Toda noite sonhava com a colina e o pequeno lago, os bigodes zumbindo como o mesmo besouro de papel, em voo rasante no calor do peito ILUSTRAÇÃO ANTIGA_ANÔNIMO_NO ESTILO DO JON WHITCOMB
Céu de estrelas
Uma janela para o amor
Vilma Arêas | Edição 61, Outubro 2011
LUGAR-COMUM
O olhar do supervisor soprava a onda do cabelo solto sobre a testa para ver melhor. Mas não via. Não podia prestar atenção ao serviço, o olho azul do supervisor faiscava na vidraça. Logo no dia seguinte, chamada ao escritório. Ninharias. Todos os dias um assunto, isso e aquilo. Risadinhas das colegas. Pior se morria o assunto. No final do corredor ele zumbiu como um besouro caído em seu decote, fazendo cócegas. Só pôde obedecer.
Foi e entrou depressa no Fusca azul-celeste, da cor dos olhos.
O restaurante longe, em rua sem calçamento, de onde se via o lago. Uma fonte falsa cercada de verde e as mesas com toalhas quadriculadas.
Gosta de vinho?
Ela disse, hum, hum.
Mastigaram o frango, beberam o vinho, aí ela disse que estava acabando sua hora de almoço, tinha que voltar.
Ele, chateado, mas cheio de importância. Esquece a hora, sou supervisor, eu é que decido.
Outra garrafa brilhando, os olhos brilhando, os bigodes zumbindo como a voz, salpicados de espuma.
Eu é que decido e você fica aqui comigo. Tá?
Algumas gotas vermelhas na toalha. Olhando firme para se distrair daquele brilho.
Então ele disse, você tem uma boca linda.
Acha?
Acho.
O peito também, um peito lindo.
Dali se via o lago, com reflexos verdes.
O bico furava o pano da blusa, que nem rubi de anel de pedra dentro da luva, disse Mário, sempre exagerado. Mas era mesmo.
Arrastou a cadeira pro seu lado, meio rouco, vamos? Apertava seu braço, a mão roçava a pedra do anel dentro da blusa.
Ela disse que não podia, sabia que era casado e ela nunca tinha estado com homem.
Como disse?
Juro, nunca.
Nunca?
Nunca.
Mas não sente falta?
Como posso sentir falta do que nunca tive?
Pálido, mastigando o bigode úmido, incrível, em que fria me meti. Só pode ser mentira. Então nada feito, não quero encrenca, já tenho problemas demais.
Agora ia enrolando às pressas, no guardanapo, a paisagem ensopada de vinho, entornando o laguinho. Que pena!
Levantou-se.
Pronto, acabou-se.
Mas era mentira. Durante um mês inteiro esperando pelos cantos, segurando o braço e a mão roçando, por distração, a pedra e a penugem.
Vamos.
Não vou.
Não faço nada, só quero ver se é mesmo verdade, só ver.
Beijos pelos cantos.
Um dia: é a última vez, palavra de honra, nunca mais.
Afinal nunca me disse: não é feliz no casamento?
Impaciente. Casamento é casamento, que história é essa de felicidade, casamento acaba com o sonho de um homem, não dá pra explicar a uma virgem, é melhor esquecer.
Mas não esquecia. Toda noite sonhava com a colina e o pequeno lago, os bigodes zumbindo como o mesmo besouro de papel, em voo rasante no calor do peito.
NEM TODOS OS GATOS
para Carol
Para se consolar, o repórter jovem e desempregado estava lendo o blog de sua amiga preferida quando Céu de Estrelas – uma janela aberta para o amor, o convidou para redigir um texto sobre o crime que sacudia a cidade. Segundo a revista, as outras reportagens da mídia não convenciam. Muito moralistas e sem imaginação. A ordem era principalmente não falsear o espírito da publicação, isto é, o amor.
Que droga, ele ficou chateado, salada de amor com assassinato ao molho de lágrimas de jacaré. Mas o cachê era expressivo. Se eu não fizer, outros farão. É melhor que seja eu.
Começou por se referir às paredes secas da assassina. Sem convicção. Por que paredes? Vão cortar.
Em seguida ouviu a mulher dizer, sem contrair um músculo da face.
Matei por amor.
Tudo bem. O povo certamente aos berros. Lincha! Lincha!
As lágrimas das velas esmaltavam o capim roído do terreno baldio. E vela chora?
Um popular afirmou nunca ter visto tamanho aparato policial.
Viva ou morta!
