Kalil, com a neta Catarina, em seu apartamento: “Vinham falar comigo de Cingapura. Que Cingapura era adensada. Então me financia o metrô de Cingapura? A estupidez dos ricos...” CREDITO: ANA LAENDER_2020
Chega de pá, pá, pá
Como Alexandre Kalil, o prefeito de Belo Horizonte, está comendo pelas beiradas
Karla Monteiro | Edição 177, Junho 2021
“Será que só eu sou o cagalhão? O bobalhão? Esse povo não tem medo de enfiar um tubo goela abaixo?” O prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), estava indignado com a resistência contra as medidas para conter a disseminação do coronavírus. Havia mais de um mês, não via nenhuma das quatro netas – Bianca, Catarina, Helena e Eduarda –, trancado no amplo apartamento da Praça Marília de Dirceu, no bairro de Lourdes, o Leblon da capital mineira. Sentado diante do computador, falava com a piauí por videoconferência. Às suas costas, muitos retratos de família e, emoldurada, a camisa 10 de Ronaldinho Gaúcho, na sua encarnação como craque do Atlético Mineiro.
Pela quarta vez, desde o início da pandemia, Kalil mandara fechar tudo na cidade em resposta ao aumento dos casos. Com isso, vinha conseguindo manter Belo Horizonte com o menor número de mortos pela Covid-19 entre as capitais com mais de 1 milhão de habitantes. Mas as pressões partiam de todos os lados. Dos gritos de “Fora, Kalil”, emitidos pelos manifestantes que diariamente se concentravam debaixo da janela do seu apartamento no 9º andar, às quedas de braço com o governador Romeu Zema, do Partido Novo, e a chamada bancada “bolsonovista” da Câmara Municipal. “Fora, Kalil?”, perguntou o prefeito. “Fui reeleito em primeiro turno, com 63,36% dos votos, sentado aqui, nesta cadeira. Fora, o cacete.”
Era comecinho de abril, o mês que se revelaria o mais mortal da pandemia no Brasil. Por aqueles dias, com duas postagens no Twitter, um total de 54 palavras, Kalil comprou uma briga nacional que alçou sua popularidade digital ao terceiro lugar, atrás apenas do presidente Jair Bolsonaro e do ex-presidente Lula. Superava, de longe, figuras como Ciro Gomes, Luciano Huck, Sergio Moro e João Doria. O primeiro post foi divulgado às 18h48 do dia 3 de abril, um sábado. Era uma resposta à decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Kassio Nunes Marques, que autorizara a realização de cultos e missas presenciais. “Em Belo Horizonte, acompanhamos o plenário do Supremo”, referindo-se à decisão que o STF adotara meses antes autorizando prefeitos e governadores a determinar o que funciona e o que não funciona. “O que vale é o decreto do prefeito. Estão proibidos os cultos e missas presenciais.”
O segundo post apareceu no dia seguinte, às 15h30. Então já havia uma liminar de Kassio Nunes intimando-o a cumprir sua decisão. Segundo os amigos que estiveram ao seu lado nas horas tensas, o que o fez recuar e mudar de rumo não foi o medo da cadeia, mas o argumento de que peitar a Justiça era “coisa de bolsonarista”. “Por mais que doa no coração de quem defende a vida, ordem judicial se cumpre”, cedeu, confessadamente amargurado. “Já entramos com recurso e aguardamos a manifestação do presidente do Supremo Tribunal Federal.”
Desde os primórdios da pandemia, muito se tem ouvido falar de Alexandre Kalil – à direita e à esquerda. O correspondente do jornal The Guardian, Tom Phillips, admirou-se com o prefeito que tem mais de 1 milhão de seguidores no Twitter e não segue absolutamente ninguém. O apresentador José Luiz Datena, do Brasil Urgente, da Band, declarou, ao vivo, que votaria nele para presidente da República em 2022: “Cabra macho”, justificou. Seu nome andou aparecendo até em programa humorístico. No Pânico, da rádio Jovem Pan, o entertainer André Marinho, filho do empresário Paulo Marinho, que se elegeu suplente do senador Flávio Bolsonaro e depois rompeu ruidosamente com a família, fez coro: “O Macri, na Argentina, era prefeito de Buenos Aires e chegou à Presidência”, lembrou, destacando o perfil de “gerentão” do mineiro. Com sua figura chamando a atenção, Kalil já foi citado como possível candidato a vice-presidente na chapa de Ciro Gomes e, até, na chapa de Lula.
“Olha, eu vou te falar de todo coração: está cedo. O Antigamente Futebol Clube não aprende. Isso incomoda a população”, rebate Kalil, ao comentar sobre candidatos em 2022. O assunto não poderia vir em pior hora. “Estamos com gente morrendo. Não posso me encontrar com os meus filhos. Falar de política agora me toca, porra.” Em novembro do ano passado, no programa Roda Viva, da TV Cultura, ao ser indagado se toparia disputar a Presidência da República, deu uma resposta mais conciliadora, à moda do Getúlio Vargas de 1950 que, diante dos apelos para que voltasse ao poder, disse: “Levai-me convosco.” Kalil, com português menos castiço, respondeu que, caso fossem buscá-lo em Belo Horizonte, não negaria fogo.
Na terra dos Andrada, aquela dinastia política que, segundo o lendário repórter Joel Silveira, deu a Antônio Carlos, o sobrinho-neto de José Bonifácio, a habilidade de tirar as meias sem descalçar os sapatos, são poucos os que arriscam adivinhar o futuro político de Kalil. Em 2016, ele foi eleito pelo nanico PHS. Com a extinção da legenda, migrou para o PSD de Gilberto Kassab, por considerá-lo um “partido leve”, “alheio à polarização”. “Nós teremos candidato próprio e temos seis nomes. Na hora certa faremos uma avaliação”, afirmou Kassab, ressaltando, porém, que o nome de “Alexandre vem sendo lembrado no Brasil inteiro”. Um dos seis nomes do plantel do PSD é o do ex-tucano Antonio Anastasia, outro torcedor do Atlético Mineiro que, quando governou Minas Gerais, batizou um viaduto com o nome de “Elias Kalil”, pai do prefeito. Anastasia acredita que o destino de Kalil é o governo estadual.
