O encontro entre o bisneto e a bisavó: “Encontrei esse dedo no jardim da minha casa quando tinha 13 anos”, diz ela. “As galinhas tavam bicando. Por isso tem essas marquinhas aqui” ILUSTRAÇÃO DE RAFAEL COUTINHO_CORES DE VICTOR REIS
Baú
Eles têm dias juntos pela frente. Talvez poucos, talvez muitos
Daniel Galera | Edição 163, Abril 2020
O menino foi deixado no final da manhã e ela não sabe ainda muito bem o que fazer com ele. Dona Selma tem pouca intimidade com o bisneto porque os pais dele nunca confiaram nela. Porque ela é meio surda, porque é da época do Biotônico Fontoura, porque tem uma gravura colorida e esfumada do Menino Jesus pendurada no meio da sala, porque seu apartamento de dois quartos fica na Medianeira, na Zona Sul de Porto Alegre, distante do condomínio fechado em que moram na Zona Norte.
Quando tocou o interfone, dona Selma tirou dois pastéis quase prontos da frigideira funda, colocou-os na travessa forrada com papel toalha e desligou o fogo. Ao abrir a porta, se impressionou com as olheiras, os cabelos opacos e a prostração de Márcia, a esposa de seu neto. O menino tinha uma pequena mochila vermelha pendurada nas costas. Márcia carregava uma mochila maior, tão cheia que os zíperes pareciam prestes a rebentar. Logo depois de entrarem, Márcia retornou para o corredor e voltou empurrando uma mala de rodinhas enorme, rígida, preta e brilhosa.
“Ele não come muita fritura”, foi a primeira coisa que Márcia falou depois de terem fechado a porta. Dona Selma fez que não ouviu, porque em geral não ouvia mesmo. Márcia fez menção de beijar o filho no rosto, mas recuou e mandou beijos a distância até que o menino correspondesse o gesto. Embora estivesse com pressa para retornar ao hospital, passou minutos revisando recomendações. Evitar comida industrializada. Ele precisa de ajuda no banheiro. As fantasias de super-herói que ele adora estão na mala grande. Cuidado com o tipo de notícia a que ele fica exposto na televisão. Lista de canais infantis na tevê a cabo. Se sair de casa, não chegar perto de ninguém, não deixar encostar em nada, mas melhor não sair. Lavar as mãos dele e da senhora várias vezes por dia. Álcool gel. Paracetamol. Qualquer sinal de febre ou tosse me liga. Nesse meio-tempo o menino tinha começado a ver alguma coisa na tela do celular.
“E aquilo?”, apontou dona Selma.
“O celular? Quê que tem?”
“Ele usa pra quê?”
“Ah, ele sabe usar. Fica falando com os amigos. Tá todo travado pra não aparecer lixo, pode deixar.”
Márcia manteve distância física o tempo todo. Mais de 1 metro. Perguntada sobre a situação no hospital onde é técnica de enfermagem, balançou a cabeça desolada e sussurrou que pela imprensa ninguém faz ideia ainda, mas cortou logo o assunto depois de acenar na direção do filho. Foi embora como chegou, rígida e convicta, sem cumprimentar, checando no celular quantos minutos faltavam para a chegada do motorista, mas antes de fechar a porta esboçou um sorriso triste que dona Selma compreendeu. Não sentia nada muito especial por Márcia, nem ódio nem carinho. Quando o neto e o bisneto faziam suas visitas mais ou menos quinzenais, Márcia raramente comparecia. Ao retribuir aquele olhar, todavia, dona Selma procurou transmitir toda a ternura de que era capaz. Confie em mim, tentou dizer com os olhos à jovem mãe que começava a descer as escadas. Vamos ficar bem.
Bisavó e bisneto vão logo ao banheiro lavar as mãos. O menino executa as etapas todas com diligência comovente, cruzando os dedinhos, agarrando os polegares e girando, produzindo espuma farta na pia cor-de-rosa. Quando chega a vez da bisavó, ele observa as mãos escuras e manchadas com uma curiosidade que tem algo de científico. Os tendões e veias na mão descarnada o fazem pensar nas varetas e correias do mecanismo interno de um robô. Ele não fala muito. Dona Selma nunca teve a chance de mimá-lo.
