Com um orçamento anual de 10 milhões de dólares, salários altos e uma redação de 32 jornalistas, a Pro Publica só produz reportagens que deixam mal governos, instituições e empresas
Caro, trabalhoso, chato
O jornalismo investigativo americano luta para sobreviver
Branca Vianna | Edição 49, Outubro 2010
Steve Coll trabalhou mais de vinte anos no Washington Post. Foi repórter, editor, correspondente internacional e diretor de redação do jornal. Tem seis livros publicados, ganhou dois prêmios Pulitzer e escreve sobre segurança nacional na revista The New Yorker. Com seu rosto redondo e um resto de franja ruiva que resiste à calvície, aos 52 anos Coll parece um menino envelhecido. “Se estivesse começando agora, escolheria outra profissão”, disse ele, desanimado, folheando uma piauí na sala de reuniões da New American Foundation, da qual é presidente. “O tipo de jornalismo que fiz a vida toda, com reportagens investigativas longas, de estilo narrativo, acabou.”
Foi outro dia mesmo – na segunda metade do século XX – que o jornalismo investigativo americano viveu sua época de glória. Em 1969, o repórter Seymour Hersh publicou em mais de trinta jornais uma reportagem sobre o acobertamento do massacre de centenas de civis por soldados americanos na aldeia de My Lai, no Vietnã.
Dois anos depois, o New York Times publicou os “papéis do Pentágono”, uma série de reportagens sobre um estudo secreto do próprio governo que demonstrava a impossibilidade de ganhar a guerra do Vietnã.
Em 1972, por fim, Bob Woodward e Carl Bernstein, repórteres policiais do Washington Post, descobriram que a Casa Branca colocara escutas ilegais na sede do Partido Democrata, no edifício Watergate, na capital americana. A investigação levou dois anos, e mostrou que Richard Nixon não só ordenara o crime como tentara escondê-lo da Justiça, o que provocou a renúncia do presidente, em 1974.
Woodward e Bernstein, com alguma ajuda de Robert Redford e Dustin Hoffman, que os retrataram bonitos e charmosos em Todos os Homens do Presidente, tornaram o jornalismo investigativo uma atividade glamorosa. As escolas de jornalismo encheram-se de jovens querendo derrubar presidentes.
São reportagens como essas que, segundo Steve Coll, podem estar em vias de extinção nos Estados Unidos. O motor da crise está na internet, que alterou tanto a maneira como a imprensa escrita obtém lucro quanto os hábitos de leitores e anunciantes.
O início da crise remonta a 1995, quando Craig Newmark começou a enviar para uma lista de endereços eletrônicos um boletim gratuito com informações sobre eventos sociais em São Francisco, cidade para onde se mudara recentemente e na qual não tinha muitos amigos. A iniciativa resultou na craigslist.org, hoje o maior site de anúncios classificados do mundo, com 20 bilhões de page views por mês, mais de 50 milhões de usuários só nos Estados Unidos e versões em setenta países (no Brasil, ele existe em nove capitais).
O site da Craigslist, feio e funcional, lembra as velhas seções de classificados que veio a substituir. Cobra-se apenas por determinados tipos de anúncios, em algumas cidades. Corretores de imóveis em Nova York têm de pagar. Já os de Des Moines, capital do Iowa, anunciam de graça. Nas dezoito maiores cidades americanas, são cobrados os classificados de empregos e as ofertas de serviços, e nas outras não.
A Craigslist tem uma receita anual estimada em pouco mais de 100 milhões de dólares – quase nada, quando se pensa no estrago que ela causou. Até o surgimento do site, os grandes jornais americanos financiavam 80% de suas operações com classificados e anúncios. Apenas 20% vinham de assinaturas e da venda em bancas. Os classificados garantiam a sobrevivência dos jornais não só pelo seu peso na receita, mas também pela pulverização que representavam. Junto com os anúncios do comércio local, eles garantiam o equilíbrio das contas, caso o jornal perdesse um ou outro anunciante de grande porte.
É por isso que Steve Coll acha uma falácia debater se os leitores devem ou não sustentar os jornais pagando pela leitura on-line. “Leitor nunca sustentou jornal. Eram os classificados e os anunciantes que o faziam”, ele disse. E tanto um como o outro foram atraídos para a internet.