“Ele tem uma característica fundamental na política, a forma muito própria de se comunicar. Diferente do Lula e do Bolsonaro, mas popular, verdadeira, direta, que vem do futebol”, comentou Anastasia. “O Alexandre não é um outsider na sociedade mineira. O pai dele foi um grande empresário da construção civil, tem parentes em posições importantes na cidade. Uma família das forças vivas, como se dizia antigamente. Agora, o estilo dele é diferente. Todas as velhas raposas, com exceção do Hélio Garcia, sempre tiveram um estilo parecido: conciliação, convergência, serenidade, conversa. O velho PSD. Eu me encaixo nessa tradição. Já o Alexandre é um político afirmativo, assertivo, direto.”
De fato, Kalil é claro em suas opiniões políticas. Sobre Bolsonaro, diz: “Ele foi para mim uma grande decepção. Não acreditava que cabia no mundo de hoje um radicalismo tão grande.” Sobre Lula: “Quando ele foi eleito, eu esperava radicalismo. E não veio. Lula fez um governo de centro. Até por isso, acreditei que o Bolsonaro também não seria radical. Hoje acho que o Lula está sofrido, está cansado. Ele é um homem encantador, muito carismático. Eu o conheci num jantar em casa de amigos comuns.” Sobre Ciro Gomes: “Eu fiz campanha e votei no Ciro porque acredito que ele seja um homem muito preparado. Costumo brincar que o Ciro com Lexotan seria uma maravilha.”
Kalil tem aparecido nas conversas da direita de Kassab e da esquerda de Lula porque fez “a trajetória do Buda”, como se diz na política mineira, tanto para bater como para assoprar. Ou seja: de homem rico, que se candidatou com o discurso do “chega de política”, mais identificado com a direita, acabou virando um defensor das causas populares, depois de entrar em contato direto com a miséria das periferias da capital mineira, tornando-se crítico mordaz do comportamento dos endinheirados. “Eu era um ignorante igual a toda a elite. A campanha me transformou. Vi que tinha lugar em BH igual ao Sudão. Vi criança misturada com porco. Mudei definitivamente. Achava que doar 100 reais para os Médicos Sem Fronteiras era o que eu tinha que fazer”, diz.
A tumultuada primeira semana de abril terminou com uma vitória de Kalil. No dia 8, por 9 votos a 2, o STF reafirmou a autonomia de prefeitos e governadores para gerir a pandemia, inclusive proibindo cultos e missas. Segundo o prefeito, o que mais o amolou foi “a cara de pau”. Primeiro, jogam-lhe nas costas a responsabilidade de conter a pandemia e, depois, transcorrido um ano de trabalho árduo, tiram-lhe a autonomia.
O trunfo de Kalil serviu para engordar a mitologia que o cerca desde os tempos em que presidiu o Atlético Mineiro, entre 2009 e 2014. Já naquela época, instalou-se a crença de que seus posts no Twitter equivaliam a uma nota promissória firmada em cartório, um juramento aos pés de Santa Rita, sua santa de devoção. Quando queria pedir algo ao presidente do clube, fosse a cabeça do técnico ou a contratação de um jogador, a Galoucura, a torcida organizada do Galo, alcunha do Atlético, levantava a hashtag: #tuítakalil. Se ele tuitasse de volta, atendendo ou negando o pedido, a resposta era a derradeira. Foi como dirigente do Atlético, aliás, que o prefeito construiu a reputação de homem de palavra.
Ao se transferir da sede do Galo, na Rua Bernardo Guimarães, para o histórico prédio da prefeitura municipal, na Avenida Afonso Pena, o mito do tuíte definitivo o acompanhou. Se Kalilzão posta, BH confia – e comenta. “Agora o Brasil comenta”, festejou seu assessor político, Vitor Colares, o jovem de 30 anos, que, ao lado de Alberto Lage, de 27, comanda o marketing do prefeito. “Ele não posta se não for para ser manchete no dia seguinte.” O outro mito também nasceu no futebol: o de que, na hora do aperto, a solução é bater na porta de Kalil. Em 2008, ano do centenário do clube, o Galo foi à lona e a torcida inaugurou o queremismo de arquibancada: foi buscá-lo em casa para presidir o Atlético. “O cara tem estrela”, diz Colares. “A candidatura a presidente vai cair no colo dele.”
Em fins de 2013, ainda saboreando a consagração pela conquista inédita da Copa Libertadores da América, Kalil recebeu, na sede do Atlético Mineiro, o jornalista Fred Melo Paiva, a quem chama de “o atleticano mais chato do mundo”. Dono de uma prestigiada coluna no Estado de Minas, Melo Paiva queria lhe pedir um empréstimo. Precisava de dinheiro para publicar o livro O Atleticano Vai ao Paraíso, uma seleção de suas colunas que apareceram no jornal entre julho de 2011 e agosto de 2013, quando o Galo finalmente encerrou o jejum de 42 anos sem um título importante. O subtítulo do livro fazia referência ao renascimento do time: Do Quase Rebaixamento à Conquista do Título Impossível. De certa forma, era uma biografia de Kalil e sua gestão vitoriosa.
No Estado de Minas, Melo Paiva ressuscitara o cronista de futebol exagerado, inventado nos tempos dos irmãos Rodrigues, Nelson e Mario Filho. O título de um dos primeiros textos do livrão, ilustrado com sensacionais imagens do fotógrafo Gabriel Castro, era Sofrer, Sofrer, Sofrer. Folheando os originais, Kalil estacionou na crônica O Atlético Ainda Vai Acabar com o Atleticano, publicada em 10 de dezembro de 2011. “Nem mesmo um telegrama de pêsames me parece tão penoso de redigir como esta coluna, depois dos 6 a 1 de domingo passado”, escrevera um indignado Melo Paiva. “Se houvesse algo do gênero, me inscreveria num aa, os Atleticanos Anônimos, para ver se conseguia me livrar do fardo de torcer para essa desgraça.”
