"Figura encantadora", segundo Antonio Candido, Lêdo Ivo gostava de provocar: arrumou brigas com os poetas concretistas e com Oswald de Andrade, que o chamou de "chulé de Apolo" ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE_2013
Chá com veneno
Uma tarde de histórias e intrigas ao lado de Lêdo Ivo
Claudio Leal | Edição 77, Fevereiro 2013
Setenta anos da memória literária brasileira se dissiparam com a morte do poeta alagoano Lêdo Ivo, vítima de edema agudo no pulmão, em 23 de dezembro de 2012, na cidade de Sevilha, na Espanha. Às vésperas de passar mal, aos 88 anos, ele queria cruzar a pé uma das pontes do Guadalquivir, o rio que “canta em pedra” em um de seus sonetos. Desde que chegou ao Rio de Janeiro, em 1943, e abancou-se na Livraria José Olympio, o autor de Ode ao Crepúsculo conviveu com grandes e medíocres romancistas, literatos neoparnasianos e vanguardeiros, poetas federais e municipais, banqueiros, donos de jornais e políticos com veleidades beletrísticas. Seu nome parecia camuflar um pseudônimo (“Lêdo Ivo de quê?”, perguntava Manuel Bandeira) e havia ainda “este acento circunflexo, pousado sobre o meu nome como uma borboleta”.
No Rio, em 13 de setembro – três meses antes da sua morte –, o chá da quinta-feira serviu de cenário para o nosso encontro, na Academia Brasileira de Letras (ABL). Em marcha lépida, Lêdo Ivo compareceu pontualmente às 15 horas, ao pé da estátua de Machado de Assis. Baixinho de alta voltagem, desajeitado sem ser deselegante, ele atravessou o saguão do Petit Trianon e atendeu a dois visitantes que o anunciaram: “Poeta!” Na biblioteca dos acadêmicos, Lêdo aproximou-se de uma salinha, iniciando o roteiro de visita, e apontou um quadro a óleo do pintor romeno naturalizado brasileiro Emeric Marcier: “Aquele é um retrato meu. Mas elas [as funcionárias] acham que é o Jorge Amado!” A gargalhada lhe esticou os lábios além dos limites, como se fosse suspensa por dois pregadores.
Na saída da biblioteca, perguntei sobre a reprimenda do ex-ministro da Educação Eduardo Portella ao seu posfácio de Navegação de Cabotagem, o livro de memórias de Jorge Amado. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em agosto, o seu maior inimigo cravejara: “O Jorge não gostava dele.” Lêdo interrompeu a caminhada, num recuo. “Ah, bem lembrado! Vamos aqui de novo.” Com o cotovelo caído de lado no balcão, ele pediu à bibliotecária: “Por favor, me consiga um exemplar de E Agora Adeus: Correspondência para Lêdo Ivo. Vamos ver se Jorge não gostava de mim.”[1] Nos esticados minutos de espera, surgiu um jornalista da TV Senado, interessado em entrevistá-lo “para uma série sobre a trajetória literária dos acadêmicos”. “Quando há, quando há!”, emendou o imortal, de garras salientes. A coletânea foi localizada em outro ponto da Academia e trazida a galope para o poeta, que fuçou as páginas até encontrar as cinco cartas amigáveis do escritor baiano. “Veja se ele não gostava de mim”, pediu, outra vez manso. Com palavras raiventas, sentenciou: “É por isso que lá em Alagoas a gente mata e joga no rio!” Novas gargalhadas, e a mão arrancou um pescoço imaginário no ar.
As pelejas com o professor Eduardo Portella, ocupante da cadeira número 27, amargaram os chás vespertinos. Em novembro de 2004, numa festa na casa do então presidente da ABL, Ivan Junqueira, Lêdo Ivo jogou um copo de Coca-Cola no rosto de Portella, depois de uma esbarrada. A antipatia vinha esquentando desde a votação do melhor livro de poesia do Prêmio Abgar Renault, em 1996, o ano em que os imortais trocaram acusações de colaboração com a ditadura militar. Portella tratou de reavivar uma suspeita corrente entre militantes esquerdistas, em 1964, de que Lêdo teria elaborado uma lista de intelectuais comunistas no período em que atuou como repórter especial da Tribuna da Imprensa. Fundado e capitaneado pelo ex-governador Carlos Lacerda, de 1949 a 1961, e a partir de 1962 por Hélio Fernandes, o jornal se opunha ao presidente João Goulart.