Nos grandes jornais, os anunciantes pagavam caro pelo acesso a um público enorme, variado e disperso. Ou seja, desperdiçavam dinheiro para atingir leitores que nunca comprariam suas mercadorias. A internet resolveu o problema. Casando resultados de buscas, histórico de compras e informações colocadas pelos próprios consumidores em sites de relacionamento, é possível acercar-se com precisão do público-alvo. O retorno é maior e o custo dos anúncios é menor.
Além da derrota econômica para a internet, os jornais também foram vencidos na batalha, por assim dizer, ideológica. Mais precisamente: eles se renderam. Renderam-se à premissa, alardeada pelos conglomerados on-line, de que tudo na internet deve ser acessível e gratuito. Com isso, o trabalho de jornalistas como Steve Coll passou a ser distribuído de graça e reproduzido por toda a rede. Parte dos leitores migrou do papel para os sites de notícias.
A crise se instalou. A companhia que controla o Los Angeles Times e outros jornais tradicionais, como o Chicago Tribune, pediu concordata. O Washington Post, cuja margem de lucro caiu 25% nos últimos cinco anos, sobrevive subsidiado pela Kaplan, empresa de materiais didáticos pertencente ao mesmo grupo. O New York Times, com uma queda de 50% na margem de lucro, foi obrigado a tomar um empréstimo a juros altos do bilionário mexicano Carlos Slim. A revista semanal Newsweek, que no ano passado perdeu 30 milhões de dólares, foi vendida para o milionário Sidney Harman por 1 dólar (mais as dívidas). A circulação da mídia impressa caiu 30% em um par de anos. Calcula-se que 26 mil jornalistas tenham perdido o emprego desde 2008. As áreas que mais sofreram foram o jornalismo investigativo e a cobertura internacional.
Nesse cenário devastado apareceu, no improvável papel de herói, o casal de velhinhos Marion e Herb Sandler. Hoje chegando aos 80 anos de idade, os Sandler começaram a fazer fortuna em 1963, com a criação da Golden West Financial Corporation. O negócio cresceu e se tornou o World Savings Bank. Em 2006, logo antes da crise financeira, o casal o vendeu para o banco Wachovia. Dos 2,4 bilhões de dólares que receberam na transação, 1,4 bilhão foi destinado à pequena fundação que haviam criado anos antes. O aporte pôs a Fundação Sandler entre as trinta maiores dos Estados Unidos.
Os Sandler começaram a financiar pesquisas de doenças parasitárias e criaram um programa de estudo da asma, doença da qual Marion sofre. Doaram mais de 30 milhões de dólares para a organização de direitos humanos Human Rights Watch. Fundaram um centro de estudos, em Washington, dirigido por John Podesta, ex-chefe de gabinete de Bill Clinton. E decidiram bancar um projeto de jornalismo sem fins lucrativos.
O casal distribui dinheiro de um modo singular. Em vez de receber propostas, como ocorre com a maioria das fundações americanas, são eles que saem atrás das melhores pessoas das áreas para as quais querem fazer doações. Os beneficiários são surpreendidos por um telefonema oferecendo financiamento para seus projetos. Mas a Fundação Sandler esquadrinha a vida dos escolhidos como se fossem candidatos a emprego na Casa Branca. Colegas e ex-colegas recebem telefonemas em busca de informação, e toda a vida profissional dos possíveis favorecidos passa pelo crivo do casal.
Foi assim que chegaram a Paul Steiger, o diretor de redação do Wall Street Journal. Os Sandler queriam saber em quais áreas do jornalismo seu dinheiro poderia fazer diferença. Ouviram de Steiger que o jornalismo investigativo é o ramo mais importante para o funcionamento de uma democracia – e o que mais está em risco. O casal, que havia conversado com outros jornalistas, disse-lhe então que queria montar uma redação que se dedicasse exclusivamente a reportagens investigativas. Seria uma redação bem paga, que trabalharia em liberdade e não buscaria o lucro. A única condição do casal foi que Steiger fosse o editor-chefe.
