Bye-bye, coxinha
De tão alta, a inflação está deixando o proletariado surdo
André Gabeh | Edição 191, Agosto 2022
Carla Créia acordou com uma vontade firme de comer coxinha. O desejo nasceu tão poderoso e urgente que até as árvores projetavam sombras com o formato da iguaria. Os ventos abaloavam os vestidos das moças em silhuetas coxiformes. O voo coletivo das maritacas se organizava no desenho do salgado. Mesmo as lágrimas dos atores nas novelas evocavam a sinuosidade erótica do petisco.
O único senão que impedia Carla de se esbaldar num sururu de coxinhas eram os preços cometidos pelas salgadeiras de sua região, coisa de 65 reais o cento. Um aumento perverso, segundo o Banco Central das Matriarcas Suburbanas.
Quando não nos dão a vara de pescar nem nos ensinam a pescar, o que a gente faz? Nada. E aqui nada é uma conjugação verbal, não um substantivo macambúzio. Carla se transformou, então, em cineasta do seu desejo e bolou todo um plano gastronômico. Ela mesma iria fazer aquilo que não podia comprar.
Foi ao mercado com “dinheiro sobrando”, porque se lhe faltasse ousadia acabaria levando Catupiry genérico, daqueles fabricados com amido e constrangimento, para incrementar o lanche. Andou direto até a gôndola ártica das aves congeladas. Os pacotes de peito de frango se enfileiravam como dominós, prontos para desabar sobre a dignidade do consumidor. Coisa de 18 reais. Um valor tão alto que deixou Carla Créia surda.
– Moço, onde tem frango? Acho que aqui só tem faisão… – perguntou ao açougueiro com uma voz que vibrava confiança, embora um pânico subjacente se insinuasse no modo fosco com que ela pronunciava as vogais fechadas.
O funcionário do mercado riu, chorando. Chorriu. Era notória a sua empatia e o seu desespero. Uma senhora atrás de Carla comentou:
– Tudo caríssimo, né? Se pombo não fosse um bicho tão sujo… A carne é igual. Comi muito na infância. Mas, na minha época, pombo tinha dignidade. Hoje o pombo é um bicho sem limites, sem modos.
Um rapaz se juntou à conversa:
– Rolinha é um bicho limpo. Talvez tenha gosto de pombo…
Um senhorzinho parou para ouvir o papo e também deu sua contribuição:
– Olha, a única proteína que entra lá em casa é sardinha. Somos apenas eu, minha mulher e dois gatos. A gente faz um panelão de sardinha com arroz e come a semana inteira. Sardinha é um alimento da porra.
Carla se manifestou, sentida:
– Mas eu queria fazer coxinha. Não dá pra fazer coxinha de sardinha.
O senhorzinho contou que dá para fazer, sim. Sua mulher, inclusive, já havia feito brigadeiro de sardinha com a lata de leite condensado que ganhou numa quermesse.
Dona Iracema, professora de artesanato, palpitou:
– A sambiquira tá em conta. Mal ou bem é galinha…
Carla perguntou se sambiquira seria a porção final da ave, de onde saem as penas do rabo. Coisa de 5 reais o quilo. O moço que narrava as promoções-relâmpago afastou o microfone da boca e confirmou.
– É o famoso sobrecu – resumiu, provocando um sorriso manso nos ouvintes.
Dulce, da Igreja Messiânica, revelou que plantava ora-pro-nóbis.
– Apareçam no culto que arranjo umas mudas pra vocês. Refogando direitinho, temperando bem, colocando bastante cebola, sai um guisado muito gostoso. Proteína pura, gente!
Carla ficou de avaliar a sugestão. Magoada. Fracassada. Sucumbida. Mas era imperativo olhar nos olhos daquele naufrágio. Precisamos manter algumas tristezas desembrulhadas para jamais nos esquecer de suas feições.
Três jovens recém-saídos da adolescência se apresentaram como membros da Sola, a Sociedade dos Organizadores do Luto Alimentício. O mais calmo do trio disse que, no dia anterior, tinham providenciado uma roda para carpir o falecimento da ideia de tomar café. Contou que viúvos e viúvas choravam profundamente, mas sem forças. Por ironia, a falta de café lhes fez falta para vivenciarem o luto pela falta de café. Coisa de 48 reais o quilo.
O mais animado dos três rapazes lembrou que, na semana anterior, a dor pela despedida do leite não foi tão grande, porque produtos eufemísticos, denominados “misturas lácteas”, vêm suprindo as ausências dos laticínios verdadeiros. O terceiro jovem tentou discorrer sobre a tarde em que um pessoal se juntou para dar adeus à carne de boi, mas um soluço cortou sua voz e o impediu de continuar.
Agora chegara o momento de todos se desapegarem do frango. Das memórias dos almoços de domingo. Dos salgados de festas. Dos empadões. Dos salpicões.
Os presentes choraram em mi menor e se abraçaram em dó maior. Cada adeus era uma nota rouca, e ninguém conseguia dizer “até breve” diante da inexorabilidade da pobreza metastática.
Um quarto rapaz, com uma camiseta em que se lia “Pareço vegano, mas só tô sem dinheiro pra comprar nuggets”, apareceu de repente e também se apresentou como membro da Sola. Fez uma “homilia da humilhação” e rezou um Pai-Nosso, enunciando a parte do “pão nosso de cada dia nos dai hoje” com pungente humildade.
Depois do amém sentido, os jovens foram embora, introspectivos e ainda mais derrotados. Carla caminhou até o corredor das farinhas. Queria preparar ao menos a massa da coxinha, que rechearia com desilusão a granel. Mas a farinha de trigo jazia – alva, pura e cínica – atrás de uma placa que alardeava um preço apocalíptico. Coisa de 7 reais o quilo. Um lacrimejo de gordura trans despencou do olho esquerdo de Carla.
Uma garota com lindos cabelos afro passou perto dela e se solidarizou:
– Troquei pão por aipim. Eu e minha mãe cultivamos no quintal. Faz isso, tia.
A voz de Carla demorou a transpor os soluços.
– Eu só queria comer coxinha…
As duas se abraçaram em tão honesta desolação que a desgraça se fez bela. A elas juntaram-se outros órfãos, e o fluxo lacrimal dos desvalidos foi se avolumando e inundando tudo. Uma mosca varejeira pairou sobre o desamparo abismal. Seu zumbido era uma nota de oboé.
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