Era, então, véspera de eleição no clube e Kalil concorria à reeleição: “Verdade que de 6 é algo inédito, mas tudo pode se esperar desses mercenários que vestiram a camisa do time, da cultura derrotista que se instalou, e de seu dirigente boquirroto que deveria honrar o nome do pai no lugar de prometer bicho de 1 milhão de reais para não ser rebaixado.” Melo Paiva fazia, então, uma referência ao velho Elias Kalil, que presidiu o clube de 1980 a 1985. Honra Teu Pai, por sinal, era o título da crônica seguinte, que fora publicada em 17 de dezembro. Nessa ocasião, Kalil já estava reeleito para mais três anos de mandato. “Enquanto ele lia, eu só pensava: vai me mandar cortar a crônica”, riu-se o jornalista, que acabou surpreendido por um insuspeito erudito: “Ele olhou para mim e falou: ‘Gosto muito deste livro do Gay Talese, Honra Teu Pai. Já li quase todos os livros dele.”
Até o consagrador ano de 2013, Elias Kalil seguia considerado o maior dirigente da história do Atlético Mineiro. Uma lenda do futebol, apontado como gênio visionário até pelos flamenguistas. À frente do clube, montara o time de todos os tempos: João Leite, Orlando, Osmar Guarnelli, Luizinho, Jorge Valença, Chicão, Toninho Cerezo, Palhinha, Pedrinho Gaúcho, Reinaldo e Éder – três deles convocados para a Seleção de 1982. Segundo consta nos anais do Galo, nunca houve um time tão roubado na história do futebol mundial. Colecionara, além de cinco campeonatos mineiros, gloriosas derrotas. Boa parte delas para o Flamengo de Zico. Muitas são as explicações para os supostos dribles dos juízes. A mais difundida entre os torcedores que até hoje veneram o doutor Kalil é o gesto do camisa 10. Desafeto da ditadura militar, Reinaldo só comemorava os gols com o punho cerrado, inspirado nos Panteras Negras e na dupla John Carlos e Tommie Smith, os atletas negros que protestaram contra o racismo na Olímpiada de 1968.
Naqueles tempos dolorosamente líricos, o jovem Alexandre, nascido em 1959, tinha 20 e poucos anos: “Não tem nada disso de ditadura”, diz ele hoje. “Nós estamos aqui, atrás da montanha. Enquanto o presidente do Flamengo pegava um táxi para ir à Rua da Alfândega fazer lobby com os poderosos da Confederação Brasileira de Futebol, papai tinha que pegar um avião. Perdeu tudo, tudo roubado.” Na época, ele largara a faculdade de engenharia civil para trabalhar na empresa do pai, o grande ídolo.
Filho de imigrantes sírios, Elias Kalil encarnava o mito do selfmade man. Com o irmão Roberto – eram cinco filhos, ao todo – ele fundara as empresas Fergikal e Erkal Engenharia, empreiteiras de médio porte, que atuavam em obras de infraestrutura. Se não eram milionários, os Kalil encontravam-se bem confortáveis no topo da pirâmide social. “Meu avô, Moisés Kalil, chegou no Brasil com 20 dólares no bolso”, orgulha-se o prefeito. Ao aterrissar em Belo Horizonte, no início do século XX, os avós foram morar no Santa Efigênia, bairro operário da capital mineira. Entre os vizinhos estavam os Fileto, uma família de negros, a única da redondeza que recebeu bem os novos imigrantes. Por sinal, foi o Seu Fileto que levou o garoto Elias pela primeira vez no campo, para assistir a um Atlético x Cruzeiro.
Nascido já nos tempos da bonança, Kalil passou sua juventude como um playboy. Jura de pés juntos que não, mas há muitas testemunhas na cidade de suas noitadas com o galã do Galo, o ponta-esquerda Éder: “Eu me dava com todos da família Kalil. Ia muito no apartamento na Marília de Dirceu jogar buraco com a dona Leila”, lembra o ex-jogador, referindo-se à mãe do prefeito. “O Alexandre puxou o pai, ponta firme.”
Honra Teu Pai: o título da crônica de Melo Paiva – e do livro do jornalista Gay Talese – deve ter calado fundo na alma do herdeiro desta saga. Talvez a história de como foi sentar na mesma cadeira ocupada pelo pai explique um pouco os anseios de triunfo do atual prefeito. Em 1999, seis anos depois da morte de Elias Kalil, ele assumiu seu primeiro cargo no Atlético ligado ao futebol – antes disso, atuara apenas na área do vôlei. Àquela altura, o time iniciava a derrocada, que culminaria no rebaixamento inédito para a segunda divisão, em 2005. Em meio a todas as dificuldades, havia conseguido um feito: chegar a uma final de Campeonato Brasileiro, no ano de 1999. Contudo, a torcida não quis saber. Na saída de um jogo no Estádio Mineirão, acabou fisicamente agredido, com o filho pequeno a tiracolo.
Desgostoso com o futebol – e brigado com o então presidente do clube, o banqueiro Ricardo Guimarães, dono do BMG – Kalil resolveu se mandar para Mato Grosso do Sul, para tocar uma obra. Passados os anos, em fins de 2008, já de volta a Belo Horizonte, uma comissão da Galoucura, a torcida organizada do Galo, tocou sua campainha. “Os caras vão na casa dele e falam: aconteça o que acontecer, nós vamos te poupar. Ele aceita e é eleito presidente do Atlético, em 2009”, relatou Melo Paiva: “Em 2011, quando o time quase vai de novo para o rebaixamento, depois de perder de 6 a 1, muita gente, como eu, pediu a cabeça dele. Mas a torcida cumpriu a promessa. Foi poupado, e se reelegeu presidente do clube.”
