Em 18 de novembro, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei de criação da Comissão Nacional da Verdade numa cerimônia no Planalto. Sentados entre famílias de mortos e desaparecidos, num silêncio ostensivo, os chefes das Forças Armadas foram os únicos a não aplaudir
Conciliação, de novo
Um acordo do alto escalão em Brasília impede que assassinos e torturadores na ditadura sejam julgados
Consuelo Dieguez | Edição 64, Janeiro 2012
No dia 20 de maio de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos reuniu-se para analisar a responsabilidade do Estado brasileiro na morte de guerrilheiros do Araguaia. Seguindo a tradição da Corte, que se reuniu em San José, falaram em defesa do governo o embaixador do Brasil na Costa Rica e os representantes da Advocacia-Geral da União. O terceiro nome brasileiro, ao contrário do esperado, não era da Secretaria Especial de Direitos Humanos ou do Itamaraty. Quem falou foi um advogado do Ministério da Defesa.
As vítimas foram representadas por Criméia de Almeida, sobrevivente da guerrilha, familiares de alguns dos setenta militantes mortos pelo Exército entre 1972 e 1976 e representantes do Centro pela Justiça e o Direito Internacional, organização dedicada à defesa dos direitos humanos. Os parentes dos mortos esperavam que a Corte intimasse o Brasil a esclarecer duas coisas. Primeiro, como os guerrilheiros pereceram e onde os seus corpos foram enterrados, para que pudessem recolher as ossadas e lhes dar uma sepultura digna. Depois, que fossem apontados os responsáveis pelas mortes, para serem julgados.
Durante dois dias de audiência, os oitos juízes ouviram relatos da busca que começou um ano depois da aprovação da Lei de Anistia, quando uma caravana de pais, filhos, mulheres e irmãos dos guerrilheiros foi ao sul do Pará. Ali, entre 1972 e 1976, cerca de oitenta militantes do Partido Comunista do Brasil – a maioria entre 18 e 25 anos – iniciaram uma luta armada para derrubar a ditadura e criar o embrião de um regime comunista.
Ao descobrir a movimentação, o Exército despachou para a região 4 mil homens armados. Menos de dez militantes sobreviveram. Ou por terem sido presos ainda no início da ação, quando interessava aos militares manter os guerrilheiros vivos para interrogatório. Ou porque escaparam ao cerco militar.
Pelos relatos que tiveram de moradores e ex-militares, os setenta desaparecidos foram quase todos presos, torturados e executados. Poucos morreram em confronto. Em 1982, as famílias entraram com uma ação na Justiça pedindo o esclarecimento das mortes, a entrega dos corpos e a punição dos responsáveis. Desde então, todos os governos (João Figueiredo, José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva) entraram com recursos para protelar a ação. Somente em 2007 a Justiça deu ganho de causa às famílias e mandou que a sentença fosse cumprida. Depois disso, nada aconteceu.
A Corte é a última instância a que se pode recorrer em casos de graves violações de direitos humanos em países da Organização dos Estados Americanos, a OEA. Isso só pode ser feito ao se esgotarem todas as medidas legais nos países de origem para que se obtenha justiça. Com a negativa do Estado em esclarecer o caso brasileiro, em 1995 o Centro pela Justiça e Direito Internacional, que tem sede em Washington, acionou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Ministério das Relações Exteriores entrou com oito pedidos de arquivamento. Alegava que a Lei de Anistia perdoara tanto os agentes da repressão quanto os insurgentes. Portanto, não se tratava de uma autoanistia dos militares.
Só em 2009 a comissão criada pela OEA para investigar o assunto decidiu que os parentes dos mortos no Araguaia tinham razão. Fez reiterados pedidos ao governo brasileiro para que prestasse conta dos atos de Estado no Araguaia. O Brasil solicitou mais prazos, que foram concedidos, mas não atendeu a nenhum dos apelos. No ano seguinte, a Comissão Interamericana levou o caso à Corte de Direitos Humanos.
