O cachorro Bob, misto de pit bull com vira-lata, em desenho feito por menino que mora em Heliópolis
Cachorro bom é cachorro morto
A execução de Bob, o xodó de Heliópolis, por um PM de São Paulo
Roberto Kaz | Edição 118, Julho 2016
Primeiro foi o tiro. O corpo caído. O policial rindo. A viatura indo embora.
Então veio o choro, que virou raiva, que deu origem à barricada. Fecharam a rua, queimaram entulho, tacaram fogo num ônibus.
“Só faltou a polícia dizer que o cachorro estava armado”, diria, dias mais tarde, uma moradora de Heliópolis, a maior favela de São Paulo. “Do jeito que eles fazem com animal, fazem com gente também.”
Mistura de vira-lata com pit bull, Bob era o xodó da comunidade. Como bom cachorro de rua, não tinha origem, idade nem histórico familiar. Chegou do nada, já adulto, cerca de quatro (ou, para alguns, seis) anos atrás. De início travou amizade com outro cachorro, o Negão, que batia ponto nas biroscas por ali. Com o sumiço do Negão, também do nada, virou a referência canina de quem frequenta a Praça É Nossa – um pequeno conjunto de bares que, apesar do nome, em nada lembra uma praça.
Foi lá que Bob conheceu Daniel [1], um rapaz com cerca de 20 anos, que virou seu cuidador mais leal. Daniel se encarregava de dar banho – às vezes com sabão de coco, às vezes com shampoo para cães – quando Bob ficava sujo demais. “Na praça tem uma bica”, contou. “Eu chegava com uma coleira, ele percebia e já tentava fugir.” Quando a renda permitia, a ducha era complementada com remédio antipulga. Mal tinha tempo de desfilar a limpeza, pois ato contínuo o cachorro se esfregava no chão, recuperando a sujeira que lustrava seu pelo branco e preto.
Era também na praça que Bob costumava dormir e comer. Para o sono, contava com um quarto abandonado nos fundos de um bar, onde uma senhora chamada Hortência botava cobertor, travesseiro e lençol. “Mas os noias roubavam”, ela explicou. “Travesseiro eu dei dois. Cobertor eu perdi a conta. Quando não tinha mais nada, levei toalha para ele se esquentar.” O cachorro chegou a ganhar uma casinha de madeira construída pelos moradores da comunidade. “Mas ela também foi roubada”, lamentou a cuidadora.
Hortência também se encarregava de alimentar o animal. “Ele gostava de arroz, carne, frango, costela, abobrinha e escarola”, lembrou. “Também adorava banana. E quando tinha macarronada com carne moída raspava a panela.” Levava a comida duas vezes ao dia, em potes de plástico. “Se eu demorava, ele vinha para a frente do prédio onde eu moro e ficava olhando para cima, esperando eu aparecer na janela.” A cena ocorreu pela última vez na tarde de 11 de junho, um sábado: “Eu tinha acabado de levar comida. Passaram uns vinte minutos, e vieram correndo me avisar.”
Cerca de um ano atrás, contam os moradores de Heliópolis, Bob passou a ter problemas com a Polícia Militar. Certa vez apareceu com as duas patas traseiras marcadas por balas de borracha. Hortência tratou-o com violeta genciana, e Daniel zelou para que o banho não o molhasse da barriga para baixo. Em outra ocasião, o cachorro começou a espumar – dizem que por ter comido carne envenenada. Para tratá-lo, Daniel virou a noite enfiando-lhe leite goela abaixo. De uns tempos para cá, Bob também começou a apresentar um problema nos olhos. A suspeita – decorrente do fato de que ele sempre latia para a polícia – é de que tenha sido atingido por spray de pimenta.
No sábado em que foi executado, Bob brincava com duas crianças em frente ao Rebarba’s Bar e Espetinho, numa rua de entrada da comunidade. Era fim de tarde, e uma viatura passou três vezes, fazendo a vigília. Na quarta, contam, o cachorro tomou um tiro no pescoço, sumário, e estrebuchou na calçada. O carro, um Spin, prosseguiu lentamente, o policial sorrindo, as crianças paradas na rua, assustadas.
Avisada, Hortência correu ao local, debruçou-se sobre o cadáver e começou a chorar. “Foi como se tivessem arrancado um pedaço de mim. Precisou um menino me tirar de cima do cachorro”, ela contou, mostrando no telefone celular uma foto de Bob morto. A comunidade – revoltada com a morte do cão, mas também com o risco corrido pelas crianças – começou a se juntar. No início da noite já havia barricadas na rua.
Não tardou para que a polícia voltasse à cena, com reforços, em busca do cachorro. Houve correria, bomba de gás, parte do povo queimou um ônibus e duas caçambas nos arredores. O corpo de Bob foi escondido numa garagem, e depois, ainda em meio ao caos, enterrado num canteiro, sob a copa de uma árvore.
Às 21h21 daquela noite, a morte foi noticiada na página do Facebook do Paquistão F.C., um time de futebol de Heliópolis. O texto lamentava a perda do “nosso mascote da pior forma possível”, com um tiro desferido por um policial. “Todos que conviviam com ele sabiam o amor que esse cachorro doava às pessoas”, continuava. Nos comentários, Bob foi chamado de “guerreiro”, “anjo” e “defensor quando necessário”. Um rapaz protestou: “Agora diga, Senhor secretário da Segurança, o cachorro estava armado? Ofereceu algum perigo eminente?”
Procurada pela piauí, a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo alegou que o distúrbio ocorreu porque “a PM realizava patrulhamento no entorno de bailes funk da região para prevenir crimes, garantir a segurança e o sossego da população” (moradores dizem que baile nenhum ocorria naquele horário). A nota ainda alega que “não houve registro de animais feridos”. Duas pessoas foram intimadas pela 2ª Delegacia do Meio Ambiente para depor sobre o caso. Não compareceram.
Daniel, que ainda chora quando fala de Bob, chegou a sonhar com o cachorro: “A gente brincava de esconde-esconde. Eu ficava procurando ele, sem achar, até que ele me dava uma cutucada com o nariz, como se dissesse ‘Tô aqui, ó’.” Hortência não sonhou com o bicho, embora ainda tenha a impressão de ouvi-lo latindo, durante a madrugada: “Mas vou para a janela, olho, e ele não está.”
A coleira de Bob está pendurada, sem uso, na parede de uma barraca de pastel.
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[1] Os nomes dos personagens foram alterados.
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