No primeiro mandato como presidente do Atlético, “o segundo posto mais importante de Minas Gerais, atrás apenas do govenador”, conforme a crença atleticana, Kalil enfrentara o diabo. Pegou o Galo falido: 19 mil reais em caixa, cerca de 4 milhões em cheques sem fundo voando na praça, três meses de salários atrasados, 188 títulos protestados e mais de trezentas ações trabalhistas. “Uma pindaíba louca”, resumiu ele. Para ajudá-lo a arrumar a casa, chamou dois atleticanos devotos: Adriana Branco Cerqueira, hoje seu braço direito na prefeitura, onde ocupa o cargo de secretária de Assuntos Institucionais e Comunicação Social, e Rodolfo Gropen, um renomado advogado tributarista. Na verdade, Gropen se ofereceu: “O Atlético perdendo, perdendo, perdendo, fui lá, ver no que eu podia ajudar.”
Nos anos em que Kalil esteve à frente do Galo, de 2009 a 2014, Gropen colecionou casos. Numa ocasião, acompanhou o presidente numa importante reunião com o diretor-executivo de uma grande empresa de São Paulo, que prestava serviços para times nacionais e internacionais. Enquanto o paulistano falava, com o sotaque carregado da capital paulista, Kalil só ouvia, de cabeça baixa. Quando o empresário apresentou a cifra da dívida do Atlético, Kalil disse, calmamente: “Não vou pagar. E você vai esquecer essa dívida e vai baixar a porcentagem de participação nos nossos lucros de 10% para 5%. Em contrapartida, daqui em diante, te pago em dia.” Como? O homem achou graça, rindo da proposta de levar um calote e ainda reduzir sua margem de lucro. Ouviu, então, um argumento razoável. Para conseguir contrato nos tantos times para os quais prestava serviço, a empresa tinha que distribuir propinas, de acordo com Kalil. No Atlético, não seria assim. Assustado com a franqueza, o empresário balbuciou: “No Coritiba também não.”
No Atlético, Kalil nunca baixava a guarda. “Quando chegava uma conta de farmácia, ele ligava para a Drogaria Araújo e conferia o preço de tudo”, diverte-se Gropen. Certa vez, cismou de comprar o passe de Diego Tardelli, então atacante no Flamengo. Ficara com um crédito no clube carioca na transação do goleiro Bruno. No primeiro dia de treino do novo camisa 9, Kalil recebeu um telefone de Cuca, o treinador: “Kalil, o Tardelli não treina sem Coban.” Coban é a marca da atadura elástica usada pelos jogadores para evitar lesões. Com o time na bancarrota, só se usava Coban em jogo. Treino, não. Ao tomar ciência de que estava faltando dinheiro até para o básico – tinha acabado de assumir o cargo –, o presidente resolveu a questão demitindo o Departamento de Marketing. Sob uma chuva de críticas, defendeu-se: “Marketing no futebol é bola dentro da casa. Se a bola entrar naquela casinha, você vende até Modess pra homem.”
De briga em briga, Kalil ia fazendo a fama. Numa batalha ruidosa, recusou-se a assinar contrato para jogar no Mineirão, então em começo de reforma para a Copa do Mundo de 2014. Em fevereiro de 2012, firmou contrato de dez anos com o modesto Arena Independência, no bairro do Horto. “O contrato deles era leonino. Queriam me obrigar a jogar no Mineirão sem ganhar quase nada. Fui para o Independência porque lá o Galo era sócio até do lucro da pipoca”, explica ele. A grande tacada viria no mesmo 2012, em junho. Numa noite fria, sem aviso prévio, ligou para Gropen: “Arruma a mala que nós vamos para Porto Alegre.” De manhã cedinho, já voavam num aviãozinho que, segundo o advogado, “só faltava bater asas”. O objetivo era voltar da capital gaúcha trazendo, sem alarde, o craque Ronaldinho Gaúcho. Àquela altura ninguém queria saber do jogador, que acabara de protagonizar uma turbulenta saída do Flamengo, depois de seguidas polêmicas com a diretoria e com a comissão técnica. Numa das arruaças, dormira acompanhado na concentração, num hotel em Londrina, antes de uma partida válida pela pré-Libertadores.
O salário de Ronaldinho Gaúcho rondava a casa do milhão. Dizia-se que no Flamengo ganhava 1,3 milhão de reais por mês. Sentados à frente do craque e de seu irmão, o empresário Roberto Assis Moreira, Gropen ouviu Kalil oferecer 300 mil reais. Conforme sua boa memória, ele recorda até as palavras e diz que Kalil começou a conversa chamando Ronaldinho de “meu filho”: “Você é retardado mental, meu filho? Você não leva mulher para a concentração, você bate punheta na internet. O que você está fazendo com a sua vida? Tudo isso que você gosta, todo mundo gosta. Só que tem que saber separar as coisas. Ninguém gosta de você.” A sessão de puxões de orelha durou mais de meia hora. Ao fim, veio a pergunta: “Você quer voltar para a Seleção? Se você quiser você consegue. Se você quiser recomeçar eu aposto em você. Mas se você me foder, eu vou te foder.” No dia 4 de junho, Ronaldinho Gaúcho amanheceu, como anunciaram os jornais do dia, batendo bola na Cidade do Galo, com o uniforme do time. Deu curto-circuito na imprensa esportiva.