“Falaram muito isso. Tudo que eu conhecia do Lêdo Ivo era contra isso. Podia até não ser um ativista, um grande combatente, mas também não era um adesista, de jeito algum”, atestou Hélio Fernandes, 92 anos, um dos jornalistas mais censurados pelos militares. No contra-ataque, além de desmentir Portella, Lêdo citou a presença do rival no Ministério da Educação do governo João Figueiredo, no declínio da ditadura. Da discussão nasceram mágoas, insultos, perdigotos e também um processo judicial aberto por Portella em 1996 e finalmente arquivado em 2009. “Quando veio o golpe, a esquerda caiu em cima do Lêdo. Ele sofreu muito com as suspeitas de delação”, contou o poeta Thiago de Mello, ex-exilado político. Um dia, no aniversário de Manuel Bandeira, Lêdo procurou o amigo: “Thiago, você não me cumprimentou no Teatro Opinião. Eu vim lhe dizer que não é verdade o que dizem de mim.” O escritor amazonense se dispôs a defendê-lo e o aproximou de Cuba. Em 1991, Lêdo Ivo integrou o júri do prêmio literário da Casa de las Américas, em Havana.
O derradeiro embate ocorreu em agosto de 2011, sem arremesso de líquidos, o que não chegou a aliviar Portella, alvejado com o epíteto de “tintureiro de si mesmo”, extraído da obra do padre Manuel Bernardes (um clássico português do século XVIII). Lêdo acusou o adversário de atrapalhar sua palestra sobre o poeta Gonçalves de Magalhães (1811–82), guardando o troco para a sessão da semana seguinte: “Durante 25 minutos, este auditório ouviu, ininterruptamente, ganidos, gemidos, vagidos, coaxos, grasnidos, uivos, ladridos, miados, pipilos e arrulhos intoleráveis, senão obscenos, de um macilento boquirroto ostensivamente deliberado a tisnar e perturbar a minha exposição”, atacou. Portella preferiu silenciar. Já em casa, Lêdo telefonou-me para dizer que fizera “um barraco” e que o discurso lido por ele (“a pedido de amigos, para honrar minha alagoanidade”) seguiria por e-mail. “É um dos mais duros da história da Academia, viu?”, reforçou. Procurado para comentar o histórico das desavenças, Portella não retornou os telefonemas.
Mais de um ano depois da contenda, no Salão de Chá ainda vazio, a mesa está forrada de mamão, abacaxi, melão, banana, goiaba, morango, figo, uva, bolos, biscoitos, salgados, bolinhos de bacalhau e sucos. Não falta o célebre chá preto, derramado em xícaras delicadas, de par com a decoração do ambiente. “Coma, coma”, pede Lêdo. “Traz um chá para ele.” A seco, beliscando apenas uma fruta, ele rememora outros confrontos, desta vez entre Jorge Amado e Rachel de Queiroz. “Brigaram, mas foram amigos. Ela abrigou Jorge em Maceió, no tempo em que ele tomou Zélia Gattai de um membro do Partido Comunista, no Rio. Quando Luiz Carlos Prestes ditou regras para os militantes e disse que escritor stalinista não cumprimenta trotskista, Jorge foi à Livraria José Olympio e não cumprimentou Rachel. Ela ficou furiosa! Mas ele telefonou: ‘Rachel, desculpe, não pude cumprimentá-la porque estava sendo vigiado. Mas eu gosto muito de você!’ Genial, não é?”, divertiu-se.
O poeta conquistou uma vaga na Academia somente na nona tentativa, em 1986, por unanimidade, sucedendo a Orígenes Lessa na cadeira número 10, que tem Rui Barbosa como fundador. Presidente da Casa por 35 anos, Austregésilo de Athayde não simpatizava com o veio de polemista do candidato, até que amigos os aproximaram. Insinuava-se talhado para a literatura desde a meninice em Alagoas, ao publicar uma resenha de Vidas Secas, mal suspeitando que um recorte do jornal seria enviado a Graciliano Ramos, com uma anotação a lápis: “Catorze anos.” Para Mário de Andrade, As Imaginações foi “uma estreia deslumbrante”. A imagem de espadachim não abafou o talento de polígrafo: publicou mais de trinta livros de poemas (entre primeiras edições e antologias), cinco romances, contos, crônicas, traduções (de Guy de Maupassant a Rimbaud), reportagens, roteiro de cinema, memórias, críticas e ensaios. Aos 80 anos, quando os pneus dos poetas costumam estar murchos, lançou Plenilúnio (Ed. Topbooks). Segundo o filho, o artista plástico Gonçalo Ivo, ele deixou dois livros inéditos, Calima [Mormaço] e Aurora, ambos editados na Espanha e que serão publicados pela brasileira Contra Capa. No final de 2012, o romancista português Valter Hugo Mãe revelou sua descoberta da poesia do brasileiro: “Lêdo Ivo é um dos melhores poetas do mundo e quase me mata de delicadeza”, escreveu no Jornal de Letras.