Um mês antes de a Corte se reunir, no entanto, o Supremo Tribunal Federal derrubou, em Brasília, a ação de inconstitucionalidade impetrada pela Ordem dos Advogados. Para a OAB, a Lei de Anistia não beneficiava agentes do Estado torturadores. Noutras palavras, o Supremo decidiu que eles são intocáveis.
Belisário dos Santos Júnior é um advogado paulista que defendeu presos políticos na ditadura. Ele mesmo foi preso três vezes e teve seu escritório invadido por agentes dos órgãos de repressão. Numa tarde de maio de 2010, ele sentou-se em frente aos juízes da Corte da OEA. Como participou da Comissão da Anistia, contou como ela funcionava: “Buscava-se uma anistia ampla, geral e irrestrita para todos os perseguidos políticos. Essas eram as palavras de ordem dos movimentos sociais. Em nenhum momento se pediu anistia para os torturadores. Nem havia por quê, já que o governo militar não aceitava que houvesse tortura, nem desaparecidos políticos.”
No entendimento de Belisário dos Santos, não houve negociação, e sim imposição militar. A lei ficou aquém do que os seus defensores queriam. Mas a aceitaram por ser a única maneira de os presos serem libertados e os exilados voltarem. O advogado disse que, 31 anos depois, na sua sentença, o Supremo manteve a mesma imposição.
Os juízes da Corte entenderam da mesma forma: usar uma mesma lei para beneficiar os dois lados teria sido manobra de militares brasileiros para impedir o eventual julgamento, no futuro, dos seus crimes. Um dos juízes foi irônico. Disse que o Brasil encontrara, na Lei de Anistia, “um jeitinho” para burlar a convenção da OEA que considera imprescritíveis os crimes de grave violação dos direitos humanos: “O jeitinho brasileiro é muito útil. Só que nós temos uma formação mais cartesiana. A Corte não conhece jeitinhos.”
José Gregori, um homem alto, robusto e cujos cabelos brancos começam a rarear, foi secretário nacional dos Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso, em cuja primeira gestão foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Gregori, que foi ministro da Justiça do governo tucano, também prestou depoimento na Corte. Disse que a Lei de Anistia sempre foi um impeditivo para se apurar e mover ações contra agentes do Estado. Tanto que a Comissão Especial sobre os Mortos e Desaparecidos Políticos nunca esclareceu nenhum caso, apesar de ter sido criada com esse fim. Ela reconheceu que os desaparecidos haviam sido executados, embora não se soubesse como, quando e onde. Concedeu atestados de óbitos para as famílias – a causa morte vinha em branco –, pagou uma indenização e encerrou o assunto. Mas Gregori defendeu a decisão do STF e disse aos juízes: “A ditadura tinha fraturado o Brasil e a anistia veio reequilibrar as forças, por meio da reconciliação.”
O jurista José Paulo Sepúlveda Pertence, um ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, ligado ao PT, disse em San José não ter dúvida de que, em 1979, a intenção era mesmo anistiar os agentes estatais. E que, como o governo militar pressionou, acabou-se fazendo um acordo. Segundo ele, não havia saída: ou se aprovava a lei daquela forma, anistiando também os agentes públicos, ou não se teria tido anistia. Para Pertence, o Supremo agora decidiu bem: a lei é irrevogável.
Um relatório da Anistia Internacional, de 2010, constatou que, das quarenta comissões da verdade instaladas em todo o mundo entre 1974 e 2010, a grande maioria rejeitou as leis de anistia concedidas a agentes do Estado. Das comissões analisadas, apenas cinco recomendaram a anistia a funcionários encarregados da repressão.
Na Argentina, por exemplo, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, de 1983, surgiu logo após a derrocada do regime. Mais de mil agentes do Estado foram levados a julgamento, assim como os integrantes da Junta Militar que comandou o país entre 1976 e 1983 – e foi responsável pela morte e desaparecimento de 30 mil pessoas, além do sequestro de bebês de presos políticos. Dois anos depois, o comandante em chefe do Exército, Jorge Rafael Videla, que presidiu a Junta, foi condenado à prisão perpétua. Mas a pena foi anulada, em 1990, por decreto do presidente Carlos Menem. Vinte anos depois, a Corte Suprema confirmou a condenação. No dia 22 de dezembro de 2010, Videla, aos 85 anos, foi condenado à prisão perpétua, junto com outros 29 oficiais, pelo assassinato de 31 presos políticos.
