A Europa contém elementos nacionalistas e até fascistas, mas o que os manifestantes ucranianos buscam nela é a ideia da igualdade na liberdade, que hoje precisa ser ressuscitada ILUSTRAÇÃO: JOS COLLIGNON
Barbárie com face humana
A Ucrânia segundo Lênin, Stálin e Putin
Slavoj Žižek | Edição 93, Junho 2014
Nas reportagens para a televisão sobre os protestos em Kiev contra o governo de Viktor Yanukovich, víamos, seguidamente, imagens de manifestantes derrubando estátuas de Lênin. Era um jeito fácil de demonstrar raiva: as estátuas funcionavam como símbolo da opressão soviética, e a impressão que se tem da Rússia de Vladimir Putin é que ela continua a política soviética de dominação russa dos vizinhos.
Tenha-se em mente que foi só em 1956 que as estátuas de Lênin começaram a proliferar em toda a União Soviética: até então, estátuas de Stálin eram bem mais comuns. Mas depois da denúncia “secreta” de Stálin por Kruchev no 20º Congresso do Partido Comunista, as estátuas de Stálin foram substituídas, em massa, pelas de Lênin: Lênin era, literalmente, um substituto de Stálin. Isso ficou igualmente claro com uma mudança, em 1962, no expediente do Pravda. Até então, no canto esquerdo superior da primeira página do jornal do Comitê Central do PC soviético havia um desenho de dois perfis, o de Lênin e o de Stálin, lado a lado. Logo depois que o 22º Congresso rejeitou publicamente Stálin, seu perfil não só foi removido, mas substituído por um segundo perfil de Lênin: agora havia dois Lênin idênticos impressos lado a lado. Em certo sentido, essa estranha repetição tornava Stálin mais presente do que nunca em sua ausência.
Havia, apesar disso, uma ironia histórica no espetáculo de ucranianos derrubando estátuas de Lênin como manifestação da vontade de romper com a dominação soviética e afirmar a soberania nacional. A era dourada da identidade nacional ucraniana não foi a Rússia czarista – quando a autoafirmação nacional ucraniana foi reprimida –, mas a primeira década da União Soviética, quando a política soviética numa Ucrânia cansada de guerra e de fome era a “indigenização”.[1] A cultura e a língua ucranianas foram restauradas, e direitos a serviços de saúde, educação e previdência social introduzidos. A indigenização seguia os princípios formulados por Lênin em termos inequívocos:
“O proletariado não pode deixar de lutar contra a permanência forçada das nações oprimidas dentro das fronteiras de determinado Estado, e é isso exatamente o que a luta pelo direito de autodeterminação significa. O proletariado deve exigir o direito de secessão política para as colônias e para as nações oprimidas por sua ‘própria’ nação. Se não agir assim, internacionalismo proletário será uma expressão sem sentido; a confiança mútua e a solidariedade de classe entre os trabalhadores das nações opressoras e oprimidas serão impossíveis.”
Lênin permaneceu fiel a essa posição até o fim: imediatamente depois da Revolução de Outubro, quando Rosa Luxemburgo afirmou que países pequenos só deveriam adquirir soberania plena se forças progressistas predominassem no novo Estado, Lênin foi a favor do direito incondicional de secessão.
Em sua última luta contra o projeto de Stálin de uma União Soviética centralizada, Lênin mais uma vez defendeu o direito incondicional de secessão das pequenas nações (nesse caso, a Geórgia estava em questão), insistindo na soberania plena das entidades nacionais que compunham o Estado soviético – não admira que, em 27 de setembro de 1922, em carta ao Politburo, Stálin acusasse Lênin de “nacional-liberalismo”. A direção que Stálin seguiria estava clara já na sua proposta de que o governo da Rússia soviética fosse também o governo das outras cinco repúblicas (Ucrânia, Bielorrússia, Azerbaijão, Armênia e Geórgia):
“Se a decisão atual for confirmada pelo Comitê Central do Partido Comunista Russo, ela não será tornada pública, mas comunicada aos comitês centrais das repúblicas para circulação entre os órgãos soviéticos, os comitês executivos centrais ou os congressos dos sovietes das ditas repúblicas antes da convocação do Congresso Panrusso de Sovietes, quando será declarada desejo dessas repúblicas.”
Dessa maneira, foi abolida a interação da mais alta autoridade, o Comitê Central, com sua base: a mais alta autoridade agora simplesmente impunha sua vontade. Para piorar, o Comitê Central decidiu o que a base pediria que a autoridade suprema pusesse em vigor, como se fosse a sua própria vontade. No caso mais evidente, em 1939, os três Estados bálticos pediram para ingressar na União Soviética, que acedeu ao seu desejo. Com isso, Stálin retornou à política czarista pré-revolucionária: a colonização da Sibéria no século XVII e da área muçulmana no século XIX pela Rússia não era mais condenada como expansão imperialista, mas comemorada por ter colocado essas sociedades tradicionais na rota da modernização progressista.