“Poucas vezes se viu tamanha unanimidade em torno de um assunto: para 100% dos críticos, o Atlético errou ao contratar Ronaldinho Gaúcho. Para 99% deles, o Kalil joga pedra em avião, belisca azulejo e está a um passo de se achar Napoleão Bonaparte”, escreveu Melo Paiva, na crônica de 9 de junho, no Estado de Minas. Relendo aquilo em fins de 2013, na coletânea de crônicas O Atleticano Vai ao Paraíso, Kalil deve ter achado graça. Nada como o prato frio da vingança. A Melo Paiva, na verdade, Ronaldinho nem parecera tão má ideia na época. “Se o Atlético conseguir uma vaga na Libertadores em 2013 e Ronaldinho for bem, ele voltará a ser santo. O Kalil, o doido, passará a gênio. Eu torço muito para que consigam. E acho plenamente viável que assim seja.” O último texto do livro é a prova de que a Copa Libertadores foi a Batalha de Austerlitz do Napoleão das Alterosas. “Meu Deus, o Galo ganhou!”: “Obrigado, Kalil! Ontem o seu pai estava lá, eu tenho certeza”, finalizava o jornalista, que saiu da sala da diretoria do Galo naquele fim de 2013 com o empréstimo de cerca de 100 mil reais. Lançado em 2014, O Atleticano Vai ao Paraíso quase esgotou a tiragem de 5 mil exemplares.
Na sala do seu apartamento na Marília de Dirceu, imóvel que herdou do pai, Kalil tem uma réplica da Taça da Libertadores de 2013.
Soltando aqui e ali frases engraçadas – é um frasista de primeira –, Kalil fala pausado, professoral, inclinando-se para a frente e olhando no olho do interlocutor quando quer ressaltar algum ponto do discurso. Por trás da cara amarrada, segundo os amigos, esconde-se um sujeito que gosta basicamente de três coisas: futebol, motocicletas Harley-Davidson e boa comida. De poucos e bons parceiros, costuma fazer jantares memoráveis. Suas especialidades: bife bourguignon e bacalhau com batata-doce. Os íntimos ressaltam nele a ligação profunda com os filhos: Felipe, João Luiz e Lucas, do primeiro casamento, com Gláucia Naves. Não poder vê-los é o seu pior castigo durante a pandemia. Há pouco mais de uma década está casado com a arquiteta Ana Laender. Com sua própria moto, ela o acompanhava nas longas viagens de Harley-Davidson. Numa das mais recentes, o casal cruzou a Flórida.
Não se pode negar ao prefeito a originalidade. Nos tempos do Atlético, sempre que enfrentava uma parada dura, por exemplo, ia até a gaveta e sacava uma bandeira do Hezbollah, o grupo de resistência libanês, entoando a brincadeira: “Hezbollah, aqui é Hezbollah.” Trouxe o suvenir de um acampamento de refugiados na Síria, numa de suas viagens à terra dos avós paternos. Não fala árabe, mas gosta de investigar o passado, indo atrás do quebra-cabeça genealógico dos Kalil. Em março, ele completou 62 anos.
Entre 2013 e 2014, encerrando sua presidência no Atlético, Kalil andava meio deprimido, cabisbaixo, sem saber o que faria dali para frente. Já pensando em entrar para a política, filiara-se ao PSB. Passou a encher os dias viajando regulamente de Harley-Davidson entre Belo Horizonte e a serra fluminense, na companhia da mulher. Até que voltaram a bater na sua porta. Primeiro, recebeu um grupo de políticos e empresários, liderados por Daniel Nepomuceno, seu sucessor na presidência do clube. Da turma, só conhecia pessoalmente o próprio Nepomuceno. “Queriam o meu apoio na eleição municipal de 2016, estavam tentando se descolar do PSDB, com chapa independente”, rememorou. Na eleição de 2014, anunciara sua candidatura a deputado federal, mas desistiu cerca de dois meses antes do pleito de outubro por pressão da família, que não simpatizava com a ideia de vê-lo de mudança para Brasília. “Na campanha, ele chegou a ir a comícios. Eu olhava para ele e brincava: ‘Desamarra essa cara, Kalil’”, contou Anastasia, que participou de alguns eventos ao lado do amigo.
Na disputada eleição de 2014, inclusive, Kalil justificara o voto, no Rio de Janeiro. Em Dilma Rousseff (PT), não votaria. Em Aécio Neves (PSDB), muito menos. Na campanha presidencial, por sinal, havia se recusado a gravar um vídeo em apoio ao mineiro. “Nunca foi com a cara do Aécio”, confidenciou um amigo. Quando se aproximava a eleição de 2016 e a briga para a sucessão do prefeito Márcio Lacerda, então no PSB, começou a esquentar, ele recebeu outra visita. “Apareceu um publicitário aqui na minha sala me dizendo que, se eu me candidatasse, estava no segundo turno, conforme as pesquisas. Daí foi nascendo o negócio.”
Na campanha de 2016, Kalil iniciou, então, a cantada “trajetória do Buda”. Segundo afirmou Gropen, o amigo tributarista: “Ele nunca foi ligado na periferia, nunca teve visão humanista. Era ligado no Atlético e nos filhos. A campanha mexeu com ele.” Kalil gosta de contar as histórias de como se aproximou dos mais pobres. Uma delas: “Estávamos subindo a Pedreira Prado Lopes, favela da Lagoinha. Eu, com segurança e tal. Aí, os caras se viram para mim e falam: ‘Não entra naquele bar que é perigoso, é frequentado pelos bandidos da região.’ Pedreira é uma das favelas mais violentas de Belo Horizonte. Eu falei: ‘Perigoso pra vocês.’ Entrei, sentei, tomei dois copos de cerveja, comi uma moela. Num minuto estava todo mundo sentado comigo, conversando, trocando. Na campanha eu me reencontrei com a minha torcida de novo.”
No discurso de então, dizia que não estava ali para prometer, não prometeria nada, mas, chegando lá, ia fazer funcionar tudo aquilo que não funcionava. O resto seria bônus. Em meados de 2016, lembre-se, o Brasil era outro. Aécio Neves perdera a eleição presidencial para Dilma Rousseff em 2014 e seu candidato ao governo do estado, Pimenta da Veiga, também fora derrotado por Fernando Pimentel, do pt, mas Aécio ainda não tinha sido atravessado pela delação da jbs dos irmãos Batista. Para o tucano, a eleição municipal representava a retomada de poder em Minas Gerais.
