"A letra não é o mais importante da música. A única que fiz não me levou a lugar nenhum" FOTO: SIMONE PORTELLADA
Bossa nova combina com tudo
Seis ovos passados na manteiga combinam bem com discos de Chet Baker
João Donato | Edição 16, Janeiro 2008
João Donato morreu na manhã de 17 de julho de 2023, aos 88 anos, no Rio de Janeiro, em decorrência de uma série de problemas de saúde. Leia mais aqui.
Muitas histórias começam sob lonas de circo. A minha é mais uma delas. Foi num modesto picadeiro de Rio Branco, no Acre, que, sem tirar os olhos de um motoqueiro do Globo da Morte, pela primeira vez toquei acordeão em público. Era a década de 40, eu tinha menos de 10 anos de idade, e a única coisa que sabia fazer com alguma propriedade era obedecer a meu pai. Papai era um respeitado major da Aeronáutica – foi o primeiro acreano a tirar brevê – e havia traçado para mim um futuro de música e fama. Perseguia sua meta com sofreguidão. Ainda muito cedo descobri que isso é fundamental.
Nessa apresentação, o que eu realmente queria fazer era montar numa daquelas motocicletas prateadas e desafiar as leis da gravidade dentro da esfera de aço. Mas uma bailarina, uma menina, já estava pronta na arena, esperando meus primeiros acordes para se apresentar ante o respeitável público acreano. Naquele dia ouvi meus primeiros aplausos. Gostei.
Anos mais tarde, em São Paulo, dei de cara com a bailarina. Surpresos, rimos de nossas lembranças. Emocionado mesmo fiquei quando ela me contou que havia casado e já era mãe. O marido? O motoqueiro do Globo da Morte, Marcondes.
Em 1945, minha família se mudou para o Rio. A viagem de barco até Belém, e de Ita até nosso destino final, demorou meses e foi penosa. Paramos em inúmeros portos e, em todos eles, desembarquei com meu pai para ir à rádio ou ao jornal local. Às vezes, íamos aos dois. Nas redações, eu fazia uma pequena demonstração de meu dom musical e virava notícia com foto ou notinha no dia seguinte. Uma espécie de pocket-show das antigas. Meu pai foi meu primeiro empresário. Saudades dele.
Chegando ao Rio, papai me levou ao renomado show de calouros que Ary Barroso apresentava na rádio Tupi. Eu sabia que aquilo poderia ser importante para meu futuro. Segundos antes de entrar no palco, ouvi Ary Barroso gritar com a produção que não queria por ali nenhuma criança prodígio, que só aceitava maiores de idade. Um rio correu por minhas bochechas enquanto guardava o acordeão. Shows de calouros podem ser, sim, muito, muito traumatizantes. Eu fiquei apenas triste.
Um de meus maiores prazeres foi descobrir que o meio-fio de Copacabana é um ótimo lugar para fazer amizades. A minha com João Gilberto floresceu na calçada do Copacabana Palace. Nos intervalos dos shows do Golden Room, eu saía para respirar um pouco a brisa noturna do mar e jogar conversa fora com o João. É bom que as pedras portuguesas sejam mudas.
Esfomeados, era comum acabarmos nossas noites na casa de Bené Nunes, na Gávea. Lá, João, Tom Jobim e eu descobrimos duas coisas fantásticas: que uma frigideira com seis ovos passados na manteiga combina bem com os discos de Chet Baker, e que se pode decorar acordes de bossa nova como se fossem números de telefone. Basta dar ao polegar o número um, e ao mindinho, o cinco.
Quando João Gilberto foi demitido da rádio Tupi, suspeitei de que os mais velhos estavam certos ao dizer que havia males que vinham para bem. João Gilberto não é fácil nem difícil. É uma questão de entender ou não a personalidade dele. Quando você entende, se depara com uma pessoa maravilhosa.
