.
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A gordura propriamente dita é uma substância ou a essência de uma substância ou um modo de tal essência. O grande problema tem início quando ela se acumula nos quadris. Entre os pré-socráticos, foi Zenão quem preconizou que o peso era uma ilusão, e que, por mais que um homem comesse, ele sempre engordaria apenas a metade do que engorda um homem que nunca faz flexões de braço. A busca de um corpo ideal obcecava os atenienses e, numa peça perdida de Ésquilo, Clitemnestra quebra seu juramento de nunca mais fazer boquinhas entre as refeições e arranca os olhos quando se dá conta de que não cabe mais em seus trajes de banho.
Foi necessária a mente de Aristóteles para assentar o problema do peso em termos científicos. Num fragmento inicial da Ética, ele afirma que a circunferência de qualquer homem é igual à medida da sua cintura multiplicada por pi. Isso foi o bastante até a Idade Média, quando Tomás de Aquino traduziu uma série de cardápios para o latim e foram inaugurados os primeiros bons restaurantes de frutos do mar. Jantar fora de casa ainda era malvisto pela igreja e o uso de manobristas na porta era um pecado venial.
Como se sabe, durante séculos, Roma encarou o Sanduíche Quente e Aberto de Peru como o máximo da libertinagem. Vários sanduíches foram obrigados a ficar fechados, e só reabriram depois da Reforma. Pinturas religiosas do século XIV foram as primeiras a retratar cenas de condenação eterna em que pessoas com excesso de peso vagavam pelo Inferno, condenadas a saladas e iogurte. Os espanhóis foram especialmente cruéis: durante a Inquisição, um homem podia ser levado à pena de morte por rechear um abacate com carne de siri.
Nenhum filósofo chegou perto de solucionar o problema da culpa e do peso até que Descartes separou mente e corpo, de tal modo que o corpo podia se empanturrar à vontade, enquanto a mente pensava: “E daí? Não sou eu”. A grande questão da filosofia perdura: se a vida não tem sentido, o que se pode fazer com a sopa de letrinhas? Foi Leibniz quem primeiro disse que a gordura consistia em mônadas. Leibniz fazia dieta e exercícios, mas nunca chegou realmente a se livrar de suas mônadas – ou, pelo menos, não daquelas que aderiram às suas coxas. Spinoza, por outro lado, jantava frugalmente porque acreditava que Deus existia em tudo, e é intimidador abocanhar um pãozinho judaico se a gente acha que está lambuzando de mostarda a Causa Primeira de Todas as Coisas.
Existe uma relação entre uma dieta saudável e o gênio criativo? Basta observar o caso do compositor Richard Wagner e verificar o que ele manda para a bucho. Batatinhas fritas, queijo grelhado, nachos – Santo Deus, não há limite para o apetite do sujeito, e mesmo assim sua música é sublime. Cosima, sua esposa, também não fazia feio, mas pelo menos ela corria todos os dias. Numa cena cortada do ciclo dos Anéis, Siegfried resolve ir jantar fora com as donzelas do Reno e, num estilo heróico, consome um boi, duas dúzias de galinhas, diversos cilindros de queijo e quinze barriletes de cerveja. Em seguida, vem a conta e ele está duro. A questão aqui é que, na vida, a pessoa tem direito a um acompanhamento de salada de repolho ou de batata, e a escolha tem de ser feita sob o terror, com a consciência de que não só o nosso tempo na terra é limitado, como também a maioria das cozinhas fecha às dez horas.
A catástrofe existencial para Schopenhauer não era tanto comer, mas sim beliscar. Ele se exasperava com o inútil ato de mascar amendoins e batatinhas fritas enquanto se cumpriam outras atividades. Assim que se começa a beliscar, assegurava Schopenhauer, a vontade humana não consegue resistir ao impulso de beliscar mais ainda, e o resultado é um universo com migalhas espalhadas por toda parte. Não menos desnorteado se mostrava Kant, que sugeria que pedíssemos o almoço de tal modo que, se todos pedissem a mesma coisa, o mundo iria funcionar de maneira moral. O problema que Kant não previu é que, se todos pedirem o mesmo prato, vai sair briga na cozinha para ver quem fica com o último robalo. “Faça o seu pedido como se o fizesse para todos os seres humanos da terra”, recomenda Kant, mas o que acontece se o homem que está ao nosso lado não come guacamole? No fim, é claro, não existem comidas morais – a menos que levemos em conta os ovos quentes.
Em resumo: exceto os meus próprios Além do bem e do mal passado e A vontade de poder encher a pança, entre as receitas de fato importantes que modificaram as idéias ocidentais, a Torta Cremosa de Frango, de Hegel, foi a primeira a utilizar as sobras com implicações políticas relevantes. O Mexidinho de Camarões Fritos com Legumes, de Spinoza, pode ser desfrutado igualmente por ateus e agnósticos, ao passo que uma receita pouco difundida de Hobbes, Costelinhas de Leitão Assadas na Grelha, permanece como um enigma filosófico. O grande lance da Dieta de Nietzsche é que, uma vez que os quilos são perdidos, eles continuam longe de nós – o que não é o caso do Tratado sobre o amido, de Kant.
Café-da-manhã
Suco de laranja
2 fatias de toucinho
Profiteroles
Mariscos assados
Torrada, chá de ervas
O suco da laranja é o próprio ser da laranja manifesto e com isso quero dizer que é a sua natureza genuína, aquilo que lhe confere a sua “laranjidade” e impede que tenha o paladar de, digamos, salmão escaldado ou cereais moídos. Para os devotos, a idéia de qualquer outra coisa que não cereal no café-da-manhã gera sobressalto e pavor, mas com a morte de Deus tudo é permitido, e profiteroles e mariscos podem ser comidos à vontade, e até asinhas de galinha fritas com molho picante e queijo.
Almoço
1 tigela de espaguete, com tomate e manjericão
Pão branco
Purê de batatas
Torta de chocolate com recheio de geléia de damasco e cobertura de chocolate
Os poderosos sempre almoçam comidas gordurosas, bem condimentadas, com molhos pesados, enquanto os fracos ficam beliscando germe de trigo e tofu, convictos de que seu sofrimento lhes renderá uma recompensa na vida após a morte, onde costeletas de cordeiro na grelha fazem o maior sucesso. Mas se a vida após a morte é, como eu sustento, uma eterna recorrência desta vida, então os mansos terão de jantar eternamente pratos de baixas calorias e frango grelhado sem pele.
Jantar
Bife ou salsichas
Batatas douradas
Lagosta à Termidor
Sorvete com creme batido ou bolo em camadas
Esta é uma refeição para o Super-Homem. Deixe que os encucados com a angústia dos altos triglicerídios e da gordura trans comam para agradar ao seu pastor ou nutricionista, mas o Super-Homem sabe que a carne marmorizada e queijos cremosos com sobremesas gordurosas e, ah, sim, muita, muita fritura, é aquilo que Dioniso comeria – se não fosse o seu problema de refluxo.
Aforismos
A epistemologia torna a dieta algo discutível. Se nada existe a não ser dentro da minha mente, não só posso pedir o prato que quiser, como também o serviço será impecável.
O homem é a única criatura capaz de não dar gorjeta para um garçom.