“Todo mundo ficou esperando o nome do Aécio”, comentou Vitor Colares, que, ao lado de Alberto Lage, capitaneou a vitoriosa campanha de Kalil para prefeito. Aliás, a dupla nunca tinha feito uma grande campanha antes. “Éramos dois jovens doidos que gostavam de política”, disse ele. Quando o tabuleiro das eleições municipais de Belo Horizonte se confirmou, depois de muitas quedas de braço, apareceram onze candidatos. O PSDB saiu numa aliança reunindo outros cinco partidos. O então prefeito Márcio Lacerda apoiou a dobradinha PSD-PSB. O PT juntou-se ao PCdoB. E o PMDB lançou uma chapa puro-sangue. Kalil optou pelo diminuto PHS. “Foi tenso. Nos 45 do segundo tempo, o Kalil conseguiu a coligação com a Rede Sustentabilidade, o partido do Paulo Lamac, ex-PT”, lembrou Colares. “Com isso, tínhamos o número de deputados exigido pela lei eleitoral para ir aos debates. Só contávamos com 23 segundos de tevê. Centramos em vídeos curtos e impactantes para a internet.”
Num daqueles dias intensos, Kalil ligou para Gropen: “Você não vai acreditar na bosta, na merda, no inferno que é aquilo. Amanhã você vai repetir o trajeto comigo”, disse, referindo-se ao vídeo que havia gravado naquela madrugada. Às 5h30 pegara um ônibus: “Uma lata covarde”, nas palavras de Kalil. Visitara os confins da região nordeste de Belo Horizonte. Conforme o roteiro de filmagens da campanha, fez o trajeto diário da própria empregada doméstica. Na primeira condução, bateu papo com todo mundo, ouviu as queixas. Na segunda, elogiou o Move, projeto do prefeito Marcio Lacerda, com frota moderna e estações confortáveis. Na terceira, já não se aguentava de pé: “Ou seja, quando a minha empregada chega para iniciar o dia de trabalho ela já está moída.” O vídeo chamou muita a atenção e tornou-se um marco da campanha.
Com 26,56% dos votos, Kalil conseguiu uma vaga para disputar o segundo turno. Já vinha apanhando bem no primeiro turno, mas agora estava diante da pesada artilharia do tucano João Leite, que chegara à sua frente, com 33,40% dos votos. O adversário colocou no ventilador os processos trabalhistas e as dívidas impagáveis das empresas da família Kalil, das quais o então candidato dizia ter se afastado para dirigir o Atlético, deixando tudo nas mãos de primos, sem, no entanto, tirar o nome da sociedade. À Justiça Eleitoral, declarara ter um patrimônio de 2,8 milhões de reais. As duas empresas da família, Fergikal e Erkal, somavam, juntas, uma dívida de 18 milhões de reais com a Fazenda Nacional, além de 2 mil títulos protestados em cartórios da capital mineira. Os débitos, principalmente os trabalhistas, viraram petardos nos debates e programa eleitorais. No primeiro turno, Kalil também já havia sido cobrado por ter dívidas de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), uma relevante fonte de receita da própria prefeitura que ele pretendia dirigir.
Contudo, a pecha de mau pagador não colou. Em 30 de outubro, estava eleito com 52,98% dos votos: “Eu falo a língua do povo, eu conheço isso, fui criado em torcida de futebol. O povo é bom, generoso, quer muito pouco. A elite não quer abrir mão de nada, é de uma estupidez sem tamanho.” Em 2020, quando disputou a reeleição, aliás, Kalil ainda devia mais de 240 mil reais de iptu, em que pese ter tirado 2,4 milhões de reais do próprio bolso na campanha – uma fortuna para quem declarara, apenas quatro anos antes, ter um patrimônio total de 2,8 milhões de reais. Mais uma vez, escapou ileso e teve uma vitória consagradora. Foi reeleito no primeiro turno com 63,36% dos votos. (Depois da reeleição, sua Harley-Davidson, ano 2014, foi a leilão para pagar dívida trabalhista. O lance inicial era de 30 mil reais.)
Prefeito eleito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil ligou para a assistente social Maíra Colares, que trabalhara na gestão do ex-governador petista Fernando Pimentel. Ele estava montando seu secretariado. Ao atender o telefone, Colares estranhou. Não conhecia Kalil pessoalmente e só votara nele no segundo turno por falta de opção. Seu nome fora indicado ao prefeito eleito por Patrus Ananias, outro petista de alto coturno em Minas Gerais, ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Lula. “Na hora que eu atendi, pensei: Nossa Senhora, o que esse homem quer comigo?”, disse Colares, que também fora gestora do Bolsa Família em Montes Claros, cidade no Norte de Minas. Uma hora depois, estava sentada à frente do novo prefeito. “Ele muito sério, eu séria também.” O convite era para assumir a Secretaria de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania. “Falou que seria uma área prioritária na gestão e queria um nome técnico para o cargo, por isso pedira indicação para o Patrus, que é uma referência nessa área. A conversa foi bem interessante.” Colares aceitou.
Dos 14 nomes escolhidos para compor o secretariado inicial, 12 seguiriam com Kalil para o segundo mandato, inclusive Colares. O secretário de Fazenda, o economista Fuad Norman, agora ocupa o cargo de vice-prefeito. A lista chamou atenção pelo caráter ecumênico. Para a poderosa Secretaria de Obras e Infraestrutura, Kalil chamou Josué Valadão, que, além de ter sido secretário de Márcio Lacerda, fora candidato a vice na chapa adversária, liderada por Délio Malheiros. “A missão era priorizar obras de saneamento e urbanização de vilas e favelas, fazer regularização fundiária”, comentou Valadão, que continua no governo. “Belo Horizonte tem uma grande população vivendo em assentamentos. Ele me disse que era prioridade dar a essas pessoas acesso a serviços básicos, como caminhão de lixo na porta.” Outro nome inusitado foi o do ex-ministro dos governos petistas, Juca Ferreira. “Ligou do nada. E disse que o meu nome tinha sido o mais mencionado para recriar a Secretaria de Cultura”, lembrou Juca. “Só me deu uma diretriz: não queria que os recursos se concentrassem na classe média.”