O menino volta ao celular e nada que a bisavó diga o estimula, até que ela o convida para ajudar a fechar os pastéis. Ele coloca o recheio de carne moída com ovos ou de frango desfiado com queijo na massa redonda, fecha o pastel e aperta as bordas com as pontinhas do garfo. A fritura volta a encher a cozinha de um cheiro pegajoso. Ele come dois pastéis de cada sem que a bisavó o impeça. A sobremesa é ambrosia. A casa é dela, vão comer o que ela quiser.
Depois do almoço, o menino apoia o queixo na grade da varandinha da sala e observa a rua vazia. Passam alguns motoqueiros de tele-entrega e mais nada. Quando surge uma pessoa de máscara, ele entra e questiona a bisavó a respeito. Ela não entende na primeira vez, repete que ele deve falar alto, quase gritando. Tenta ler os lábios, é o que mais ajuda. O menino repete a pergunta e dessa vez dona Selma entende.
“Tua mãe não explicou?”
“Ela disse que as pessoas tão gripadas e um bichinho muito pequeno chamado vírus que não dá pra ver sai no espirro e deixa outras pessoas gripadas.”
“É isso.”
“E que as pessoas velhas podem ficar muito doentes, mas as crianças não.”
“Isso mesmo.”
“Mas fecharam a escola mesmo assim.”
O menino parece que vai continuar a discorrer sobre o assunto, mas se cala como se tivesse esquecido ou não soubesse.
“Fecharam porque tem pessoas velhas que trabalham na escola e elas precisam ficar em casa, não é?”, arrisca dona Selma. O menino assente.
“Tinha duas professoras gripadas”, ele grita.
Dona Selma sabe que estão mandando todo mundo ficar em casa. Lê o Correio do Povo que deixam na porta de entrada do prédio todas as manhãs e assiste aos jornais da Globo. Seu filho, que leciona na universidade em Rio Grande, telefonou para explicar as coisas e dizer para ela não sair de casa. O neto que não consegue sair de Portugal também ligou e disse, entre outras coisas, que o vírus foi criado pelos chineses que comem morcegos. Mas ela não é idiota. Foi professora estadual por 35 anos. Os jovens acreditam em qualquer asneira que vem pelo celular. Ela só usa o dela para receber chamadas. Nem sabe para que servem os botões.
Continuava indo todo dia ao mercadinho ou ao açougue. É só não encher muito as sacolas. Se não caminha fica com dor nas costas e nada é pior que isso. Se não pega sol se sente fraca. Se não vê gente tem a sensação de estar murchando e morrendo. Quando soube ontem que precisaria cuidar do menino, fez compras para pelo menos uma semana e mandou entregar em casa.
O bisneto passeia um pouco pela sala, estudando os objetos que decoram a estante da televisão, a cristaleira e as mesinhas. Pega um abridor de cartas de madeira marchetada e olha para a bisavó como se perguntasse se pode. Ela diz que pode.
“Isso é um abridor de cartas”, diz dona Selma.
“Quantos anos tu tem, bisa?”
“Quê?”, ela faz uma concha com a mão atrás da orelha.
“Quantos anos tu tem?”, o menino repete mais alto.
“Noventa e três.”
Ela levanta da poltrona e se aproxima dele. Conta que o abridor de cartas tem quarenta anos e veio da África. O menino arregala os olhos. Pela primeira vez ela sente ter algum poder sobre ele. O menino passa o dedinho sobre o padrão em losangos da marchetaria.
“Portugal fica perto da África?”
“É perto. Se for de avião.”
“Meu pai tá em Portugal”, diz o menino. “Os aviões não podem voar e ele precisa ficar lá. Mas é só por alguns dias.”
“Eu sei. Não te preocupa.”
O menino começa a chorar. Começa bem devagar, um beiço, um olhar para o alto, e de repente a coisa vem. Ela o afaga, consola, assegura que tudo passará logo. Liga a televisão nos canais de desenho. Oferece a caixa de bombons Garoto que mantém escondida atrás das garrafas de vinho suave. Pede que ele mostre como funciona o celular. Nada penetra a couraça da aflição.
“A mãe”, ele repete entre soluços. “A mãe, a mãe.”