Ou seja: a Justiça sobre fatos passados é sensível a interesses do presente. Mas, quanto mais as ditaduras ficam para trás, maior é a chance de punir aqueles que ocupavam cargos no Estado. É o caso do Uruguai e do Chile.
Em 1985, a Comissão de Investigação sobre a Situação de Pessoas Desaparecidas e suas Causas, no Uruguai, coletou e enviou à Justiça informações sobre 64 agentes públicos suspeitos de crimes contra presos políticos. Pressões dos militares, no entanto, levaram o governo a aprovar no Congresso uma lei que os anistiava. Mas, em 2006, o ex-presidente Juan María Bordaberry foi condenado a trinta anos de prisão por ser responsável por ataques a opositores políticos. Em razão de sua saúde, cumpriu prisão domiciliar até morrer, no ano passado.
No Brasil, as forças políticas dominantes, à esquerda e à direita, sempre agiram no sentido de evitar as punições. Isso ficou claro para os juízes na Costa Rica durante o depoimento das vítimas, que relataram a dificuldade das famílias em obter informações sobre os mortos e desaparecidos. Elizabeth Silveira teve seu irmão, Luiz René, de 21 anos, um estudante de medicina do Rio de Janeiro, morto na guerrilha. Seu corpo nunca apareceu. Ela disse à Corte que todas as informações que as famílias conseguiram até hoje foram obtidas por meio de relatos de sobreviventes e de testemunhas civis que se dispuseram a falar. Nenhuma informação oficial foi disponibilizada. “Passados mais de trinta anos, os militares se recusam a fornecer documentos que ajudem a esclarecer as mortes não só dos guerrilheiros do Araguaia, mas de todos os opositores do regime”, disse.
Ao serem questionados sobre a recusa do Brasil em fornecer informações, os representantes do governo disseram na Corte que o governo enviaria ao Congresso o projeto de criação da Comissão Nacional da Verdade. Os juízes elogiaram a iniciativa. Mas ressaltaram que ela não substituiria a obrigação do Estado de levar a julgamento os agentes que se envolveram com tortura e assassinatos.
Conforme os depoimentos se sucediam, aumentava a desconfiança dos juízes em relação à boa vontade do governo brasileiro. O procurador Marlon Weichert, do Ministério Público Federal, que defende as famílias, foi bombardeado com perguntas. “Como se explica que uma sentença de 2007 ainda não tenha sido cumprida?”, perguntou um juiz. Ou: “De que maneira a Corte pode ajudar o Brasil a fazer uma justiça transicional da ditadura para a democracia?”
Felipe González, professor de direito internacional e membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, também criticou o Brasil. “O direito internacional ressalta que independentemente da Lei de Anistia subsiste a obrigação do Estado de investigar, julgar e sancionar crimes contra a humanidade”, disse. “Assim mesmo, o Estado brasileiro vem invocando a complexidade do assunto para resolvê-lo.”
Na tarde do dia 21 de maio, coube ao advogado do Ministério da Defesa, Bruno Correia Cardoso, dar a última palavra em nome do Estado. Ao se dirigir à Corte, argumentou que deveria levar em consideração “as diferentes realidades das sociedades latino-americanas” e que a Corte não podia determinar sentenças que não poderiam ser cumpridas. Encerrou sua argumentação com palavras sombrias: “É necessário que os termos da sentença sejam exequíveis. Se forem de cumprimento juridicamente impossível, corremos o risco de limitar a sentença aos efeitos simbólicos.”
“Teria sido mais respeitoso que um representante do Itamaraty tivesse falado em nome do Estado”, disse-me Beatriz Affonso, do Centro pela Justiça e Direito Internacional. “O que passou para todos os presentes foi que o Ministério da Defesa estava dando a última palavra. Foi constrangedor ouvir o advogado dizer que o Brasil poderia não cumprir uma convenção da qual é signatário.”