Investigações jornalísticas são trabalhosas, caras, demandam tempo e nem sempre rendem reportagens publicáveis. Pode se passar meses escarafunchando um assunto e não conseguir material suficiente. A maioria exige viagens e algumas requerem mais de um repórter trabalhando em tempo integral. Também costumam ser bem mais longas do que as matérias comuns, o que, no mundo do Twitter, lhes reduz o número de leitores em potencial.
Reportagens de Steve Coll para a New Yorker, por exemplo, ocupam de quinze a vinte páginas da revista e custam mais de 100 mil dólares. “Dependendo da dificuldade de acesso e das condições do lugar”, disse Coll, “30 mil vão só para cobrir as despesas de deslocamento.” Como os países sobre os quais ele costuma escrever são Iraque, Paquistão e Afeganistão, a essas despesas somam-se os custos com segurança e apólices de seguro contra sequestros. Paul Steiger conhece esse risco. Ele chefiava a redação do Wall Street Journal em 2002, quando o repórter Daniel Pearl foi sequestrado e morto pela Al Qaeda depois de cinco semanas de cativeiro no Paquistão.
Gerry Marzorati, editor-chefe da New York Times Magazine, a revista dominical do Times, lembrou-se das guerras que cobriu na América Central, nos anos 80: “Os rebeldes precisavam da imprensa para divulgar sua luta. Não nos viam como inimigos. Era raro um repórter ser ferido. Com 200 dólares dava para se hospedar por um mês no InterContinental em San Salvador e a gente ainda ganhava um arroz com feijão que não era nada mau.”
Em janeiro de 2008, Paul Steiger e os Sandler fundaram a Pro Publica, no 23º andar de um prédio na ponta sul de Manhattan, a cinco minutos da Bolsa de Valores e em frente à famosa escultura do touro de Wall Street. O aluguel estava barato porque o lugar pertencia a uma corretora de valores que acabara de quebrar.
A redação é decorada com discrição, toda em tons de bege, com muita luz natural e amplas vistas da cidade. O ambiente é sóbrio. Os chefes usam gravata. Os outros se vestem com discrição. Todos falam baixo e mal tiram os olhos de seus monitores Apple. As baias não têm decoração pessoal, nada de retratos ou pôsteres, nenhum bonequinho ou desenho de criança.
Quando foi procurado pelos Sandler, Steiger se aproximava dos 65 anos, idade de aposentadoria compulsória no Wall Street Journal. A Pro Publica lhe deu a oportunidade de recomeçar do zero, numa versão para o século XXI da carreira que teve no século XX. Seu entusiasmo é o de um novato, em contraste com o ceticismo de Steve Coll, mas idêntico ao redator-chefe Steve Engelberg. Outro veterano, Engelberg costuma dizer, em suas muitas aparições públicas para falar do empreendimento, que esse é o melhor emprego que já teve na vida.
A Fundação Sandler doou 30 milhões de dólares para sustentar os três primeiros anos da Pro Publica. A cada final de ano o financiamento pode ser renovado por mais doze meses, de tal forma que, se a fonte secar, a redação terá sempre dois anos para buscar novos patrocinadores. Até agora, a renovação aconteceu como previsto. O dinheiro está garantido até pelo menos 2013.
A Pro Publica só faz reportagens investigativas. Nas palavras de Susan White, uma das quatro editoras, dali “só sai notícia ruim”. São 32 pessoas que investigam governo, instituições, indivíduos e empresas. Além da redação em Nova York, há uma sucursal em Washington, com quatro pessoas. As reportagens podem levar semanas, meses ou anos para ficar prontas. Dinheiro não é problema.
Ao abrir as portas, há dois anos, sem pôr um anúncio, Steiger recebeu 1 400 currículos de gente querendo trabalhar lá. Para Mike Webb, o diretor de comunicações, o número colossal de candidatos “revela mais sobre a situação do jornalismo americano do que sobre a nossa redação”. Com o orçamento anual de 10 milhões de dólares, Steiger não teve dificuldade em montar uma equipe de primeira, composta de jornalistas do Wall Street Journal, New York Times, Washington Post e outras publicações da grande imprensa. Há oito vencedores do Pulitzer na equipe. Há também jornalistas jovens, com experiência em internet.