Na reação à Semana de Arte Moderna de 1922 e no retorno às formas rimadas e metrificadas, Lêdo e João Cabral de Melo Neto “transcenderam os limites da Geração de 45”, dimensionou o acadêmico Ivan Junqueira. “Na minha visão de filho e de artista, um homem como Lêdo Ivo incomoda”, sustentou Gonçalo Ivo. “O que ele diz do concretismo, do modernismo e das coisas sacrossantas dos intelectuais da USP, que se esquecem da tradição nordestina, é muito mais um debate intelectual do que uma polêmica pela polêmica.” A vertente de ensaísta goza de reputação, mas seus relatos memorialísticos são debatidos pela crueza com que ele desenha os amigos mortos, sem ligar para os melindres dos herdeiros dos medalhões.
No texto “O mundo concentracionário de Graciliano Ramos”, incorporado ao livro Teoria e Celebração (1976), ele narra as intolerâncias do mestre do romance brasileiro, a começar pelo desejo de que um “cataclismo fizesse afundar todo o estado” de Alagoas, sua terra natal. “Odiava também os vanguardistas e modernistas, que, a seu ver, eram todos uns homossexuais. E, estes, ele os considerava seres perversos e repelentes”, garantia Lêdo. Prosseguindo: Graciliano “respeitava Machado de Assis, mas em certas horas o chamava de ‘negro metido a inglês’”. Filha do escritor, Luíza Ramos afirmou que Lêdo “pouco conviveu com ele e se arvora a ter convivido muito”. “Ele ia lá em casa aos domingos. Mas a casa era aberta, não era um relacionamento de grande amizade. A diferença de idade não dava pra isso. Em 1945 nós não tínhamos mais relacionamento nenhum”, Luíza ressaltou. Clarita, sua irmã, morta em 1993, “ficou muito brava, escreveu contra Lêdo e o ameaçou de morte. Isso foi público. Todo mundo sabe. Claro que ela não iria matá-lo, mas ameaçou”.
Lêdo Ivo abriu também fronts no combate à poesia concretista (“Veja a falta que faz um bom curso primário!”) e em sua primeira querela de relevo, com o modernista Oswald de Andrade. No Copacabana Palace, Oswald lhe ofereceu um almoço, não se esquecendo de baforar a chinfra de burguês. Talvez ao melhor estilo das tijoladas oswaldianas, o alagoano batucou a crônica “Ser dois ao mesmo tempo”, publicada em 25 de janeiro de 1948 no Correio da Manhã, em que espinafrava a hipocrisia do escritor paulista: “Lembro-me do poeta e romancista Oswald de Andrade que, instalado em um hotel de 300 cruzeiros a diária, após um lauto jantar regado a vinho de longínqua e peregrina adega acende um charuto e, num suspiro de inquietude artística e conforto, informa ao jovem poeta que foi visitá-lo: ‘Bem, filho, agora vou subir para o quarto, a fim de escrever uma cena proletária do meu romance.’”
“Oswald ficou furioso, pediu minha cabeça a Paulo Bittencourt [proprietário do jornal]. Depois, fui a uma conferência em São Paulo e discutimos no auditório”, contou Lêdo Ivo, em 2011. Foi nessa batalha que o bumerangue retornou às mãos sagazes de Oswald. No final da palestra organizada pelo Clube de Poesia, a respeito da Geração de 45, Lêdo ouviu contestações equilibradas do comandante modernista, mas preferiu esnobar: “Não lhe respondo, porque o senhor é o calcanhar de aquiles do modernismo.” Oswald bateu forte: “E o senhor é o chulé de Apolo!” Soou a sineta.