Em novembro de 2010, duas semanas antes de ser dada a sentença, o governo brasileiro fez uma inesperada doação de 400 mil dólares para a Corte, que é sustentada com recursos dos países da OEA. Para Beatriz Affonso, a doação deixou no ar a impressão de ser uma tentativa do governo de ganhar a boa vontade dos juízes.
No dia 14 de dezembro, divulgou-se a sentença. Por unanimidade, a Corte condenou o Estado brasileiro por graves violações aos direitos humanos. E chegou a vinte conclusões. A primeira delas é que as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação de graves violações aos direitos humanos são incompatíveis com a convenção da OEA. Portanto, não poderiam continuar a ser obstáculo para a investigação não só dos desaparecidos no Araguaia como também de todos os outros casos de tortura e mortes. Determinou que o Estado brasileiro conduzisse “eficazmente” uma investigação penal dos fatos e punisse os responsáveis. A Corte decidiu, ainda, que supervisionaria o cumprimento da sentença. E deu o prazo de um ano para que o governo informasse sobre as providências que estariam sendo tomadas.
Embora a OEA não tenha poderes de impor sanções ao Brasil por não cumprir as decisões do tribunal, o desrespeito à decisão pode enfraquecer a posição de Brasília em alguns pleitos internacionais. Entre eles, o de conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
O governo então se mexeu, e acelerou o envio ao Congresso do projeto sobre a Comissão Nacional da Verdade. Durante um almoço num restaurante árabe, em Brasília, o ex-deputado José Genoíno, hoje assessor do Ministério da Defesa, contou como ela foi criada. A proposta fora ventilada pela primeira vez em 2008. E colocara em lados opostos dois ministros do governo Lula: o da Defesa, Nelson Jobim, e o dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi.
De início, Vanucchi ganhou a parada. Da forma como a medida foi apresentada ao presidente Lula, a Comissão surgia com o objetivo não só de apurar as violações dos direitos, mas teria também poderes de julgar os crimes do Estado.
Os comandantes militares reagiram e se reuniram com Nelson Jobim. Disseram-lhe que não aceitavam a medida. Jobim levou a Lula a proposta dos comandantes: apuração sim, mas nada de julgamentos. E deixou claro ao presidente que se demitiria do Ministério da Defesa se a proposta fosse rejeitada. O presidente concordou com Jobim, e Vanucchi, amigo pessoal de Lula, acabou deixando a Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Genoíno trabalhou no projeto junto com Jobim e o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, general José Carlos de Nardi. “Sistematizamos uma série de leis de comissões da verdade para levar aos deputados”, contou. As primeiras reuniões foram com os líderes da oposição: Antônio Carlos Magalhães Neto, do DEM; Duarte Nogueira, do PSDB, e Rubens Bueno, do PPS. O DEM, que tinha mais resistências à criação da comissão porque muitos dos seus integrantes apoiaram o regime militar, aprovou a proposta. As negociações foram mais fáceis com o PSDB porque o projeto contava com a simpatia do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de quem Jobim tinha sido ministro da Justiça.
O projeto estava em negociação na Câmara quando Nelson Jobim foi demitido do Ministério por outro motivo, suas declarações sobre a incapacidade das ministras: Gleisi Hoffmann, da Casa Civil, e Ideli Salvatti, das Relações Institucionais. Mas Jobim reuniu-se com as lideranças políticas e disse que aquele era um projeto do Estado. Embora saísse do governo, sua posição continuava a mesma. Os comandantes militares se comprometeram com o novo ministro da Defesa, Celso Amorim, a continuar defendendo o projeto junto à tropa.
Genoíno procurou o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e a secretária de Direitos Humanos, Maria do Rosário, e reforçou a ideia de que a saída de Jobim não poderia servir de pretexto para se alterar a proposta e enfraquecer a posição do Ministério da Defesa. “O Ministério da Defesa não podia ser o patinho feio, porque o projeto só estava saindo, em grande parte, por causa do seu aval.” O projeto foi aprovado na Câmara sem ressalvas e Genoíno sugeriu o nome do senador Aloysio Nunes Ferreira Filho, do PSDB, para ser relator no Senado, o que foi aceito por todos os partidos.