A Pro Publica não trabalha com voluntários nem freelancers na apuração e redação de matérias. Os repórteres são todos contratados em regime de dedicação exclusiva e recebem salários que equivalem aos da grande imprensa. Segundo Philip Gourevitch, repórter da New Yorker, a Pro Publica “é uma redação de verdade, chefiada por um jornalista de verdade, com repórteres de verdade. A única coisa que eles não têm de fazer é administrar um jornal”.
A organização mantém um site no qual se define como uma “redação independente e sem fins lucrativos dedicada a servir o público”. As reportagens estão sempre disponíveis ali. Mas, para obter maior repercussão, a prioridade é publicá-las em parceria com jornais, revistas, sites de notícias e redes de rádio e televisão. A missão da Pro Publica, segundo Mike Webb, é publicar matérias com “força moral, apurar casos de abuso de poder e desmando por parte de indivíduos, governo e instituições públicas ou privadas, como hospitais, escolas, universidades ou a polícia”.
Em maio passado, a Pro Publica ganhou seu primeiro Pulitzer. A reportagem premiada teve como tema as decisões tomadas por médicos de um hospital de Nova Orleans nos dias imediatamente posteriores à passagem do furacão Katrina. Assinada por Sheri Fink e publicada na revista do New York Times, a matéria levou dois anos para ser apurada, escrita e editada. Nesse período, a repórter se dedicou exclusivamente ao assunto, sem publicar mais nada. O custo total das quase 13 mil palavras publicadas sobre os médicos de Nova Orleans ficou em cerca de 350 mil dólares, a maior parte bancada pela Pro Publica.
Em sua sala no novo edifício do New York Times, projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano, Gerry Marzorati, editor da revista dominical, explicou: “Matérias investigativas tratam de assuntos delicados, requerem checagem cuidadosa de todos os fatos e de todas as fontes. Tudo passa pelos advogados, o que aumenta o custo. Hoje, são poucas as organizações jornalísticas capazes de arcar com um projeto assim.”
Nos Estados Unidos, todas as reportagens e artigos que lidam com fatos polêmicos passam por avaliação jurídica, como precaução contra processos. O New York Times tem uma equipe própria de advogados para cuidar disso. Na Pro Publica, essa é a área de Dick Tofel, advogado e administrador da redação. A reportagem de Sheri Fink foi submetida aos advogados das duas publicações.
Marzorati refez o histórico da matéria: “Sheri nos havia oferecido a matéria antes até de começar a escrevê-la. Não aceitamos porque não a conhecíamos e ela não era repórter de revista. Meses depois, Steve Engelberg, que eu conhecia dos muitos anos dele no New York Times, me falou de novo da matéria. Com esse aval, foi mais fácil aceitar uma reportagem produzida por outra redação que não a nossa. Como a Pro Publica não tem editores de revista, levamos quase um ano na edição, que foi feita em conjunto.”
Em quase três anos de existência, a Pro Publica fez parcerias com todos os grandes jornais americanos e com muitos dos pequenos e médios, como o Times-Picayune, de Nova Orleans, e o Miami Herald. Suas matérias são veiculadas em sites de notícias como o Politico, o Huffington Post e o Daily Beast. E em programas de televisão de grande audiência, como o 60 Minutes, da CBS, e o 20/20, da ABC. A CNN também leva ao ar reportagens da Pro Publica.
Um parceiro estratégico é a National Public Radio, a NPR, que tem mais de 20 milhões de ouvintes. A Pro Publica colabora regularmente com vários programas da emissora. Um deles é o This American Life, que foi escolhido para trabalhar em conjunto numa reportagem sobre um hedge fund predatório chamado Magnetar. Antes da crise de 2008, o fundo ganhou muito dinheiro especulando, ou manipulando, o mercado de hipotecas de risco.
This American Life é semanal. Apresenta sempre um tema ilustrado por duas ou três histórias reais, contadas com rigor jornalístico mas também com muito humor. Jake Bernstein e Jesse Eisinger, repórteres da Pro Publica acostumados à linguagem seca e direta das seções de economia, passaram sete meses investigando o Magnetar. Contribuíram com o programa dando entrevistas e explicações sobre o complexo mundo dos derivativos. A equipe do This American Life cuidou de tornar o assunto palatável aos seus mais de 6 milhões de ouvintes mensais. Bernstein e Eisinger, que nunca haviam trabalhado com rádio, viram sua matéria inspirar uma canção, intitulada Apostando contra o sonho americano, baseada no tema do musical Os Produtores. Em forma escrita, austera e sem música, a reportagem saiu também no site da Pro Publica.