O poder que experimentou há pouco já escorre entre os dedos. Eles têm dias juntos pela frente. Talvez poucos, talvez muitos. Precisa criar algo que ainda não existe. Mas Selma lembra de uma coisa. Hesita, mas logo se decide. Vai até o seu quarto e tira o pequeno baú de madeira debaixo da cama. Apesar de pequeno, é pesado. Mal consegue arrastá-lo e não há a menor chance de que possa erguê-lo. Volta para a sala. O bisneto continua sentado no chão, encerrado em seu abandono.
“Vem comigo. Quero mostrar uma coisa no meu quarto.”
O menino não se mexe.
“Traz o abridor de cartas. Quero guardar ele e te mostrar outras coisas muito velhas que guardei dentro de um baú secreto.”
Isso surte efeito. O menino a acompanha e senta no chão do quarto, em frente ao baú. Dona Selma não pode sentar no chão, mas tem um pufe do tamanho certo. A barra do vestido sobe e mostra suas canelas de lenha seca.
“Consegue abrir?”
O menino mexe na trava e consegue abri-la. Ela o incentiva a erguer a tampa. Dentro do baú há dúzias de objetos de tamanhos variados, muitos guardados em saquinhos de pano ou caixas de madeira ou papelão. Sobe um cheiro de mofo e lavanda. As memórias se agitam como cães indo à caça. Dona Selma pega uma caixa de madeira estreita e comprida, descascada e coberta de rabiscos. Desliza a tampa até a metade.
“Sabe o que é isso?”
O menino faz que não.
“Peças de dominó. Eram do teu bisavô. Pode pegar. Ele jogava na Praça da Alfândega quando a gente morava no Centro e ele trabalhava no estaleiro. Esse monte de coisa escrita eu não sei o que é. Esses números eu acho que são pra jogar na loteria. Ele deve ter sonhado e anotado. Mas nunca ganhou na loteria, que eu saiba.”
“Acho que são uma senha”, diz o menino, manuseando uma peça com vago interesse.
“Uma senha?”
“De entrar em site, bisa.”
Ela não tem certeza se ouviu mal ou se não entendeu mesmo.
“Ah. Pode ser, né. Sabe jogar dominó? Tem que encostar as peças combinando os pontinhos, assim. Mas eu não sei bem.”
O menino encosta e empilha algumas peças, mas ela percebe que não o fisgou.
“Vou te mostrar uma coisa um pouco feia agora. Mas acho que tu já está grandinho pra ver.”
O menino ergue a cabeça, alerta. Dona Selma pega uma caixinha de papelão e tira a tampa. Dentro há um pequeno objeto enrolado num lenço. Ela o desembrulha e o bisneto franze o cenho. É um dedo humano, seco e escuro, mumificado, com a unha ainda intacta, apesar de enegrecida. A textura é a de uma ameixa seca, porém com formato cilíndrico. Sobre a palma da mão ligeiramente trêmula da velha, o dedo parece tentar apontar para um alvo incerto, como o ponteiro de uma bússola se alinhando ao campo magnético. O menino está de olhos esbugalhados, quase sorrindo. Sua percepção nunca foi tão afrontada.
“Pode pegar?”
“Pode.”
O menino segura o dedo sem medo, com a mão inteira. Mais do que o olhar, é o tato que guia sua investigação.
“Encontrei esse dedo no jardim da minha casa quando tinha 13 anos”, diz a bisavó. “As galinhas tavam bicando. Por isso tem essas marquinhas aqui.”
“Galinha come o dedo das pessoas?”
“Normalmente não. Acho que tavam curiosas. Como tu.”
O menino espirra duas vezes. Márcia disse que ontem ele parecia resfriado, mas que hoje cedo já tinha passado. Ela resiste ao impulso de colocar a mão na testa dele. A boquinha se mexe e ela lê os lábios.
“O que mais tem no baú?”
Dona Selma sorri e se inclina outra vez sobre o baú aberto. Movimenta alguns itens e retira uma caixinha de joias aveludada, cor de vinho.
“Acho que tu vai gostar disso aqui. Abre.”
O menino abre e vê meia dúzia de dentinhos brancos e pontudos. Dona Selma faz suspense, espera que ele pergunte, e então revela que são os dentes de leite do primeiro cachorrinho que ela teve na vida. Na verdade era um cachorrão, uma cruza de pastor alemão com sabe-se lá o quê, mas quando bebê ele era pequenino como um rato e antes de fazer 1 ano de idade começou a perder os dentes de leite. Guardou-os por décadas dentro de um livro, depois os transferiu para essa caixinha na qual recebeu um par de brincos de presente de um namorado. Por sinal, o namoro terminou porque o cachorro mordeu o namorado. Dona Selma faz uma pausa, orgulhosa do quanto consegue lembrar. As pessoas adoram lhe dizer que é lúcida. Até o carteiro já disse.