Ao contrário da maioria dos parlamentares, que passam apenas três dias da semana em Brasília, Aloysio Nunes Ferreira mora na cidade com a mulher e os filhos dela. Ele tem 66 anos e está no seu terceiro casamento. O senador se formou em direito pelas Arcadas e se envolveu com o movimento estudantil. Filiou-se ao PCB, mas logo se juntou à Ação Libertadora Nacional, uma dissidência do Partido Comunista, comandada por Carlos Marighella. Na ALN, Aloysio, então com 23 anos, participou do assalto a um trem pagador para angariar recursos para a organização.
Fugiu do Brasil, no final de 1968, e se exilou na França, onde obteve uma bolsa para estudar economia. Abandonou a luta armada. No final de 1979, recebeu um telefonema eufórico da mãe avisando que a Lei de Anistia fora aprovada. Voltou logo para o Brasil e filiou-se ao Movimento Democrático Brasileiro, partido criado e consentido pela ditadura.
Ele não teve dificuldades de apoiar o projeto. “A Comissão terá o poder de investigar, de solicitar documentos, de convocar pessoas para depor”, disse. “Junto com a lei que acabou com o sigilo de documentos referentes aos direitos humanos, será possível fazer um bom trabalho.”
O senador acha inadmissível que se questione a Lei de Anistia: “Podia-se dizer que, em 1979, o Congresso ainda era manietado. Mas a Constituição de 1988 foi feita em plena democracia e o Congresso manteve a lei como estava. Nós nos beneficiamos da Anistia e não há por que rever a lei agora.”
Mas reconheceu que “ficaram vítimas para trás. Os atropelados de forma suspeita, os mortos sob tortura ou em confrontos simulados, os desaparecidos. Essas verdades terão que ser esclarecidas. É o mínimo que o Estado pode fazer pelas famílias”.
Quando apresentou o projeto, o senador pediu a seus pares que não fizessem modificações: isso significaria ter que mandá-lo novamente para a Câmara, onde poderia ficar engavetado por vários anos. Mas ele mesmo fez uma intervenção no texto. Da forma como viera da Câmara, o dispositivo dava margem a se considerar que, em razão da Lei de Anistia, a Comissão da Verdade não poderia convocar agentes públicos a depor. Um dos artigos dizia que o objetivo da Comissão era “colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos, observadas, porém, as disposições da Lei de Anistia”. O senador retirou a referência à Lei de Anistia. Sem a mudança, a Comissão perderia até o poder de convocar testemunhas.
Durante a tramitação do projeto, organizações de familiares das vítimas procuraram o Executivo. Mas “em nenhum momento o governo convidou as entidades que trabalham na questão da verdade para discutir o projeto”, disse Elizabeth Silveira. “O que eles fazem é chamar isoladamente alguns familiares, que, sozinhos, não têm força.” O receio dela é “termos uma Comissão da Verdade apenas para jogar para a plateia”.
A Comissão da Verdade foi aprovada por unanimidade tanto na Câmara quanto no Senado, por meio de um acordo dos líderes de todos os partidos.
Na manhã de 18 de novembro passado, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei de criação da Comissão Nacional da Verdade numa festiva cerimônia no Palácio do Planalto. Estavam presentes famílias de mortos e desaparecidos – a maioria trajando camisetas com as fotos de seus parentes –, advogados que militam em direitos humanos e alguns políticos. Aloysio Nunes Ferreira alegou não ter sido convidado – fato que foi contestado pelo cerimonial do Planalto.
Na segunda fila das autoridades, ficaram os três comandantes das Forças Armadas – o almirante Julio Soares de Moura Neto, o general Enzo Peri, o brigadeiro Juniti Saito – e o chefe de Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, general De Nardi. A cerimônia, marcada para as 10 horas, começou com mais de meia hora de atraso. A presidente desceu a rampa do auditório mantendo uma conversa acalorada com os ministros José Eduardo Cardozo, Maria do Rosário e Celso Amorim. Subiram no pequeno palanque armado no auditório, acompanhados ainda do presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Marco Antônio Barbosa.
