Cesar Maia peita o grande dragão
Furos do melhor repórter investigativo da cidade
Marcos Sá Corrêa | Edição 15, Dezembro 2007
Nem incêndio no Rio de Janeiro se faz como antigamente. Pegou fogo, no mês passado, o camelódromo da rua Uruguaiana. O mercado popular, com 1 600 bibocas, funciona bem defronte à Quinta Câmara da Procuradoria Geral da República, que eventualmente recepciona os fiscais da Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Propriedade Industrial, em busca de CDs piratas, DVDs clonados e grifes falsificadas. Mas o Estado não dava o ar da sua graça no camelódromo desde 2001. Chamados dessa vez no domingo de manhã, e ainda por cima no meio de um hiperferiadão, os bombeiros tiveram de enfrentar, antes das chamas, dois hidrantes entupidos. Esburacaram a calçada para abrir caminho para a água. Levaram duas horas e meia até concluir o rescaldo. Saíram dali com o saldo de 150 bancas destruídas, mas sem mortos nem feridos.
Se dependesse dos jornais, o caso teria parado por aí. Três dias depois, contudo, o prefeito Cesar Maia publicou na internet outra versão do incêndio, muito mais quente que a da imprensa popular, que não dispõe a toda hora de informação privilegiada. O incêndio, segundo ele, havia sido criminoso. Trazia para a violência carioca o selo inconfundível da máfia chinesa, que controla o camelódromo e, segundo o alcaide, também manda na cidade por ele governada. A notícia encabeçava a edição de quarta-feira, 21 de novembro, do “ex-blog de Cesar Maia”, um boletim diário que tudo vê e tudo comenta, inclusive o câmbio do dólar na Venezuela, cotado naquele dia a 6,5 bolívares.
O prefeito se baseou no “informe de policiais que trabalham na área de Inteligência”. Para não deixar dúvidas sobre a procedência, Cesar Maia redigiu sua descoberta como um boletim de ocorrência, com dezoito frases curtas e bombásticas, todas puxadas por um “que”. Por exemplo: “Que [disputam o Mercado Popular da Uruguaiana] duas fortes máfias chinesas”. Uma “atua na venda das mercadorias, na sua grande maioria ilegais, e outra, na venda de proteção aos camelôs”. Esta “cobra pedágio tanto dos camelôs, como dos fornecedores de mercadoria”. O chefe da quadrilha é Wu Ling, chinês de “mais ou menos 38 anos” – em outras palavras, aparenta mais de 37 e menos de 39 anos. Trata-se de um carioca emergente, pois “morava na Ilha do Governador” e, “atualmente, mora no Leblon”.
As fontes do prefeito sabem que, “recentemente, antes do incêndio, Wu Ling ameaçou alguns camelôs que estavam atrasados no pagamento do pedágio da proteção, tendo informado para alguns que ele poderia fazer ‘alguma coisa’ para mostrar sua força”. Elementar, meu caro carioca: “O incêndio pode ter sido para intimidar os camelôs”. Como intimidaria: “Eles não denunciam as máfias chinesas por medo de morrerem”.
A polícia secreta esclarece, através de seu porta-voz, que “Wu Ling não vende mercadorias” e “só quer dar proteção”. A muamba, em si, fica por conta da turma que usa “depósitos clandestinos localizados no Mercado São Sebastião”. O informe não diz, mas o São Sebastião é o principal entreposto dos atacadistas de secos e molhados do Rio. Há mais ou menos meio século, instalou-se em 7 500 metros quadrados de galpões na avenida Brasil, numa parceria da Bolsa de Gêneros Alimentícios com o bispo d. Hélder Câmara. Com as bênçãos do bispo, levou o nome do santo padroeiro da cidade.
Isso são águas passadas. Agora, segundo o prefeito, o Mercado São Sebastião é “o depósito-matriz da Máfia Chinesa”. Abastece-o “um grande navio, enferrujado”, eventualmente “escoltado por dois barcos da Guarda Costeira da Marinha”, fingindo que “foi apreendido”. Deduz-se, dessa farsa, que “provavelmente há cumplicidade deles”.
A bordo “trabalham, dia e noite, umas 200 costureiras, quase em regime escravo”, falsificando artigos com as marcas “Nike, Adidas, Mizuno”. Com tanta mão-de-obra barata dando sopa ali mesmo, na Baixada Fluminense, Cesar Maia acha que as costureiras são recrutadas em Pequim. O barco faz viagens ocasionais a Mangaratiba e Angra dos Reis, no litoral sul fluminense. Onde atraca as autoridades portuárias embolsam propinas “entre 500 e 600 mil reais”. Comanda-o Joe Chong, um “chinês de mais ou menos 23 anos” – quer dizer, mais de 22 e menos de 24. Chong tem nas costas a tatuagem de “um grande dragão” e, “a cada morte que pratica, coloca uma escama no dragão”. É irmão de Law Kim Chong, “o maior contrabandista do Brasil”. (Aqui, na verdade, faltou um pouco mais de apuração da parte do prefeito. Pela tradição chinesa, o sobrenome vem antes, ou seja: para pertencer ao círculo familiar do “maior contrabandista”, tem de ser Law, não Chong. Ninguém é perfeito.)
Seu gerente é “um elemento de nome Humberto, moreno claro, cabelo liso”. Tem “ótima apresentação pessoal” e “característica tatuagem de são Jorge no peito” – talvez para fazer dobradinha com o dragão de Chong. Humberto tem “amigos íntimos na Marinha”. E costuma acertar essas parcerias no “Pub Shenanigan’s, na praça General Osório, em Copacabana”. O que deixa no ar uma única dúvida: aparentemente, a Inteligência da polícia ainda não apurou – e, portanto, não repassou ao “ex-blog” do prefeito – a informação de que a praça General Osório fica no bairro de Ipanema e não em Copacabana. O mistério da máfia chinesa não terá descanso na próxima edição.