De olho no ar. Deise e as condições inumanas da periferia. Deise e o crime como única saída. Afinal já disseram que o primeiro ato de liberdade do escravo é o crime. Mas… muito radical. Melhor mudar.
A garotinha tinha sido encontrada num terreno baldio, cabeça raspada, escoriações várias, vestido chamuscado.
Lincha! Lincha!
Os carros da tevê chegaram antes da polícia.
Os flashes empalideciam as lágrimas da mãe, ombros rodeados por todos os lados, pelo marido. Droga, por todos os lados. E ela é uma ilha? E ilha tem marido?
Um monstro matou o meu anjo.
O pai, isto é, o amante da assassina, diante dos microfones. Quero ser enterrado com minha filhinha. Sou o único culpado. O único.
O que é isso? Calma, calma.
Alguns vizinhos forcejando para entrar no campo de visão da tevê. Coragem, homem é homem.
A esposa de olhos revirados. Eu te perdoo. Nosso sofrimento é muito grande.
Onde Deise morava? E onde poderia morar? Depois resolvo isso.
De olho no ar. A meia-água devia ter trepadeiras na varanda, perto do ponto final da viação Praça Mauá–Santa Cruz. Ou Aeroporto–Jaçanã. Na varanda estaria Deise, portando olhos secos, pernas finas, talvez grossas, saia cobrindo os joelhos.
Matei por amor.
Lincha! Lincha!
O pai da assassina cambaleou na porta da cozinha. Ela não é um monstro, é minha filha.
Assassina que se preza tem olhinho mau, faca nos dentes, chicote no rabo. Granadas na barra da saia, por que não?
Agora faz falta um comandante contendo o povo.
Justiça é justiça. A justiça tarda, mas não falha. Deise terá seu julgamento.
Viu na internet, deslizando no clip, a assassina no terreno baldio, apontando um ponto qualquer do capinzal.
Foi aqui. Eu estava conversando com ela. Ela estava de costas, folheando a revistinha que eu dei pra ela. Eu estava tão emocionada que cortei um cacho de seu cabelo. Aí ela se virou. Por que cortou o meu cabelo? Para ter uma lembrança sua. Por quê? Porque gosto de você.
Deise tirou do bolso da saia, ou da blusa, o cachinho amarrado com retrós vermelho. Provavelmente. Entregou o troféu ao policial mais próximo. O homem teve medo de segurar e o cachinho caiu. Como uma granada. Que explodiu, claro.
Ela não é do bem, o.k.?
Há dois anos conheci Anselmo, que me deu uma carona de jipe. Fiquei louca por ele, que também dizia estar louco por mim. Só depois é que soube que tinha mulher e filha. Eu matei, mas não sou culpada. Culpados são Anselmo, que me enganou, e meu pai que não soube me criar.
Surge do nada um defensor público, esgotado.
Vou pedir exame de sanidade mental para minha constituinte.
E a cidade? Ora, trancando suas criancinhas, as mulheres olhando os maridos com ar vingativo. Eles saíam cabisbaixos. Muito natural.
O repórter continuava chateado com aquela matéria, apesar do cachê. Para acabar logo, imaginou a última cena longe das delegacias e dos corredores mal lavados da Justiça.
Do alto do cadafalso, cabelos ao vento, Deise atirou para o ar, como um buquê de noiva, epa!, uma última frase misteriosa. A nudez, como a morte, é democrática.
Que diabo, de onde fui tirar isso?
A frase circulou dentro da lágrima e, enfim, rolou pela face solitária. Como o motociclista no globo da morte.
Olho no teto. Riscou a imagem. De mau gosto. Expressiva mas de mau gosto. A frase fica, é de efeito.
A nudez, como a morte, é democrática.
Para sua surpresa a linda frase e a cena final foram cortadas e copidescadas pela equipe de Céu de Estrelas – uma janela aberta para o amor, que manteve, não obstante, o cadafalso e os cabelos ao vento. O repórter concluiu que eles não ligavam para anacronismos. Também achou que não tinham a menor noção de retórica.
Completamente esgotado, mergulhou de novo no blog de sua amiga Carol para desestressar. E leu.
Namoro é bom. É pé, é mão, é joelho, ficar pelado junto, é boca, é ombro, é mão.
De olho no ar. Isso é que é. A verdade.
O mundo era redondo, segundo as últimas notícias. Histórias também tinham de descer redondas.
Leu mais.
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cu
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ga
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s são
paulo
Apagou todas as luzes.
Abriu a janela e ficou pensando nela.
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