Junto aos familiares, em um canto do auditório, Vera Paiva, uma mulher jovial, de cabelos castanhos, estava nervosa e emocionada. Trazia um papel nas mãos. Era o discurso que faria em nome das famílias. O convite tinha partido, dias antes, da Secretaria Especial de Direitos Humanos.
Vera Paiva é filha do ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado durante a ditadura. Ela fala dele com paixão. Lembra-se do seu entusiasmo, da sua coragem e do carinho para com a mulher e os cinco filhos. Rubens Paiva era um engenheiro civil que pertencera ao Partido Socialista e foi cassado em 1964. Perseguido pelo regime, fugiu do Brasil. Mas antes ajudou a retirar de Brasília, em seu aviãozinho particular, políticos também perseguidos. Voltou em 1965 e, embora não estivesse mais filiado a qualquer partido, continuou resistindo à ditadura, trabalhando no Última Hora, de Samuel Wainer.
No dia 20 de janeiro de 1971, ao chegar em casa, um sobrado alugado na avenida Delfim Moreira, no Leblon, no Rio, voltando da praia com os filhos adolescentes, foi abordado por agentes do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, e levado preso sem qualquer explicação. A família ficou detida em casa. Uma de suas filhas, de 15 anos, jogou uma caixa de fósforos com um bilhete para o vizinho avisando a situação. Foi presa junto com a mãe e levada para o Dops. Foram deixadas dias depois, encapuzadas, num local deserto. Nunca mais viram o pai.
O único relato que ela tem do desaparecimento dele foi dado por um preso político, que disse ter ouvido os gritos do ex-deputado sendo torturado. Vera Paiva foi avisada pelo cerimonial do Planalto de que seu discurso tinha sido cancelado devido ao atraso na agenda. No dia seguinte, os jornais disseram que os comandantes militares não aceitaram que ela falasse. Genoíno desmentiu. Mas, de fato, os ministros militares não aplaudiram nenhum discurso de ministros. Só Dilma teve direito a palmas, bem comedidas. Deixaram claro que não gostavam do assunto da cerimônia.
Dias depois, Vera disse não ter motivos para desconfiar que sua fala tenha sido cassada. E elogiou a forma como a presidente Dilma – ela mesma torturada e presa pela ditadura – tratou os familiares depois da cerimônia. “Ela nos abraçou com muito carinho e eu me senti representada pelo discurso dela”, contou. “É fundamental que a população e, sobretudo, os jovens e as gerações futuras conheçam o nosso passado, principalmente o passado recente, quando muitas pessoas foram presas, torturadas e mortas”, disse Dilma no discurso. “A verdade sobre nosso passado é fundamental para que aqueles fatos que mancharam a nossa história nunca voltem a acontecer.”
A lei que criou a Comissão da Verdade fixou que o período de apuração seria o de 1946 a 1988, para não se restringir ao regime militar. Estabeleceu que será composta por sete membros, escolhidos pela presidente, e terá dois anos de funcionamento. Seu objetivo é o mesmo da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos: “Esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos graves de violações aos direitos humanos; promover o esclarecimento de casos de tortura, morte e desaparecimentos forçados; identificar e tornar públicos as estruturas, os locais e as circunstâncias relacionados à prática de violações dos direitos humanos.”
A secretária Maria do Rosário Nunes, dos Direitos Humanos, acredita que agora os militares poderão finalmente entregar os documentos sigilosos sobre desaparecimentos e assassinatos: “É a primeira vez que temos um instrumento real de convocação, de chamar a responsabilidade quem tenha informações sobre os fatos, sobre as violações, e de acessar toda a documentação.”