Jesse Eisinger, que tem trinta e poucos anos e trabalhara com Steiger no Wall Street Journal, acha que a parceria com a equipe irreverente e talentosa do This American Life foi das melhores experiências de sua carreira. Num café próximo à redação, ele contou que quando Steiger o convidou para a Pro Publica, não teve dúvidas em aceitar.
Ele era repórter da revista financeira Portfolio, que estava prestes a fechar, e tinha boas propostas de emprego da Reuters e da Bloomberg. Na Pro Publica, o salário era um pouco menor. Mas Eisinger contava com a indenização que receberia da Portfolio. E, sobretudo, queria mudar o rumo da sua vida profissional. “Eu escrevia colunas sobre como os ricos podem ganhar ainda mais dinheiro”, disse. “Queria algo novo, e ainda não havia tido muitas oportunidades de fazer jornalismo investigativo.”
Eisinger se entusiasma com a Pro Publica: “Ao contrário do que acontece num grande jornal, onde há sempre muitas editorias, aqui todos seguem a mesma direção, com os mesmos objetivos. Temos apoio da chefia para perseguir matérias longas e complicadas pelo tempo que for necessário e não há pressão para escrever ‘o que vende’. Na grande imprensa os repórteres normalmente competem não pela melhor matéria, mas pela matéria de capa. Isso não existe aqui. Além do quê, no Wall Street Journal ninguém nunca transformou uma matéria minha num musical…”
A editora Susan White, que ocupa uma sala com vista para a Broadway é uma californiana de catálogo, cheia de energia. De cabelos curtos e claros, porte de quem pratica esportes, ela fala rápido e se empolga com facilidade. É outra entusiasta do modelo não comercial da Pro Publica.
White explicou que, para garantir a repercussão das reportagens, a redação se une ao veículo que considera mais adequado a cada matéria. “Descobrimos que um senador do Havaí usava sua influência para obter dinheiro do TARP, um programa do governo federal de auxílio às instituições financeiras, e favorecer um banco do qual era acionista”, disse. Foi feita uma parceria com o Washington Post antes de a série de reportagens ser escrita.
O repórter da Pro Publica estava familiarizado com a burocracia do TARP, contou Susan White, enquanto o repórter do Post conhecia tanto o congressista, que ele já vinha investigando havia um tempo, como o funcionamento do Congresso: “Os dois apuraram e escreveram juntos, e, como sempre, programamos a primeira matéria para sair no mesmo dia no nosso site e no jornal. Assim ninguém fura ninguém.”
Nesse caso, cada veículo cobriu os custos da sua parte da investigação. Mas há situações em que o jornal ou revista recebe a matéria de graça. Ainda assim, explicou Susan White, não se trata necessariamente do texto definitivo: “Nosso parceiro pode sugerir mudanças por questões de espaço e para adequá-lo aos seus leitores. Não vemos nenhum problema nisso.” A iniciativa, porém, é sempre da Pro Publica. “Sempre começamos uma apuração sozinhos e avançamos nela até ter certeza de que dá matéria”, disse. Só então é proposta a parceria.
Susan White veio do jornal San Diego Union-Tribune, que passa por dificuldades. A imprensa regional é a maior vítima da crise. Muitos jornais fecharam ou cortaram drasticamente os custos, a ponto de quase não terem mais as notícias locais. O senador democrata Chris Dodd disse em agosto à New Yorker: “Antigamente, havia onze repórteres de jornais de Connecticut cobrindo as minhas atividades todos os dias. Hoje não há nenhum.” Para Susan White, os jornais regionais “cometem suicídio” ao incentivar os repórteres a escrever “o mesmo tipo de matéria curta e superficial” que caracteriza a internet e a televisão.