A política externa de Putin é uma clara continuação da linha czarista-stalinista. Depois da Revolução Russa, de acordo com Putin, os bolcheviques infligiram sérios danos aos interesses da Rússia: “Os bolcheviques, por motivos numerosos – que Deus os julgue –, acrescentaram grandes seções do sul histórico da Rússia à República da Ucrânia. Isso foi feito sem levar em conta a composição étnica da população, e hoje essas áreas formam o sudeste da Ucrânia.”
Não é de admirar que retratos de Stálin apareçam novamente em desfiles militares e comemorações públicas, enquanto Lênin foi apagado. Numa pesquisa de opinião realizada em 2008 pelo canal Rossiya ST, Stálin foi eleito o terceiro maior russo de todos os tempos, com meio milhão de votos. Lênin ficou num distante sexto lugar. Stálin é festejado não como comunista, mas como restaurador da grandeza russa depois do antipatriótico “desvio” de Lênin. Putin recentemente usou o termo Novorossiya (“Nova Rússia”) para designar os sete oblasts do sudeste da Ucrânia, ressuscitando uma expressão usada pela última vez em 1917.
Mas a tendência leninista subjacente, embora reprimida, persistiu na oposição comunista clandestina a Stálin. Muito antes de Alexander Soljenítsin, como escreveu Christopher Hitchens em 2011, “as perguntas cruciais sobre o Gulag eram feitas por oposicionistas de esquerda, de Boris Souvarine a Victor Serge e C. L. R. James,[2] em tempo real e envolvendo grande risco. Esses corajosos e prescientes hereges foram de alguma forma riscados da história (eles esperavam coisa muito pior, e frequentemente recebiam)”. A dissidência interna era parte natural do movimento comunista, em nítido contraste com o fascismo. “Não havia dissidentes no Partido Nazista”, prosseguiu Hitchens, “que arriscassem a vida propondo que o Führer tinha traído a verdadeira essência do nacional-socialismo.”
Precisamente por causa dessa tensão no âmago do movimento comunista, o lugar mais perigoso na época dos expurgos dos anos 30 era o topo da nomenclatura: num período de dois anos, 80% dos líderes do Comitê Central e do Exército Vermelho foram fuzilados. Outro sinal de dissidência poderia ser detectado nos últimos dias do “socialismo realmente existente”, quando multidões protestavam cantando canções oficiais, incluindo hinos nacionais, para lembrar aos poderes constituídos as promessas que não cumpriram.
O ressurgimento do nacionalismo russo fez certos acontecimentos históricos serem reescritos. Um recente filme biográfico, Admiral, de Andrei Kravchuk, aplaude publicamente a vida de Aleksandr Kolchak, o comandante do Exército Branco que governou a Sibéria de 1918 a 1920. Mas vale lembrar o potencial totalitário, assim como a absoluta brutalidade, das forças contrarrevolucionárias brancas durante aquele período.
Tivessem os brancos vencido a guerra civil, escreve Hitchens, “a palavra para fascismo seria russa, e não italiana… O general William Graves, que comandou a Força Expedicionária Americana durante a invasão da Sibéria em 1918 (episódio totalmente removido dos livros didáticos americanos), escreveu em suas memórias sobre o antissemitismo, amplamente difundido e letal, que dominava a direita russa e acrescentou: ‘Não sei se a história mostrará qualquer país no mundo, nos últimos cinquenta anos, onde fosse tão seguro cometer assassinatos, e com menos perigo de punição, como na Sibéria durante o reinado do almirante Kolchak.’”
Toda a direita neofascista europeia (na Hungria, França, Itália, Sérvia) apoiou firmemente a Rússia na atual crise ucraniana, o que contradiz a descrição oficial russa do referendo da Crimeia[3] como uma escolha entre a democracia russa e o fascismo ucraniano. Os acontecimentos na Ucrânia – os protestos em larga escala que derrubaram Yanukovich e sua gangue – devem ser entendidos como defesa contra a sombria herança ressuscitada por Putin.
Os protestos foram deflagrados pela decisão do governo ucraniano de priorizar boas relações com a Rússia, em detrimento da integração da Ucrânia à União Europeia. Previsivelmente, muitos esquerdistas anti-imperialistas reagiram às notícias tratando os ucranianos de forma paternalista: que ilusão ainda idealizarem a Europa, serem incapazes de ver que ingressar na ue serviria apenas para transformar a Ucrânia em colônia econômica da Europa Ocidental, condenada, cedo ou tarde, a seguir os passos da Grécia.