O jurista Fábio Konder Comparato, de 75 anos, foi quem entrou com a representação da OAB no Supremo questionando o entendimento dado à Lei de Anistia. Ele mora numa casa no Alto de Pinheiros, em São Paulo. No seu escritório, com vista para um pequeno jardim, foi cético quanto aos resultados da Comissão da Verdade. “A criação da Comissão ficou prejudicada com a decisão não declarada, mas óbvia, de o governo não dar cumprimento à sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, disse, e respirou fundo, como se demonstrasse um profundo cansaço com o andamento das coisas no Brasil. Para ele, a criação da Comissão é, na melhor das hipóteses, um erro histórico; na pior, uma impostura.
“Fala-se em reconciliação nacional, o que é uma falácia”, disse. “Reconciliação houve na África do Sul, onde durante séculos a minoria branca dominou toda a vida social e econômica. Quando houve mudança no poder soberano, foi preciso impedir a guerra civil. No Brasil, o poder soberano continua como dantes no quartel de Abrantes. A imensa maioria da população, é preciso reconhecer, sempre ficou indiferente ao regime militar. Não quis tomar conhecimento dos horrores praticados, e ficou praticamente indiferente à mudança do regime anterior para o atual. Que reconciliação é essa se nunca houve confronto?”
Perguntei-lhe o argumento principal dos militares. Eles acham que, para ser imparcial, a Comissão teria que investigar os dois lados: repressores e reprimidos, militares e guerrilheiros, policiais e terroristas, situação e oposição à ditadura. Comparato esfregou a mão na testa e enumerou as cifras oficiais da Comissão de Mortos e Desaparecidos: “Quais são esses dois lados? Um deles conta com 20 mil presos políticos, alguns torturados até a morte; 354 pessoas sumariamente executadas e cujos cadáveres continuam desaparecidos. Mais de 10 mil pessoas que responderam a inquéritos policiais militares, 707 denunciadas e processadas criminalmente por crimes contra a segurança nacional, 130 banidos, quase 5 mil funcionários públicos demitidos. Isso é um lado.”
E continuou a exposição: “Agora, o outro lado. Apenas um militar foi submetido a um inquérito policial militar, que foi arquivado por falta de provas”, afirmou, alterando a voz. Trata-se do capitão Wilson Dias Machado, que conduzia o carro, acompanhado de um sargento, com uma bomba que lhe explodiu no colo. A bomba seria jogada no Riocentro, onde se realizava um show em defesa das liberdades democráticas. O sargento morreu e o capitão foi promovido a coronel.
Sobre as dificuldades para achar as ossadas dos desaparecidos e mortos, Comparato reagiu: “É óbvio que os militares sabem onde estão os corpos. O major Curió, que participou da guerrilha, já disse tanta coisa. Essa Comissão não passa de uma grande encenação.”
Laura Petit, uma mulher pequena, de gestos contidos e fala mansa, foi a primeira familiar de vítimas a ser chamada pelos juízes para dar seu depoimento na Costa Rica. Contou que, no começo de 1971, seus três irmãos – Lúcio, engenheiro, de 27 anos; Jaime, estudante, de 25; e Maria Lúcia, professora primária, de 19 – deixaram São Paulo para uma missão política “no interior”. Foi a última vez que Laura os viu.
Durante anos, esperou. Quando a anistia foi aprovada, veio a esperança de que eles voltariam. Mas nada. Em 1980, soube que os três tinham ido para o Araguaia. A partir daí, Laura e a mãe juntaram-se a outros familiares nas buscas por notícias. A pergunta que faziam era: será que ainda estão vivos? Quando esteve na região do Araguaia, ouviu de um dos camponeses que seu irmão Jaime teria sido encontrado por uma patrulha do Exército. Estava sozinho, doente, sem alimentos, numa barraca no meio da selva. Foi morto com uma saraivada de tiros. Teve a cabeça decepada e colocada num saco. Seu corpo foi enterrado numa vala.
A ossada de sua irmã Maria Lúcia, morta quando buscava alimento na casa de um camponês, foi encontrada em 1991, e só liberada para sepultamento em 1996. De seu irmão Lúcio, não se sabe nada.
