Da igreja para a prisão e i cause célèbre no Ocidente: a face do dissenso por trás do humor FOTO: ALEXANDER ZEMLIANICHENKO_AP_GLOW IMAGES
Cheias de charme…
... e de insolência. Por trás da banda Pussy Riot, o rosto de uma juventude russa irrequieta com o país da era Putin
Dorrit Harazim | Edição 72, Setembro 2012
Da antiga União Soviética elas só conheceram o período de implosão e desmantelamento. Nasceram na virada dos anos 90, numa Rússia já em transição do comunismo para um regime mais assemelhado às democracias ocidentais. Cresceram dentro das fronteiras de uma nova classe média emergente, urbana e de sotaque europeu.
Nadezhda Tolokonnikova, de 22 anos, estuda filosofia e é mãe de uma menina de 4 anos. Maria Alyokhina, de 24, cursa jornalismo e letras e atua em causas ambientais. Tem um filho de 5 anos. A mais velha do grupo, Yekaterina Samutsevich, de 30, além de formada em fotografia, é programadora de computação. Trabalhou durante dois anos no desenvolvimento de um software para o submarino nuclear K-152 Nerpa.
A identidade individual das três integrantes da banda feminista de nome atrevido, Pussy Riot, era tão obscura quanto a de outros coletivos artísticos contestatórios de voz estridente e presença na internet. Permaneceram anônimas por trás de suas simpáticas bataclavas coloridas até se tornarem cause célèbre no Ocidente, muito além das expectativas mais desvairadas da banda. Tudo por um erro de calibragem política de Vladimir Putin, que avaliou mal o quanto a sua Rússia já estava conectada ao resto do mundo e contagiada pela internet. Erro elementar para um ex-coronel da KGB.
O crime-relâmpago das garotas foi cometido no altar da Catedral de Cristo Salvador, em Moscou. Durou menos de quarenta segundos, abortado às pressas pelos seguranças. Mas foi tempo suficiente para entoarem uma insolente prece profana à Virgem Maria, que pedia à Santa Mãe para abraçar a causa feminista e destronar Putin.
O fato ocorreu numa terça-feira, 21 de fevereiro passado. No sábado 3 de março, véspera de reeleição de Putin para presidente-czar da Federação Russa, o clipe editado da transgressão, com 1min53 de duração, foi postado na internet. Tornou-se viral, com mais de 1 milhão de acessos. Na noite do mesmo dia, três das cinco punketes profanas foram presas (as outras duas conseguiram escapulir da Rússia), acusadas de vandalismo e ódio religioso. No julgamento encerrado no mês passado, de reverberação mundial, foram condenadas a dois anos de prisão. Fizeram, assim, mais barulho político do que sucesso musical. Era esse o propósito.
“As pussy rioters mexeram literalmente com fogo em várias áreas”, diz Angelo Segrillo, professor de história contemporânea da USP, autor de Os Russos. “Criticaram o líder [Putin] em um momento em que ele está acuado pela crise econômica e pelo temor de que ocorra uma ‘primavera russa’ do tipo da Primavera Árabe. Mais que isso, mexeram com um tradicionalismo patriarcal que ainda é forte no país, não só entre os homens; boa parte das mulheres russas também não aceitam o feminismo contestador ocidental. E ainda mexeram com os fortes sentimentos religiosos [da população].”
Quando a sentença foi proferida, o ardiloso Putin, que retornara de Londres após ver seu país ficar em 3º lugar nas Olimpíadas, pode ter se surpreendido com a simpatia mundial derramada sobre as jovens. Mas calibrou corretamente a reação doméstica. Segundo dados do Centro Levada, conceituado instituto de pesquisa russo, a grande maioria da população manifestou simpatia escassa por essas jovens com atitude – mesmo entre os que consideraram excessiva a pena criminal. Apenas 5% se declararam abertamente simpáticos a elas.
“A saga da Pussy Riot pode ter sido um desastre para a imagem de Putin no Ocidente, mas fez pouco para diminuir seu apoio doméstico. Mesmo quando o país parece estar embicando para uma direção errada, Putin continua sendo extremamente popular”, avalia o autor e pesquisador de assuntos russos Vadim Nikitin, formado por Harvard e pela London School of Economics. Ele acredita ser provável que a própria oposição ao líder tenha se cindido com o episódio, uma vez que a atual resistência ao Kremlin não contém o componente de cultura liberal comum a outros países. “A vitória da Pussy Riot se deu em outro plano: desnudou a extensão do poder político da Igreja Ortodoxa”, conclui Nikitin.
De fato, se até agora Putin soube dosar o grau de liberdade privada e de consumo concedido sem precisar afrouxar demais o controle sobre as outras liberdades, sempre pôde contar com o colossal peso do Patriarcado ortodoxo, confiável sustentáculo da ordem conservadora.
A leitura dos autos da sentença contra a Pussy Riot parece saída de uma peça de Dario Fo. As acusadas, “vestidas com indumentárias impróprias para uma igreja”, teriam violado “regras concebíveis e inconcebíveis”. Citando exames psiquiátricos e psicológicos das jovens, a juíza Marina Syrova arrolou alguns dos desvios de personalidade que teriam sido constatados: “propensão a protestos”, “autoestima inflada”, “abordagem proativa da vida”, entre outros.
As peças de acusação são ainda mais delirantes. Uma dúzia de seguranças da catedral, um sacristão e um coroinha representavam a parte ofendida. Mikhail Kuznetsov, o advogado de um deles, acusou a Pussy Riot de ser uma conspiração criminosa e qualificou o episódio de “ato capaz de se transformar rapidamente em algo da dimensão do ataque de 11 de Setembro contra as Torres Gêmeas”. Instado a se explicar um pouco melhor, não hesitou: “O atentado russo foi obra de um grupo satânico. O [ataque] americano teve autoria de forças acima do governo dos Estados Unidos. Foi obra de um governo global.”
Para uma parte da classe média da Rússia emergente, que aspira a não mais viver num estado pária e em dissintonia com as democracias ocidentais, o recurso a “anomalias psicológicas” desenterradas do passado bolchevique e sandices como as do advogado incomodam. A fusão de Igreja e Estado em torno da perpetuação de uma “civilização ortodoxa russa”, também. Só que a fatia em desconforto com a velha ordem ainda é pequena.
“Liberdade é quando você esquece o nome do tirano”, escreveu o poeta e ensaísta Joseph Brodsky, expulso da União Soviética quinze anos antes de ganhar o Nobel de Literatura, em 1987. A citação consta de uma carta endereçada ao governo pelas ativistas da Pussy Riot enquanto aguardavam julgamento. Por essa medida, as jovens ainda terão de rezar muito até a nação deixar de ter o nome de Vladimir Putin na ponta da língua.
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