Indagados sobre como é trabalhar com Kalil, os secretários repetem a mesma coisa: a capacidade de síntese é a alma do negócio. “Jamais mande textão de WhatsApp”, brincou Colares. Segundo ela, o tema de uma reunião deve ser apresentado em, no máximo, “40, 50 segundos. Se quiser saber mais, ele pergunta.” Kalil é curioso sobre assuntos que desconhece. “Acompanha de perto as nossas políticas para LGBTs, pergunta detalhes”, contou a secretária. Em 2019, tornou-se o primeiro prefeito da capital mineira a comparecer na Parada do Orgulho LGBT de BH. Eclético, também foi à Marcha para Jesus, promovida pelos evangélicos. Na sua gestão, está propondo reformar um casarão da Guaicurus, a lendária rua de prostituição, retratada pelo escritor Roberto Drummond em seu romance Hilda Furacão. O imóvel, nos planos do prefeito, vai abrigar o Museu do Sexo das Putas.
A Secretaria de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania virou o cartão de visitas da administração. Entre suas ações, está o incremento do plantio de agroflorestas urbanas, com árvores frutíferas e nativas, hortas, árvores nativas e proteção de florestas. O percentual do orçamento destinado à compra de produtos oriundos de agricultura familiar saltou de 2% para 30%. “O Kalil sempre disse: ‘Não quero criança comendo salsicha na merenda como se fosse carne’”, contou Colares.
Apesar da notória falta de paciência, quem trabalha com Kalil se impressiona com a sua capacidade de comunicação. “Numa ocasião, estava eu engarrafado, dentro de um carro oficial, perto do Mercado Municipal, quando um mendigo bate à janela: ‘Dá um abraço no turco louco.’ Este é o alcance do discurso dele”, comentou Juca Ferreira. Em novembro de 2019, ele deixou a Secretaria de Cultura, estremecido com o prefeito, embora hoje afirme serem águas passadas. À época, ao ser informado que seu auxiliar seria candidato à Prefeitura de Salvador, o intempestivo chefe o demitiu pelo Twitter. Do curto tempo em que esteve no cargo, o baiano Juca Ferreira guarda boas – e más – lembranças.
Quando extremistas de direita iniciaram campanhas de boicote a exposições de arte, em meados de 2017, Ferreira surpreendeu-se com o comportamento de Kalil. Em Belo Horizonte, a vítima fora a mostra Pedro Moraleida, artista mineiro morto em 1999, aos 22 anos, cuja obra os manifestantes acusavam de promover a “pornografia e a pedofilia”. Kalil não só visitou a exposição promovida pelo governo do estado, como a defendeu em entrevista coletiva na porta do Palácio das Artes. Noutra ocasião, teve uma reação diferente. No começo de setembro de 2019, a abertura da mostra da Sétima Bolsa Pampulha, reunindo dez artistas do programa de residência bancado pela Prefeitura de Belo Horizonte, foi subitamente suspensa, com a alegação de que o Museu de Arte da Pampulha teria que ser fechado imediatamente para obras de reparo na rede hidráulica e elétrica. Por trás da desculpa de última hora, porém, encontrava-se a forte pressão da Igreja Católica sobre a obra com motivos religiosos de uma artista trans. A classe artística gritou, acusando Kalil de censura. Quando a polêmica serenou, duas semanas depois, o Museu da Pampulha, enfim, abriu a exposição. A obra estava lá.
No primeiro mandato, o grande teste de força política do prefeito aconteceu em meados de 2019, quando conseguiu aprovar, por 35 votos contra 5, o novo Plano Diretor de Belo Horizonte. O projeto tramitava na Câmara de Vereadores desde 2015, antes da gestão de Kalil, e colocava prefeitura e empresariado em campos opostos. Entre os pontos de atrito, estava a chamada “outorga onerosa”, nome que se dá à autorização concedida pela prefeitura para que uma construção ocupe no terreno uma área superior ao limite original. Para construir além desse limite, o postulante, nos termos da proposta de Kalil, teria que pagar uma compensação à prefeitura – e os recursos seriam revertidos em moradias populares.
A briga foi feia. Nas fileiras de oposição ao projeto, estava a “elite que não quer abrir mão de nada”. Entre eles, encontravam-se dois atleticanos históricos. Um deles era Ricardo Guimarães, do Banco BMG, com quem Kalil se desentendera anos antes quando o banqueiro resolveu aproximar-se da CBF de Ricardo Teixeira – Kalil era contra. Com Guimarães, inclusive, a guerra urbanística saltara para as manchetes esportivas, quando o filho do prefeito, Felipe Kalil, médico do Atlético havia quatro anos, pediu demissão, soprando a farofa no ventilador. Disse que estava saindo por pressão de Guimarães. O outro torcedor histórico era Rubens Menin, dono da MRV Engenharia, do Banco Inter e da emissora CNN Brasil.
“Na nossa percepção, o novo Plano Diretor não era a melhor solução para a cidade, apenas isso”, comentou Flávio Roscoe Nogueira, o presidente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg). De acordo com ele, o plano dificulta investimentos em infraestrutura: “A tendência moderna é o adensamento, para facilitar investimentos em obras como metrô, por exemplo. Além disso, fere a propriedade privada e a segurança jurídica. Mas, claro, mantemos o diálogo e esperamos algumas correções de rumo.”