Ao perder a minha vaga com os Brazilian Boys de Carmem Miranda, vaguei pelas ruas de Las Vegas e sem querer dei de cara com um cartaz do grupo de Cal Tjader, cujos discos conhecia da casa de Bené. Fui até o camarim para dizer que os admirava e, com coragem, aceitei o convite para tocar com eles. No final da noite, virei pianista do conjunto e passei a ganhar em dólar. Se tivesse me transformado em menino de Carmem Miranda, teria ido parar em outra praia.
Brigar com síndicos rabugentos é bobeira. Em Los Angeles, uma síndica sem coração vetou, sem qualquer aviso prévio, a entrada no quarto que eu alugava. Sem dinheiro, fui me hospedar em um hotel que ficava em frente ao The Crescendo. A idéia era fugir do frio, descansar um pouco a cabeça e tentar encontrar uma forma de me manter na América. No dia seguinte, desci para fazer meu check-out decidido a apelar para a bondade do recepcionista. Apresentei-me como músico brasileiro e abri o jogo: não tinha dinheiro para pagar a estadia. No mesmo instante, entrou pela porta o cubano Armando Peraza, que tocava tumbadora com Cal Tjader e que foi logo perguntando: Qué pasa, chico? Minutos mais tarde, o cubano já tinha quitado minhas dívidas, e eu conquistado um amigo da ilha de Fidel. Síndicos estressados podem fazer um bem danado.
Nos Estados Unidos também assaltaram meu carro e roubaram meu acordeão. O ladrão não teve dificuldade: a porta do carro não fechava direito. No dia, lamentei. Mas logo vi que seria melhor assim: seguir fiel a um único instrumento – o piano. Instrumento é igual a filho: quanto mais você tem, menos atenção dedica a cada um. E pode até negligenciar alguns deles sem intenção e acabar fazendo um estrago danado. Assim, abandonei de vez o trombone e o acordeão.
Não sou arredio em relação a nenhum ritmo, mas não abro mão de uma coisa: o volume tem que ser agradável. Outro dia, um barco ancorou na baía, bem em frente a minha casa, e ligou um bate-estaca no máximo para animar uma festa no mar. O cara só pode ter feito aquilo para anestesiar os convidados e evitar que percebessem que as músicas eram de quinta. Som nas alturas impede que as pessoas pensem. É algo que vai contra as leis da natureza. Ou alguém já ouviu um trovão durar cinco horas?
Há um tempo, fui ver os Titãs no palco. Perguntei ao Arnaldo Antunes onde o volume do show seria mais baixo. Ele me sugeriu que ficasse atrás do palco. Quando o grupo entrou, tremi. Ainda bem que, seguindo uma dica do Ritchie, cortei os filtros de dois cigarros o mais rápido que pude e enfiei um em cada ouvido. Cigarros combinam com shows de rock.
Estar no palco não é uma sensação muito boa. Prefiro o estúdio, onde não preciso estar bem arrumado, não preciso fazer aquele mise-en-scène nem me preocupar com a platéia. Não tem firula, só música.
A letra não é o mais importante da música. A única que eu fiz, aos 7 anos de idade, para minha primeira namorada de escola, a Nini, não me levou a lugar nenhum. A repetição dos versos “Não posso viver sem Nini, não posso viver sem amor” à exaustão não fez com que ela corresse para mim. A melodia é o que fica. No Japão, onde costumo tocar bossa-nova e jazz todos os anos, ninguém entende uma palavra do que está sendo dito, mas se emociona.
Para a nova geração de músicos, minha dica é: bonés compõem um figurino com perfeição. Tenho uma coleção com mais de vinte e fiz deles minha marca registrada. Ganhar um bonezinho de presente é o máximo: serve para esconder minha calvície e ainda ajuda as pessoas a me reconhecerem.
Outra sugestão é apostar nas campainhas de celular: os ringtones. No meu telefone tenho três músicas de minha autoria: Doralinda, Nasci para Bailar e Bananeira. Dependendo de quem liga, toca uma. Fantástico. Bossa nova combina demais com celular. Aliás, deixa eu escrever isso aqui, combina com tudo, ok?
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