Gerry Marzorati, do New York Times, concorda, e identifica um risco ainda maior. “A elite intelectual nunca teve tanta informação de qualidade à disposição”, disse. “Todos os grandes jornais e revistas do mundo estão on-line e vão sobreviver. O drama é o desaparecimento da mídia local, pois isso significa que a classe média perdeu as fontes de informação qualificadas. Antes, todo mundo via o noticiário principal da televisão, e lia na Time ou na Newsweek a versão resumida do que saía nos veículos mais sofisticados – isso além de ler sempre os jornais locais. Hoje o que a classe média consome são as notícias policiais, as fofocas da TV aberta e a gritaria partidária dos canais a cabo. É muito difícil governar com seriedade um país com uma população desinformada.”
Visitando a redação do New York Times, não se acredita que o jornal esteja em crise. É preciso um esforço para lembrar que a construção do novo edifício deixou a empresa tão endividada que em 2009, dois anos depois da inauguração, foi necessário vender o imóvel e arrendar do novo proprietário os 21 andares ocupados pelo jornal. O Times tem a opção, se tudo der certo, de recomprá-lo em 2019 por 25 milhões acima do preço de venda. Até lá, o prédio com o famoso nome em letras góticas na fachada, não pertence ao New York Times.
A redação – uma área aberta tomada por baias amplas, com acabamento em madeira – é dominada por duas escadarias vermelhas que levam a um mezanino, com balaustrada da mesma cor, no qual está instalada a editoria de cultura. As salas de reunião do primeiro escalão lembram o salão de comando de emergência da Casa Branca em filmes-catástrofe: uma mesa comprida e imponente, monitores em todas as paredes e o que mais se imaginar de parafernália high-tech de comunicação.
A sensação é de uma empresa de tecnologia ultramoderna, mas sem nerds ou espécimes da jeunesse dorée do Vale do Silício. Nada de funcionários de patinete pelos corredores. Quase não se ouve conversa. Os repórteres usam fones e falam baixo. Marzorati gosta muito do edifício, que acha bonito e funcional. O ambiente combina bem com suas ambições para o jornal: “No futuro, o New York Times será um site que terá também uma versão impressa.”
Os chefes da Pro Publica insistem em dizer que sua empreitada não é um modelo a ser seguido, e muito menos a solução para os problemas da imprensa. Não há como substituir com filantropia aquilo que, no jornalismo tradicional, é uma mercadoria. Uma redação como a do New York Times, com 1 150 pessoas e 26 sucursais internacionais, consome 200 milhões de dólares por ano. Não há fundação que aguente. A operação tem que ser lucrativa.
A ideia de uma redação não comercial que colabore com os veículos tradicionais não foi inventada pela Pro Publica. Ela é a base, há duas décadas, do Center for Public Integrity, o CPI. Ele foi criado por Charles Lewis, que o dirigiu por quinze anos e hoje é professor da American University, em Washington. Lewis é um fundador compulsivo de redações sem fins lucrativos. Desde 1989, já foram quatro. O CPI, além de produzir jornalismo, é o que os americanos chamam de watchdog group, um grupo que monitora instituições de interesse público. Com esse fim, o centro produz relatórios e livros sobre suas pesquisas. Tudo é publicado no site.
Sua sede fica a dois quarteirões da New American Foundation de Steve Coll, numa região coalhada de lobistas. A redação tem 35 repórteres e pesquisadores, quatro editores, um checador e um advogado. Um subprojeto do Centro é o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, uma rede de mais de 100 jornalistas em cinquenta países (entre eles, o Brasil), que é mobilizada para coletar informação para as investigações. O CPI administra um orçamento de 5 milhões de dólares por ano, doados por mais de cinquenta fundações, empresas e indivíduos. Segundo Bill Buzenberg, o diretor executivo, é um esquema que garante não só o futuro do centro, mas também sua independência. Se perder alguns desses financiadores, não fecha as portas.
Uma das críticas mais comuns à Pro Publica, ao contrário, está no fato de seus recursos virem praticamente de uma só fonte. Isso daria poder demais aos Sandler, e colocaria em risco a continuidade do projeto caso desistam de cacifá-lo. Paul Steiger vem tentando diversificar o financiamento, mas, como parte do patamar de 10 milhões de dólares por ano, não é fácil achar quem queira contribuir. Assim mesmo, a Pro Publica acaba de receber uma doação de 1 milhão de dólares da Fundação Knight, dinheiro que seria uma bênção para qualquer outra organização. Para a dos Sandler, não faz nem cócegas.