Na realidade, os ucranianos estão longe de ignorar as realidades da ue. Têm plena consciência dos problemas e disparidades do bloco: a mensagem deles é apenas a de que sua própria situação é muito pior. A Europa pode ter seus problemas, mas são problemas de rico.
Quer dizer que deveríamos simplesmente apoiar o lado ucraniano no conflito? Há uma razão “leninista” para fazê-lo. Nos últimos escritos de Lênin, produzidos bem depois de ter abandonado a utopia de O Estado e a Revolução, ele explorou a ideia de um projeto modesto, “realista”, para o bolchevismo. Devido ao subdesenvolvimento econômico e ao atraso cultural das massas russas, argumenta ele, não há como a Rússia “passar diretamente para o socialismo”: tudo que o poder soviético pode fazer é combinar a política moderada do “capitalismo de Estado” com a intensa educação cultural das massas camponesas – não a lavagem cerebral da propaganda, mas uma imposição paciente e gradual de padrões civilizados. Os fatos e os números revelavam “que ainda precisamos fazer uma vasta quantidade de planejamento difícil e urgente para alcançar o padrão de um país civilizado comum da Europa Ocidental… Devemos ter em mente a ignorância semiasiática da qual ainda não nos livramos”.
Podemos então interpretar a referência dos manifestantes ucranianos à Europa como um sinal de que seu objetivo, também, é “alcançar o padrão de um país civilizado comum da Europa Ocidental”?
Mas aqui tudo começa a ficar complicado. O que, exatamente, significa a “Europa” a que os manifestantes ucranianos se referem? Ela não pode ser reduzida a uma única ideia: abrange elementos nacionalistas, e até fascistas, mas inclui também a ideia daquilo que o filósofo francês Étienne Balibar chama de égaliberté, liberdade na igualdade, contribuição única da Europa ao imaginário político global, ainda que na prática hoje ela seja em grande parte traída pelas instituições e pelos próprios cidadãos europeus. Entre esses dois polos, há também uma confiança ingênua no valor do capitalismo liberal-democrático europeu. A Europa pode ver nos protestos ucranianos tanto o seu lado melhor como o seu lado pior, o seu universalismo emancipador assim como sua sinistra xenofobia.
Comecemos pela sinistra xenofobia. A direita nacionalista ucraniana é um exemplo do que acontece hoje dos Bálcãs à Escandinávia, dos Estados Unidos a Israel, da África Central à Índia: paixões étnicas e religiosas explodem, e os valores do Iluminismo batem em retirada. Essas paixões sempre estiveram presentes, à espreita; o que há de novo é o descarado cinismo de suas manifestações.
Imagine-se uma sociedade plenamente integrada aos grandes axiomas modernos de liberdade, igualdade, direito à educação e aos serviços de saúde para todos, e na qual o racismo e o sexismo se tornaram inaceitáveis e ridículos. Imagine-se, porém, que, gradualmente, embora a sociedade continue a adotá-los da boca para fora, esses axiomas sejam, na prática, destituídos de qualquer substância.
Eis aqui um exemplo tirado da história europeia mais recente: no verão de 2012, Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro de direita, declarou que um novo sistema econômico era necessário na Europa Central. “Esperemos que Deus nos ajude”, disse ele, “e que não tenhamos de inventar um novo tipo de sistema político, no lugar da democracia, que teria que ser introduzido em nome da sobrevivência econômica… Cooperação é uma questão de força, não de intenção. Talvez haja países onde as coisas não funcionem assim, por exemplo nos países escandinavos, mas uma ralé meio asiática como nós só pode se unir se houver força.”
A ironia dessas palavras não deixou de ser percebida por alguns velhos dissidentes húngaros: quando o Exército soviético entrou em Budapeste para esmagar a revolta de 1956, o recado reiteradamente enviado pelos acuados líderes húngaros ao Ocidente foi que estavam defendendo a Europa contra os comunistas asiáticos. Agora, depois do colapso do comunismo, o governo cristão conservador pinta como seu principal inimigo a democracia liberal consumista multicultural que a Europa Ocidental hoje representa. Orbán já manifestou sua simpatia pelo “capitalismo com valores asiáticos”; se a pressão europeia sobre Orbán continuar, podemos facilmente imaginá-lo mandando um recado para o Leste: “Estamos defendendo a Ásia aqui!”