Amigo de ambos os brigões, o crítico Antonio Candido, 94 anos, considerava Lêdo Ivo “uma companhia encantadora”. O poeta o incorporou à lista dos seus descobridores, ao lado de Mário de Andrade, graças a um artigo simpático ao primeiro livro de poemas, As Imaginações (1944). Candido reforçou os elogios em Iniciação à Literatura Brasileira: “Temperamento poético exuberante servido pela alta competência técnica e um domínio pouco frequente da linguagem.” Em dezembro, por telefone, o autor de Formação da Literatura Brasileira referendou: “Ele escrevia prosa admiravelmente bem. É dos raros poetas brasileiros da geração dele que era também um ensaísta capaz de discutir problemas literários.” O diplomata e ensaísta Alberto da Costa e Silva, um dos mais respeitados africanistas do país, pediu um dia para pensar e, enfim, recorreu a uma metáfora para definir o confrade: “Lembra-se das papeleiras espanholas? Pois o Lêdo era um desses móveis. Ele tinha uma porção de gavetinhas. Você falava um nome qualquer, abria a gavetinha e ele saía com cinco, seis, sete, oito, nove, dez histórias sobre aquelas pessoas.”
No Petit Trianon, a memória de Lêdo esbarrou em Clarice Lispector, cujos olhos esplêndidos o fascinaram no primeiro encontro: “Quando descrevi a beleza deslumbrante de Clarice, o Moacyr Scliar veio me perguntar: ‘Lêdo, diga a verdade: você comeu Clarice?’ Eu respondi: ‘Nunca! Foi uma amizade clássica.’” Numa prosa em voz alta, de velocidade e coesão espantosas para um homem de 88 anos, ele dosava análises literárias e tiradas licenciosas. “Dos escritores mineiros que vieram para o Rio, Autran Dourado foi o melhor, o mais realizado, não se perdeu”, analisou o poeta. “Fernando Sabino fez sucesso com O Encontro Marcado, mas se dispersou em crônicas. Otto Lara Resende se dedicou ao jornalismo e não teve tanto tempo para se dedicar à obra. Como poeta, Paulo Mendes Campos não fixou uma voz própria. Primeiro, imitou Carlos Drummond de Andrade, depois imitou Vinicius de Moraes. Nunca desenvolveu uma linguagem pessoal, mas era um excelente cronista. Autran foi o único que permaneceu fiel ao romance.”
Mesmo que não sejam puxadas, as gavetinhas se abrem. Ele revela que a viúva de João Cabral de Melo Neto, a poeta Marly de Oliveira, de gênio mercurial, morreu em 2007 “com dívidas financeiras” e “a Academia precisou pagar as despesas hospitalares”. Mais um escaninho se desloca, e a confissão é familiar: “Minha mulher, Lêda, era amiga da primeira mulher de João Cabral, Stella. No ano em que João ficou viúvo e voltou a morar no Brasil, junto com Marly, ela ligou para ter notícias. Marly comentou, grosseiramente: ‘Estou aqui tendo muito trabalho, porque a casa está uma imundície.’ Lêda foi ríspida: ‘Se está uma imundície, não é por culpa de Stella. A sujeira daí é outra. Passar bem!’”
Fez-se amigo de Cabral nas incursões à biblioteca do crítico Willy Lewin, na década de 40, no Recife. Quando “a obscuridade começou a voltar-nos desdenhosamente as costas”, descreve Lêdo em Confissões de um Poeta (1979), João Cabral lhe ofereceu um epitáfio, riscado na folha de rosto de O Engenheiro:
Aqui repousa
livre de todas as palavras
LÊDO IVO,
poeta,
na paz reencontrada
de antes de falar,
e em silêncio, o silêncio
de quando as hélices param
no ar.
Suas hélices permaneciam em volteios na hora em que o acadêmico Arnaldo Niskier se incorporou à mesa, acompanhado por um jornalista e um fotógrafo, encarregados de uma reportagem sobre seu novo livro, Memórias de um Sobrevivente: A Verdadeira História da Ascensão e Queda da Manchete. Lêdo o recebeu com elogios dúbios à obra: “O livro é bom. São memórias da redação, de quem viveu dentro da revista, mas não abrange o ponto de vista industrial. Não pega a lógica mais ampla do jornalismo. É o relato de um profissional lá de dentro, próximo ao chefe [Adolpho Bloch]. Não tem o lado gerencial da Manchete. Ficou muito bom, bem preciso.” O arremate é queixoso: “Você só se esqueceu de mim! Fez apenas uma referência. E olha que eu trabalhei lá muitos anos…”
“Ah, Lêdo, trabalhamos pouco tempo juntos! Foi pouco tempo…”, justificou Niskier.