A diversificação, tornando a Pro Publica independente da boa vontade dos filantropos, é necessária também para manter a credibilidade do projeto, que até aqui está diretamente associada à escolha de Steiger como editor-chefe. Ele é respeitado no metiê, à direita e à esquerda do espectro ideológico. Ninguém imagina que aceitaria dirigir uma redação ativista, empenhada em defender as causas preferidas do patrocinador. O que vai acontecer quando se aposentar é outra história. Por enquanto, Steiger está a mil, sem dar nenhum sinal de que é hora de parar.
Bill Buzenberg, diretor executivo do CPI desde 2007, é outro que está animadíssimo, apesar de ter mais de 60 anos. Ele fez carreira na chamada “mídia pública”, aquela que recebe alguma verba do governo e as isenções fiscais a que têm direito instituições como museus e universidades. O grosso do financiamento, no entanto, vem de fundações e doações de particulares e do público.
Buzenberg passou três anos na BBC em Londres e foi vice-presidente de notícias da NPR. Grandalhão, meio desengonçado e de pele bem branca, em qualquer praia do Rio seria reconhecido a quilômetros como gringo. Sua sala é entupida de livros e papéis. Ao se levantar da mesa e se dirigir até o pequeno sofá, ele tropeça na pilha de folhetos que estava no caminho. Quando começa a falar do trabalho vai quase num fôlego só. De vez em quando se levanta para pegar material sobre o que está contando. Os visitantes saem carregados de folhetos, apostilas e livros, não só sobre o CPI, mas sobre os males do tabaco, o problema do estupro nas universidades americanas, o peso dos lobistas no funcionamento do Legislativo e por aí vai.
O diretor executivo do CPI não para de ter ideias de novas investigações, novas parcerias e novas formas de conseguir dinheiro. Até dessa última função ele gosta: “Descobri quando estava na NPR que eu adorava sair atrás de financiadores. E por que não? São pessoas interessantes, que acham o nosso trabalho importante e querem nos dar dinheiro. Tem coisa melhor?” Quando finalmente decide respirar, ele diz: “Eu adoro o meu trabalho.”
A redação do CPI, barulhenta e movimentada, parece com ele. Os repórteres são mais jovens do que os da Pro Publica, vestem-se de maneira mais informal, decoram as baias com objetos pessoais e pregam avisos de feiras de produtos orgânicos e shows de música pela sala. Parece mais a sede de uma ONG. Mas ninguém trabalha de graça, e os salários são semelhantes aos da Pro Publica. O jornalismo que se produz ali é tido pela imprensa tradicional como confiável e de alta qualidade. Além de colaborar com todos os grandes jornais, revistas e redes de rádio e televisão, o CPI se associa também a veículos estrangeiros, como o jornal The Guardian e a BBC.
O CPI e a Pro Publica são de longe as redações não comerciais mais bem financiadas. O orçamento das outras varia de 100 mil a 1 milhão de dólares. Jesse Eisinger, repórter financeiro da Pro Publica, acha que as redações menores, as locais, vão todas fechar, mas não só por falta de financiamento. Há outro motivo: a falta de leitores. “A verdade é que jornalismo investigativo não é popular nem entre anunciantes, nem entre leitores,” disse. Só raramente aparece um assunto empolgante como Watergate ou Abu Ghraib. Em geral, são temas que as pessoas preferem ignorar.
“É um jornalismo difícil de fazer e chato de ler,” disse Eisinger. Num jornal ou revista, a reportagem investigativa vem na sequência de notícias sobre esportes, estilo, cultura, moda, política. Bem ou mal, o leitor acaba dando uma olhada em tudo. Já no site da Pro Publica ou do CPI todas as matérias são graves, consequentes. O estilo tende ao árido.
Susan White, a editora da Pro Publica, explica: “Steve Engelberg, nosso diretor de redação, gosta que todos os fatos importantes estejam nos primeiros parágrafos, descritos de forma clara. Não há espaço para estilos pessoais. Nossa missão é chamar a atenção para problemas que precisam ser resolvidos. Damos toda a informação necessária para quem quiser resolvê-los.” A Pro Publica está tentando aumentar o tráfego em seu site para não depender tanto dos parceiros. Até agora, não teve muito sucesso. Força moral não costuma ser um grande chamariz de público.