O populismo anti-imigrantes de hoje substituiu a barbárie pura e simples por uma barbárie com rosto humano. Ele constitui uma regressão da ética cristã do “ama ao teu próximo” ao favorecimento pagão da tribo, em detrimento do bárbaro Outro. Mesmo quando diz defender os valores cristãos, esse populismo é a rigor a maior ameaça ao legado cristão.
“Homens que começam a combater a Igreja em nome da liberdade e da humanidade”, escreveu G. K. Chesterton[4] 100 anos atrás, “acabam deixando de lado a liberdade e a humanidade, se com isso puderem combater a Igreja… Os secularistas não arruinaram as coisas divinas; mas os secularistas arruinaram as coisas seculares, se isso lhes serve de consolo.” O mesmo não se aplicaria aos defensores da religião também? Defensores fanáticos da religião começam atacando a cultura secular contemporânea; não chega a ser uma surpresa quando acabam abandonando qualquer experiência religiosa significativa.
Da mesma forma, muitos guerreiros liberais, de tão ansiosos para combater o fundamentalismo antidemocrático, acabam deixando de lado a liberdade e a democracia, se com isso puderem combater o terror. Os “terroristas” podem estar prontos para arruinar este mundo por amor a outro, mas os combatentes contra o terror estão igualmente dispostos a arruinar seu próprio mundo democrático por puro ódio contra o muçulmano “outro”. Alguns amam de tal maneira a dignidade humana que estão dispostos a legalizar a tortura para defendê-la.
Os que defendem a Europa contra a ameaça dos imigrantes fazem mais ou menos a mesma coisa. Em seu afã de proteger o legado judaico-cristão, estão dispostos a deixar de lado o que há de mais importante nesse legado. Os defensores da Europa contra os imigrantes, e não as supostas multidões de imigrantes que aguardam o momento de invadi-la, são a verdadeira ameaça à Europa.
Um dos sinais dessa regressão é a demanda frequentemente ouvida na nova direita europeia por uma visão mais “equilibrada” dos dois “extremismos”, de direita e de esquerda. Dizem-nos reiteradamente que é preciso tratar a extrema-esquerda (o comunismo) da mesma maneira que a Europa depois da Segunda Guerra Mundial tratou a extrema-direita (os fascistas derrotados). Mas, na realidade, não existe equilíbrio neste caso: a equiparação do fascismo ao comunismo favorece secretamente o fascismo. Dessa maneira, ouve-se a direita argumentar que o fascismo copiou o comunismo: antes de se tornar fascista, Mussolini foi socialista; Hitler também foi nacional-socialista; os campos de concentração e a violência genocida eram características da União Soviética dez anos antes de os nazistas recorrerem a elas; o extermínio dos judeus tem um claro precedente no extermínio dos inimigos de classe etc.
O objetivo desses argumentos é mostrar que um fascismo moderado era uma resposta justificada à ameaça comunista (argumento usado muito tempo atrás pelo historiador alemão Ernst Nolte em sua defesa do envolvimento do filósofo Martin Heidegger com o nazismo). Na Eslovênia, a direita defende a reabilitação da Guarda Nacional anticomunista que combateu os resistentes durante a Segunda Guerra Mundial: seus membros fizeram a difícil opção de colaborar com os nazistas para impedir o mal muito maior do comunismo.
Os liberais convencionais nos dizem que, quando valores democráticos básicos estão sob a ameaça de fundamentalistas étnicos ou religiosos, devemos nos unir em apoio à agenda liberal-democrática, salvar o que puder ser salvo e deixar de lado os sonhos de transformação social mais radical. Mas há uma falha fatal nessa conclamação à solidariedade: ela ignora que o liberalismo e o fundamentalismo estão presos ao mesmo círculo vicioso. É o agressivo esforço para exportar a permissividade liberal que leva o fundamentalismo a reagir e se afirmar com veemência.
Quando ouvimos os políticos de hoje nos oferecerem uma escolha entre a liberdade numa sociedade liberal e a opressão fundamentalista, e fazerem, triunfantemente, a pergunta retórica, “Vocês querem que as mulheres sejam excluídas da vida pública e privadas de seus direitos? Vocês querem que todos os críticos da religião sejam condenados à morte?”, o que deve nos deixar desconfiados é a própria obviedade da resposta: quem iria querer isso?
O problema é que o universalismo liberal perdeu sua inocência há muito tempo. O que Max Horkheimer disse sobre capitalismo e fascismo nos anos 30 ainda se aplica hoje, num contexto diferente: quem não quiser criticar a democracia liberal deveria se calar também sobre o fundamentalismo religioso.
