Pouco reconhecido pela crítica, arquiteto radicado no Brasil morreu como viveu: sem alarde
Caixa-preta
Martinez Flores, o mexicano que criou uma linhagem arquitetônica no Brasil
Fernando Serapião | Edição 106, Julho 2015
Elegante em seu blazer marinho e camisa quadriculada em azul e branco, Aurelio Martinez Flores havia deixado a bengala encostada num canto e caminhava, tímido, pela Galeria Raquel Arnaud, em São Paulo. O arquiteto mexicano radicado no Brasil havia mais de cinco décadas era o protagonista do vernissage que ocorria naquela manhã de 15 de dezembro de 2012.
A exposição constava de trinta caixas quadradas brancas, aparentemente iguais, com cerca de 30 centímetros de lado – se o invólucro era o mesmo, o conteúdo, porém, era único. Cada uma delas trazia delicados assemblages, colagens que combinavam objetos vigorosos, muitas vezes melancólicos, dispostos em proporções que não se repetiam. Em uma delas, por exemplo, havia um retrato de Charles Baudelaire e uma folha seca, um vidro de nanquim e um escaravelho. Os insetos, adquiridos na Deyrolle, em Paris – loja que comercializa de leões empalhados a borboletas desidratadas –, imprimiam carga dramática a quase todas as obras.
Muitos dos presentes receberam com surpresa o convite para a mostra. Não que alguém pudesse duvidar da qualidade do trabalho: o espanto se devia a sua recusa, amplamente conhecida, de frequentar reuniões públicas. Sua ojeriza era tamanha que, dez anos antes, contrariando a lógica do mercado editorial, ele pediu que não houvesse noite de autógrafos do próprio livro, uma compilação de parte de sua obra arquitetônica.
Até aquela manhã de sábado, eram poucos os que conheciam aquelas caixas – discreto, o autor contava aos seletos convidados que começara a fazê-las para superar um episódio difícil. Atribuía-lhes uma função terapêutica.
No primeiro domingo de junho passado, Martinez Flores não resistiu aos ferimentos provocados por uma queda sofrida em sua casa na Granja Viana, nos arredores de São Paulo. O vernissage de 2012 acabou ganhando outra dimensão: exibir suas caixas foi uma despedida pública.
A imprensa não registrou sua morte, mas seria injusto criticar os jornalistas, uma vez que até mesmo gente da área ignora a importância de Martinez Flores, a despeito de ele ser o mentor de uma das mais influentes linhas do atual cenário arquitetônico brasileiro, liderada por Isay Weinfeld e Marcio Kogan. “Ele era genial”, disse Kogan, seu aluno no Mackenzie. “Meus trabalhos na faculdade eram conceituais e ele não entendia. Foi difícil receber suas críticas, pois eu o admirava. Em compensação, ele me estimulou muito, acreditando que eu e o Isay iríamos longe.”
Martinez Flores nasceu em Puebla, no México, em 1929. Aprendeu a ler desenhos técnicos na infância, armando aviõezinhos de madeira. Tinha 16 anos quando seu pai sugeriu-lhe aproveitar as férias para trabalhar na loja de móveis situada no térreo da casa da família. O dono do estabelecimento perguntou se o estudante queria montar a vitrine, e o rapaz saiu-se tão bem que lhe foi encomendado novo arranjo a cada três semanas. A loja prosperou e abriu uma filial, cujo projeto ficou a cargo de Martinez Flores. Na ocasião, por pressão paterna, o jovem cursava medicina. A loja de móveis foi seu primeiro projeto de arquitetura.
Ele desistiu da medicina e formou-se arquiteto. Arrumou um emprego numa loja de móveis que representava a Knoll, fábrica americana de peças assinadas por designers da estirpe de Le Corbusier. Quando Mies van der Rohe – professor da Bauhaus e um dos grandes nomes da arquitetura moderna do século XX – projetou a sede da Bacardi na Cidade do México, Martinez Flores foi convocado para criar o hall de entrada. O resultado foi tão notável que a Knoll o convidou para trabalhar em Nova York.
Dois anos depois, a Forma comprou os direitos de fabricação de algumas peças da Knoll. Por sua origem latina, o mexicano foi designado para, por três meses, acompanhar a produção em São Paulo. Em 1960, Martinez Flores instalou-se num apartamento na avenida Paulista com a mulher e três filhos – o quarto e último menino nasceu no Brasil. E os três meses se estenderam até sua morte.
Após uma década na fábrica, Martinez Flores abriu seu escritório de arquitetura e uma loja na alameda Lorena, pioneira no país em comercializar peças de design italiano. Seu primeiro projeto de arquitetura no Brasil – a casa do publicitário catalão José Zaragoza no Guarujá, no litoral paulista – definiu sua arquitetura. Vista de fora, a casa é uma sucessão de caixas brancas com tamanhos diferentes, sem janelas; por dentro, a coisa muda de figura.
O acesso é um dos mais comoventes percursos da arquitetura brasileira: um vão discreto conduz o visitante a um corredor, longo e baixo, que segue escuro até desembocar num pátio luminoso, ao ar livre. Como toda obra de Martinez Flores, a morada do Guarujá é uma colagem fina da arquitetura ibérica com a pureza do design internacional. Seus grandes muros brancos, de textura rugosa e desenho preciso, definem espaços com poucos elementos e luz dramática.
Depois da casa de Zaragoza, o arquiteto recebeu encomendas semelhantes, de famílias como a Muniz Sodré, Diniz, Guinle e Matarazzo. Projetou lojas e restaurantes de luxo; de seus trabalhos abertos ao público, raros, destaca-se a sede do Instituto Moreira Salles[1], em Poços de Caldas.
A perene desigualdade social do país, ainda maior entre as décadas de 70 e 90, quando o arquiteto estava no auge de sua produção, induziu a crítica a ignorar personagens como Martinez Flores, que projetavam para poucos clientes, integrantes da pequena elite brasileira. E assim ele permaneceu relativamente obscuro, dentro de uma caixa-preta. O arquiteto terminou seus dias assistindo a seus talentosos discípulos o superarem, desfrutando de uma realidade econômica que ele não conheceu. Isay Weinfeld, que na juventude foi seu sócio, disse que ele era “um mestre das proporções perfeitas em tudo o que tocava: arquitetura, mobiliário, objetos”. E concluiu: “Lastimo imensamente que sua obra não tenha sido suficientemente reconhecida pelo público em geral, a imprensa e as universidades. É compreensível – seu trabalho era refinado demais.”
[1] O fundador da revista piauí, João Moreira Salles, é presidente do Instituto Moreira Salles
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