“Não, Arnaldo. Convivemos por muito tempo! Você se esqueceu? Sei que você não iria lembrar, tem seus motivos…”, mordiscou Lêdo.
“O [Carlos Heitor] Cony leu e gostou do livro. Reclamou apenas que eu falei pouco de mim”, acrescentou Niskier.
Lêdo o contrariou: “Não é verdade, Arnaldo. Você falou demais de você! Só sua posse na Academia consumiu três páginas! O Cony não soube ler.”
“Você não está comendo? Peça mais um chá”, incentivou o poeta, enquanto Niskier esfriava o assunto. Por telefone, um mês depois da tarde na ABL, Lêdo disse que não brigou com Adolpho Bloch na Manchete, mas foi demitido assim que rejeitou uma ordem para escrever um perfil do ditador Emílio Garrastazu Médici. Com a indenização, comprou um sítio em Teresópolis.
Aproximando-se das 16 horas, outros imortais preenchiam as cadeiras: Marcos Vinicios Vilaça, Murilo Melo Filho, Cícero Sandroni, Alberto da Costa e Silva… Não, Eduardo Portella se manteve distante do banquete. Na esteira das lembranças, brotou na mesa o nome de Olegário Mariano, o “Príncipe dos Poetas Brasileiros” na década de 30. Avesso a declamar seus próprios versos, Lêdo passou a recitar de memória “O enterro da cigarra”, de Mariano:
As formigas levavam-na… Chovia…
Era o fim… Triste outono fumarento!…
Perto, uma fonte, em suave movimento,
Cantigas de água trêmula carpia.
De beleza clássica e autoconfiante, narrou Lêdo, Olegário Mariano embarcou num bonde e engatou flerte com uma mulata, seduzida pela pomposidade do fardão. “Guardou o endereço dela e, no dia seguinte, foi procurá-la no morro do Pendura a Saia”, disse. “Era uma casa suspeita, mas ele tomou coragem e abordou um homem musculoso, na porta. O mulato confirmou a presença da mulher e deu um grito para dentro do corredor: ‘Tem um viado aqui fora lhe chamando!’”
Após a anedota, recordei a frase de Millôr Fernandes: “Todo mundo começa Rimbaud e acaba Olegário Mariano.” Tradutor do poeta-prodígio de Charleville, Lêdo achou graça e voltou a ouvir os colegas. Após sua estreia precoce, aos 20 anos, reforçada em 1945 pelo surgimento de Ode e Elegia, o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt decretava nas rodas literárias: “É o Rimbaud brasileiro.” O Vaticínio deve ter aveludado uma de suas gavetinhas da alma. Em junho de 1957, o romancista Lúcio Cardoso anotou em seu diário, relançado recentemente pela Civilização Brasileira: “Lêdo Ivo: eu me assusto ao vê-lo tentar colar-se com tanta insistência à imagem de Rimbaud. Efetivamente, é uma admiração da sua juventude, mas a fidelidade não garante vocação. Tudo nele respira o contrário do que foi Rimbaud: a certeza, o sucesso, o amor ao dinheiro etc.”
De volta ao Salão de Chá. Os assuntos passavam apressados à medida que se aproximava o início da sessão. Convidado a tirar uma foto ao lado de Niskier, Lêdo se uniu a Sandroni e Murilo Melo Filho, comparando: “Nem os Diários Associados fizeram mais imortais que a Manchete!” “Falta o Cony…”, lamentou Sandroni. O alagoano sugeriu: “Ponha como legenda: a herança literária de Adolpho Bloch.” Os acadêmicos se levantaram a um só tempo, a caminho da reunião fechada, e na dispersão Costa e Silva ainda se despediu: “Volte sempre, mas não muito, senão eles te pegam!” Em silêncio, Lêdo Ivo me conduziu até a porta do elevador: “Você quer que eu peça a alguém para lhe mostrar o resto da Academia?” Mas, numa brecada, acendeu soberbamente os olhos. “Aliás, não precisa, não é? Você já viu o melhor.”
[1] O livro foi editado pelo Instituto Moreira Salles, presidido pelo criador de piauí, João Moreira Salles.
Claudio Leal é jornalista e mestre em teoria, história e crítica do cinema pela ECA-USP
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