E que dizer do destino do sonho capitalista liberal-democrático europeu na Ucrânia? Não há clareza sobre o que espera a Ucrânia dentro da União Europeia. Cito sempre uma conhecida piada da última década da União Soviética, mas ela não poderia ser mais pertinente. Rabinovitch, um judeu, quer emigrar. O burocrata da Seção de Emigração pergunta por quê, e Rabinovitch responde: “Dois motivos. O primeiro é que tenho medo que os comunistas percam o poder na União Soviética, e que o novo poder nos culpe, nós judeus, por todos os crimes dos comunistas.” “Mas isso é bobagem”, interrompe o burocrata, “nada vai mudar na União Soviética, o poder dos comunistas durará para sempre!” “Bem”, retruca Rabinovitch, “esse é o meu segundo motivo.”
Imagine-se um diálogo parecido entre um ucraniano e um funcionário da União Europeia. O ucraniano reclama: “Há dois motivos para estarmos em pânico aqui na Ucrânia. Primeiro, temos medo de que, sob pressão russa, a ue nos abandone e deixe nossa economia desmoronar.” O administrador da ue interrompe: “Mas o senhor pode confiar em nós. Não os abandonaremos. Na realidade, vamos fazer tudo para tomar conta do seu país, e dizer como devem fazer!” “Bem”, retruca o ucraniano, “esse é o meu segundo motivo.”
Não se trata de saber se a Ucrânia merece a Europa, e se é boa o suficiente para entrar na ue; trata-se de saber se a Europa de hoje corresponderia às aspirações dos ucranianos. Se a Ucrânia acabar numa mistura de fundamentalismo étnico e capitalismo liberal, com oligarcas dando as cartas, será tão europeia quanto a Rússia (ou a Hungria) de hoje. (Dá-se muito pouca atenção ao papel desempenhado pelos vários grupos de oligarcas – os “pró-russos” e os “pró-ocidentais” – nos acontecimentos na Ucrânia.)
Alguns comentaristas políticos alegam que a ue não deu à Ucrânia apoio suficiente no conflito com a Rússia, que a resposta da ue à ocupação e à anexação russa da Crimeia foi tíbia. Mas outro tipo de apoio esteve ausente de forma ainda mais conspícua: a proposta de qualquer estratégia viável para romper o impasse.
A Europa não estará em condição de oferecer essa estratégia enquanto não renovar seu compromisso com o núcleo emancipador de sua própria história. Só deixando para trás o cadáver em decomposição da velha Europa podemos manter vivo o legado europeu de égaliberté. Não são os ucranianos que devem aprender com a Europa: a Europa é que precisa aprender a corresponder às expectativas do sonho que motivou os manifestantes na praça Maidan. A lição que liberais amedrontados devem aprender é que só uma esquerda mais radical pode salvar o que vale a pena ser salvo no legado liberal de hoje.
Os manifestantes da Maidan foram heróis, mas a verdadeira luta – a luta pelo que será a nova Ucrânia – começa agora, e será muito mais dura do que a luta contra a intervenção de Putin. Um novo e mais arriscado heroísmo será necessário. Já foi exibido pelos russos que se opõem à paixão nacionalista de seu próprio país e a denunciaram como ferramenta de poder. É hora de ratificar a solidariedade básica de ucranianos e russos, e de rejeitar os próprios termos do conflito. O próximo passo é uma demonstração pública de fraternidade, estabelecendo-se redes organizacionais entre os ativistas políticos ucranianos e a oposição russa ao regime de Putin. Pode parecer utópico, mas só esse jeito de pensar é capaz de conferir aos protestos uma dimensão verdadeiramente emancipadora. Do contrário, o que nos restará é um conflito de paixões nacionalistas manipuladas por oligarcas. Esses jogos geopolíticos não têm interesse algum para uma política de emancipação autêntica.
[1]A política de dar maior autonomia às regiões não russas da URSS foi chamada de korenizatsiya, que significa, literalmente, volta às raízes.
[2]O militante comunista e jornalista francês Boris Souvarine (1895–1984) rompeu com Stálin nos anos 20; o escritor e revolucionário russo Victor Serge (1890–1947) foi preso por ser contra Stálin e morreu no exílio; o historiador e teórico do pós-colonialismo Cyril Lionel Robert James (1901–89), nascido na então colônia britânica de Trinidad, foi crítico do stalinismo e depois rompeu também com os trotskistas.
[3]A votação, no dia 17 de março, aprovou a independência da região e sua anexação à Rússia; o território havia sido cedido à Ucrânia por Kruchev em 1954.
[4]O britânico Gilbert Keith Chesterton (1874–1936) foi um escritor, teólogo autodidata e defensor do cristianismo.
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