A imprensa americana começou a esboçar uma reação. Os jornais que ainda têm dinheiro estão investindo pesado em seus sites. O New York Times cobrará pelo acesso on-line a partir de janeiro de 2011. A empresa estima que o nytimes.com perderá 20 milhões dos seus atuais 22 milhões de leitores quando a cobrança for instituída. O Times de Londres fechou seu site aos não pagantes em julho. O jornal não revela números, mas calcula-se que tenha perdido entre 80% e 90% dos leitores on-line.
O Wall Street Journal e o Financial Times sempre cobraram e continuarão a fazê-lo. Para eles, funciona. Não só não perdem leitores, como até ganham dinheiro com assinaturas on-line. Como diz Clay Shirky, professor da New York University, informação sobre finanças é o único tipo de informação que o leitor faz questão de não dividir com ninguém.
Outra solução aventada, mas ainda não levada à prática, é o modelo de jornal sem fins lucrativos do britânico The Guardian. Há até um projeto de lei em tramitação no Congresso americano que viabilizaria a transição. O Guardian, fundado em 1821, pertence desde 1936 ao Scott Trust, fundado pela família Scott para garantir seu financiamento em caráter perpétuo. A família abriu mão da propriedade do jornal e pôs quase toda a fortuna no fundo que o financia. O dinheiro é usado para sustentar o Guardian nos períodos de vacas magras. Nos de vacas gordas, o lucro é integralmente reinvestido. Ultimamente, as vacas andam magérrimas.
O editor-chefe Alan Rusbridger costuma dizer que os donos de jornais acham muito interessante o modelo do Guardian – mas só até descobrirem que deixam de ser donos dos jornais. Grande defensor do acesso gratuito à informação, ele acha que tornar o jornalismo mais caro vai na contramão da história, num momento em que, graças à internet, a sociedade se torna mais aberta e colaborativa. O guardian.co.uk é o segundo site de jornal em inglês mais lido do mundo, logo atrás do New York Times. Um terço dos leitores está nos Estados Unidos. Rusbridger não pretende cobrar pelo acesso.
Para Steve Coll, o lado positivo da crise foi ter desencadeado o debate sobre mídia pública. Entre os países ricos, os Estados Unidos estão entre os que menos gastam com ela: 1,35 dólar ao ano, contra 25 dólares no Canadá e na Alemanha, 60 no Japão, 80 no Reino Unido e mais de 100 na Dinamarca. Coll, Buzenberg e agora também o presidente da Universidade Columbia, Lee Bollinger – que defendeu a ideia num artigo no Wall Street Journal –, acham que há margem para que o governo americano invista muito mais sem comprometer a independência dos órgãos de comunicação.
A BBC é o exemplo de jornalismo de qualidade mais citado pelos que defendem ajuda governamental. Seu financiamento vem do governo britânico e da “licença de TV”, imposto que todos os moradores do Reino Unido pagam para ter direito a um televisor em casa. Fora do setor filantrópico, no entanto, essa solução não é muito popular. Philip Gourevitch, o repórter da New Yorker, diz: “Não tenho nada contra mídia pública nem contra jornalismo sem fins lucrativos, mas prefiro acreditar que meu trabalho ainda possa dar lucro.”
Um dos poucos consensos é que a era do jornal de papel está próxima do fim. Daí que a grande esperança sejam os dispositivos eletrônicos como o iPad e o Kindle. Mathias Döpfner, presidente da Axel Springer, conglomerado alemão que controla mais de 170 jornais e revistas em 36 países, disse numa entrevista a Charlie Rose que todo publisher deveria, uma vez por dia, rezar em agradecimento a Steve Jobs, por ele ter salvado o negócio.
Nem todos se mostram tão entusiasmados, mas o raciocínio que embasa a reação de Döpfner vem se generalizando. É o seguinte: pode ser muito difícil convencer o leitor a gastar dinheiro com o site de jornal que ele acessa de graça há dez anos. No entanto, é considerado natural pagar por serviços móveis, como SMS, ringtones, chamadas de voz e caixa postal. Os aplicativos disponíveis no iPhone provam que o consumidor não se incomoda em pagar por novos serviços que lhe pareçam importantes. A esperança é que incluam nessa categoria os seus jornais e revistas prediletos.