O pinguim negro lembra ao mundo que nem tudo o que muda corre o risco de sumir do mapa FOTO: GETTY IMAGES
Ave, nigérrima ave
O pinguim preto que apareceu na Antártida é, até segunda ordem, um ser solitário, e não uma nova espécie
Marcos Sá Corrêa | Edição 43, Abril 2010
A natureza acaba de botar diante dos cientistas algo nunca antes visto: um pinguim inteiramente negro. E, sobre isso, pelo menos à primeira vista, eles não tinham nada de alarmante a declarar. Logo, até segunda ordem, um pinguim negro não passa de um pinguim negro. É igualzinho ao preto e branco – só que inteiramente preto.
O pinguim preto debutou nos meios de comunicação, com seu figurino inédito, na seção on-line que a secular e insuspeita National Geographic Society dedica a viagens. O repórter Andrew Evans havia fotografado e filmado o animal na Geórgia do Sul, a mesma ilha que o irlandês Ernest Shackleton entronizou na rota das grandes histórias de aventura, ao tirar vivos daquele fim de mundo os 27 tripulantes do Endurance, o navio de exploração que o gelo da Antártida esmagou como uma noz.
O pinguim de Evans correu mundo, embora as fotografias de Andrew Evans não possam competir, naquela latitude, com o registro em preto e branco que o australiano Frank Hurley fez, em 1914, da aventura de Shackleton. Sem falar que no tempo de Hurley não havia Photoshop. E agora, com o pinguim negro espalhado na internet, a primeira reação dos leitores foi levantar a suspeita de que se tratasse de uma fraude, urdida no aconchego do computador pelas infinitas possibilidades de tratamento das imagens digitais.
Só pinguinófilos confessos, como o biólogo Jerry Coyne, correram em defesa incondicional do achado de Evans. Os pinguins foram tema de seu trabalho de pós-graduação e ele não deixou de estudá-los desde então. “Vocês vão gritar ‘Photoshop’ ou ‘tintura de cabelo’, mas até onde minha vista alcança, este é legítimo”, disse Coyne.
O mundo pode ter mudado muito nesses últimos 96 anos. Mas Evans está aí para provar que, quando se sabe viajar no duro, as fronteiras selvagens continuam mais ou menos inéditas. No caso, ele saiu em janeiro de Washington, nos Estados Unidos, rumo à Antártida, pegando um ônibus para o Texas. De lá, veio descendo pela América abaixo, de ônibus em ônibus, até Ushuaia, o porto mais austral do continente sul-americano.
Seu diário de bordo – ou seja, seu blog Bus2Antartica – relata no caminho a passagem pelas queimadas da Amazônia, as piranhas do Pantanal mato-grossense e a fauna ainda mais variada das praias cariocas, até finalmente subir a bordo do Lindblad Expeditions, um navio de turismo extremo, operado em parceria com a National Geographic sob o lema “Qualquer um pode ser um explorador”.
Dali zarpou ao encontro do tal pinguim negro. “Ele parecia um solitário rei preto, movendo-se num tabuleiro de xadrez cheio de peões brancos”, Evans relatou em seu blog. “Nossa primeira impressão foi de perplexidade, até que ele chegou mais perto e nos demos conta de que não se tratava de outro pássaro qualquer, mas realmente de um pinguim diferente.”
O sucesso do mutante foi instantâneo. Nas fotos de Evans, ele se destaca da multidão inconspícua como um modelo em passarela de desfile, anunciando a última moda a milhares de pinguins uniformizados no velho estilo. A bordo, chamou a atenção. “Ele era o único indivíduo assim, embora mais cedo tivéssemos avistado outro pinguim que tinha uma coloração mais pálida.” Alguns passageiros se lembraram de haver encontrado antes espécimens melânicos na baía de St. Andrews, também na Geórgia do Sul.
Vem aí um novo pinguim? A hipótese parece improvável segundo o próprio Evans. Apesar de todo sucesso que teve no barco, o pinguim negro não impressionava muito sua própria colônia. E é nela, não no Lindblad, que ele precisa fazer a melhor propaganda possível de seus trunfos genéticos, se quiser aumentar as chances de passá-los adiante.
Para tornar ainda mais sombrios os prognósticos, assim que as fotografias de Evans foram ao ar, o pinguim negro foi reconhecido pelas pesquisadoras Louise Blight e Sylvia Stevens. Elas já haviam notado sua presença na ilha. Parecia o mesmo. E, pelo menos naquela época, ele não levava o menor jeito “de estar procriando”. Mau agouro para quem verte rios de dinheiro em ternos pretos de Giorgio Armani ou Ermenegildo Zegna, na esperança de sair bem acompanhado das festas onde, em princípio, todo mundo enverga mais ou menos os mesmos trajes.
Consultado pela National Geographic Society, o ornitólogo canadense Allan Baker admitiu que “nunca tinha visto aquilo antes”. Mas arriscou que se tratava de uma dessas mutações raras, tipo “uma em um zilhão”. Outro ornitólogo, Ted Cheeseman, reduziu o fenômeno a mais um exemplo de “melanismo”, a mesma anomalia inócua que no Brasil gera onças pretas sem que elas deixem de ser onças pintadas, como a Panthera onca, de praxe com pigmentos escuros sobrando.
Cheeseman topou ao longo da carreira com casos de melanismo em pelo menos sete das dezessete espécies conhecidas de pinguins. Bem como de leucismo, uma deficiência de pigmentação que os descolore, em vez de escurecer. São mutações que não se transmitem necessariamente às próximas gerações, desviando-se portanto da corrente universal da especiação que, à revelia de Charles Darwin, hoje se chama evolucionismo.
O pinguim negro de Evans parece fadado a ir se apagando do noticiário nos confins da Antártida, depois de seu breve estrelato. O que não comprometerá a popularidade dos pinguins, conquistada no século XVI, quando as viagens oceânicas começaram a substituir o bestiário mitológico dos territórios desconhecidos pelos animais exóticos dos lugares nunca dantes navegados.
Nessa categoria, os pinguins brilham. Têm asas que involuíram para virar nadadeiras. Vivem em extremos de temperatura, da Antártida ao Equador, mas não põem as nadadeiras no hemisfério norte, a não ser quando vão parar em zoológicos. E neles não perdem a capacidade de espicaçar a imaginação humana, como a dupla de machos que, tendo constituído um casal estável no aquário do Central Park, em Nova York, descobriu as alegrias da procriação depois que os tratadores puseram um ovo incubado em seu ninho. São coisas que só acontecem com cobaias, como a reforma ortográfica que, de maneira infame, amputou o trema dos pinguins na língua portuguesa.
Fora essas manipulações, bem piores que as do Photoshop, a grande notícia trazida pelo pinguim negro é que esses animais, pelo menos por enquanto, continuam os mesmos. E a revista piauí, que desde tempos imemoriais nunca escondeu sua excitada admiração pelo bicho boa-praça, não podia deixar de registrar o fato e saudar o pretinho básico: Ave, nigérrima ave!
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