Kalil reconhece o estrago. “Fiz muitos inimigos, me massacraram. Vinham falar comigo de Cingapura. Que Cingapura era adensada. Então me financia o metrô de Cingapura? A estupidez dos ricos…” Ele lembra as chuvas históricas do começo de 2020, o maior volume registrado em 110 anos, que arrasaram Belo Horizonte: “Foi um recado de Deus. A Zona Sul, onde todos eles moram, ficou destruída.” Aliás, aquele trágico momento foi o seu teste como gestor. Assim que a prefeitura recebeu o alerta do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), Kalil transferiu o gabinete do prefeito para o Centro Integrado de Operações da prefeitura, de onde teria, pelas câmeras de monitoramento, uma visão geral da cidade. Quando chegaram as tempestades, uma semana inteira de seguidos temporais, a prefeitura já tinha espalhado maquinário pesado em todos os pontos de alto risco. Com isso, conseguiu limpar as ruas em tempo recorde. Ele foi onipresente, prestando assistência pessoal nos locais mais afetados, solidarizando-se com as vítimas. Quando Jair Bolsonaro desembarcou no aeroporto de Confins, no dia 30 de janeiro, Kalil encontrava-se na pista, ao lado do governador Romeu Zema. Mas, convidado a sobrevoar a capital de Minas com o presidente, disse que já conhecia os problemas de perto. “Quem quer mesmo saber o que está acontecendo, enfia o pé na lama”, diz.
Em novembro do ano passado, Kalil reelegeu-se já no primeiro turno, mas sabe que não fez milagre. Entre as frustrações, está a falta de recursos para construir um monotrilho ligando o Aeroporto de Confins ao Centro da cidade. Na sua opinião, o transporte público é um problema que o Brasil inteiro precisa resolver. Os críticos do seu governo costumam dizer que o seu pior defeito é a falta de diálogo. Na gestão da pandemia, acusam-no de ter atropelado comerciantes, feirantes e promotores de eventos, sem nunca escutar as vozes contrárias ao fechamento total da cidade. Descontando a parcela que lhe faz oposição, Kalil está certo de que tem a confiança da população. Aliás, acredita que, no fim das contas, a confiança o reelegeu: “A população sabe que trabalho de boa-fé. Sabe que estou tentando o melhor. Sem buscar holofotes. Nunca inaugurei uma obra. Para mim, a nova política não é holofote. É melhorar a vida das pessoas. Se você melhorar a vida delas, elas reconhecem. Pobre é pobre, pobre não é burro.”
Kalil não para de comprar brigas. Com Romeu Zema, segundo se comenta nos bastidores da prefeitura, a relação começou a azedar em março do ano passado, quando o país assistia à chegada da Covid-19. Na véspera da publicação do decreto municipal fechando o comércio de Belo Horizonte, o prefeito telefonou seguidamente para o governador, com quem combinara uma ação simultânea e conjunta na capital e no estado. Ignorado, só foi saber à noite que Zema tinha voltado atrás. “Ficou puto, nunca vi o Kalil tão puto”, sussurrou Vitor Colares, o jovem do marketing. Segundo o secretário de Saúde, o médico Jackson Machado Pinto, a preparação fora minuciosa. “Nossa primeira reunião de alinhamento aconteceu, na verdade, em janeiro, quando já sabíamos que a pandemia encontrava-se a caminho. Daí em diante, treinamos equipes para realizar testagem, transportar pacientes, iniciamos a abertura de leitos”, lembrou. “Depois montamos um comitê de enfrentamento, com três médicos renomados: Estevão Urbano, presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, Carlos Starling, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia, e Unaí Tupinambás, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.”
Kalil não se cansa de repetir que em Belo Horizonte não tem “achismo”: “O Boris Johnson bancou o negacionista, mas aí o bicho pegou para o lado dele e ele deu uma guinada. Foi para o lado certo. O Bolsonaro tinha que chegar agora e dizer: ‘Gente, eu errei.’” Na Câmara de Vereadores, as rusgas e farpas estão rendendo forte oposição ao prefeito. “Oposição à direita”, diz Cida Falabella, uma das criadoras, ao lado da vereadora Áurea Carolina, da Gabinetona, uma experiência de mandato compartilhado. Em 2016, ambas foram eleitas pelo Psol, numa campanha coletiva, denominada “Muitas”. De acordo com Falabella, o segundo mandato do prefeito está sendo sabotado pelo “bolsonovismo”, que vem lhe impingindo fragorosas derrotas. Entre elas, barrou um projeto caro a Kalil, que garantia investimentos, via empréstimo do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), para as comunidades do Izidora, o maior assentamento urbano da capital mineira.
A oposição é orientada pela bancada do Partido Novo, em parceria com o Bloco Somos BH, ligado ao deputado federal Marcelo Aro (PP), que aliás foi um aliado do prefeito em 2016. Diz Falabella: “Eles agem de forma articulada, ora dialogando com o bolsonarismo explícito, ora com o discurso liberal, ora com a direita tradicional, misturando estado mínimo, negacionismo e conservadorismo para cercar o governo Kalil.”
Kalil, no entanto, não gosta dos estigmas ideológicos. “Eu já cansei de falar isto: temos que parar de dizer que quem ajuda pobre é a esquerda e que a direita é liberal. Eu sou o rei do PPP”, diz ele, em referência às parcerias do poder público com a iniciativa privada em certos setores. “Tudo que o poder público põe a mão é uma merda. Exemplo: o custo do aluno da rede pública hoje é quase igual ao da rede particular. Como a escola pública pode ser o preço do Loyola?”, pergunta, citando um dos colégios mais tradicionais da capital mineira, e responde em seguida: “Porque ele é gerido melhor. Do mesmo jeito que acho que PPP é um grande caminho, eu acho que o setor público não pode abandonar o pobre.”
Recluso no apartamento da Marília de Dirceu por força da pandemia, o prefeito às vezes dá sinais de cansaço com o que chama de velha política: “O Partido Novo votou contra o Izidora. Sabe quantas vezes aqueles vereadores botaram o pé lá? Por politicagem, eles votaram contra um investimento de 900 milhões de reais num projeto para favorecer quem vive na extrema pobreza. Negaram por negar. Falta de coração. Vamos fazer todo mundo junto? Isso é o que se espera dos políticos. Chega deste pá, pá, pá, pá, pá. Meu saco já encheu.”
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