“O cachorro era brabo?”
“Muito brabo. Mordia todo mundo, menos eu. Sabe qual era o nome dele?”
“Não.”
“Urso.”
O bisneto segura um sorriso, crispando os cantos da boca, e em seguida fica sério de novo. Pega um dente e o espeta no dorso da mão, testando se é afiado.
“Meus dentes vão cair também, né?”
“Sim. Logo vão ficar moles e cair. Tu vai gostar de mexer neles com a língua. Tá com fome?”
O menino diz que sim e fica passando a língua nos próprios dentes da frente. Dona Selma vai à cozinha e volta com um copo de leite e um sonho de creme. O bisneto anuncia, com certo orgulho, que não toma leite, mas se atraca no sonho. Ela remexe de novo no baú.
“Olha isso aqui.”
Ela exibe diante do semblante mastigatório do menino uma pedra lapidada com cerca de 2 cm de diâmetro. Dependendo do ângulo, a pedra fica totalmente transparente ou reflete uma infinidade de formas multicoloridas. Além dela, ninguém jamais havia visto essa pedra. O menino larga o sonho de creme, limpa os dedos na bermudinha e segura a pedra entre o polegar e o indicador. Uma ambulância passa voando pela rua deserta com a sirene aos berros. Selma vê a pedra refletida na íris azul-marinho do menino. Lembra da primeira vez que olhou fixamente para a pedra e das sensações que se sucederam com intensidade crescente, até enxergar algo que nunca mais esqueceu. O menino, ela percebe com satisfação, parece estar passando pela mesma descoberta. Depois de um minuto, ele devolve a pedra à bisavó sem dizer nada.
“Ganhei essa pedra de um espírito”, ela diz.
“O que é um espírito?”
“É um ser sem corpo que habita outra dimensão. Uma dimensão que a gente não consegue ver. Teus pais não te ensinam nada?”
Ele pensa um pouco. Mais dois espirros. Um pouco de secreção rala permanece no lábio superior.
“Um fantasma te deu a pedra?”
“Não era um fantasma. É diferente.”
Ela começa a explicar, mas lá pelas tantas o menino já não presta mais atenção. É pequeno demais para se interessar pela morte, embora já tenha idade para temê-la. Mas de repente o olhar dele se fixa em algum ponto às suas costas. Ao se dar conta disso, Selma para de falar e vira a cabeça. Não há nada atrás dela, exceto um interruptor de luz na parede. Ela sente uma coisa gelada por dentro, mas logo entende que o olhar do menino está direcionado para o velho globo terrestre que ela ganhou na rifa de uma papelaria na época da ditadura. Ela pega o globo na cômoda ao lado e o coloca no chão, entre os dois.
“Já viu um globo terrestre? Esse é o nosso planeta. Aqui é o Brasil. Aqui é Portugal. Dá pra ver todos os países e continentes, os oceanos.”
O menino gira o globo. Tateia o relevo das cordilheiras. Parece que nunca viu nada tão esfíngico. As cores estão esmaecidas, os oceanos são bege. Como se o planeta fosse todo árido e enlameado. Ele põe o dedo, aparentemente ao acaso.
“Que lugar é esse?”
“Isso é a China.”
“Fica longe?”
“É muito, muito longe.”
“Dá pra ir de avião?”
“Sim. Mas tem que pegar vários. De tão longe que é.”
O menino junta as mãos entre as pernas cruzadas e parece meditar sobre o que a bisavó acaba de dizer, mas um barulho agudo e estridente soa na sala, e ele levanta e sai correndo.
“É o Mateus!”
Dona Selma ergue o corpo do pufe com dificuldade. Quando chega à sala, o menino está falando com o amiguinho na tela do celular. Na sua festa de 90 anos, ele tinha chorado tanto na hora da foto que acabaram desistindo de fazê-la. Agora que estava mais crescido, ele podia ouvi-la, e podia lembrar das coisas. Agora eles são um time.
A cabeça de Selma começa a doer. Mas ela já contagiou o menino e se sente mais leve, pronta para o que virá.
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