Laura contou para os juízes da Corte que, no dia da votação do pedido de revisão da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal, ela levava na bolsa uma camiseta confeccionada pelos familiares. Eles foram proibidos de usá-la sob a alegação de que constrangeriam os juízes. “Naquele mesmo dia”, disse ela, “a sessão foi interrompida para que os ministros do Supremo fossem jantar com o presidente Lula. No dia seguinte, eles votaram contra a revisão da lei. Nós não podíamos entrar com nossas camisetas, mas eles não se sentiram constrangidos em jantar com o presidente da República na véspera da votação.”
Criméia de Almeida é uma das poucas sobreviventes da guerrilha. Ela deixou o Araguaia pouco antes da chegada das tropas. Estava grávida de André Grabois, filho de Maurício Grabois, líder do PCdoB. Pai e filho morreram no Araguaia e seus corpos não foram encontrados. Criméia, grávida, foi presa e torturada. Seu filho, João Carlos, nasceu na prisão. O tempo todo sofreu ameaças de que a criança seria levada e entregue a um general para ser criada com ódio aos comunistas.
Um dos juízes pediu que ela dissesse alto o que estava escrito nas camisetas que as famílias foram impedidas de usar no julgamento do STF. Ela disse: “A única luta que se perde é a que se abandona.” O juiz pediu que ela repetisse mais alto. Sua fala foi acompanhada por todas as famílias que assistiam ao julgamento.
Na audiência da Corte, ela contou aos juízes o porquê de sua desconfiança de que os agentes da repressão se disponham a falar sobre o passado. Em 2007, disse ela, durante a audiência com a juíza em Brasília, que determinou que o Estado desse uma resposta às famílias, um dos militares que participaram do combate à guerrilha, o coronel Lício Maciel, foi chamado a testemunhar. Ele disse: “Vocês querem ossos? Procurem nos meus bolsos.” Depois, durante uma homenagem prestada ao coronel Lício Maciel pelo Congresso, ele falou: “A dona Criméia deve estar ouvindo isso. E eu quero dizer que eu matei o marido dela, o bandidão do André.”
O general Luiz Eduardo Rocha Paiva é um homem de cabelos grisalhos e porte atlético, que aparenta menos que os seus 62 anos. Na reserva há alguns anos, virou uma espécie de porta-voz dos militares insatisfeitos com as discussões sobre a revisão da Lei de Anistia. Ele me disse que muitos dos seus “companheiros se dedicavam, com grande sacrifício, a combater os grupos armados de esquerda que queriam instaurar no Brasil uma ditadura totalitária nos moldes da União Soviética”. E acrescentou: “Se alguns infringiram a lei, foram anistiados, assim como os terroristas que cometeram sequestros e assassinatos também foram.”
O general Rocha Paiva possui um arquivo recheado de dados para contestar todas as acusações feitas ao regime militar. Disse que a esquerda conta os seus mortos, mas esquece de contar as mortes que provocou do outro lado. Segundo os números do general, cerca de 120 pessoas morreram, entre militares em combate e civis inocentes que foram atingidos por bombas e tiroteios promovidos pelos guerrilheiros. Nenhuma bibliografia civil sustenta esses números.
Sua explicação para a criação da Comissão é o espírito revanchista do governo e de grupos de esquerda. “Para que Comissão da Verdade? Basta buscar nas livrarias, na internet. Há uma vastíssima biografia sobre os anos do regime militar. O que se quer é buscar e punir os agentes do Estado.”
Apesar de a Comissão não ter poderes para punir e de o STF ter reforçado que a Lei de Anistia não permite mais julgamentos, Rocha Paiva não descarta que esses julgamentos possam vir a ocorrer. “O direito é filho do poder”, disse. “A presidenta é uma ex-guerrilheira, o relator no Senado foi um ex-guerrilheiro, a Comissão será instalada na Casa Civil e a presidenta irá escolher os nomes de quem a comporá. Como é possível garantir a parcialidade dessa Comissão? Ela só existiria se houvesse três membros da esquerda e três dos clubes militares.”
Enquanto mostrava reportagens antigas de jornais com notícias sobre assassinatos cometidos pelos “terroristas”, Rocha Paiva perguntou: “O que é pior, um torturador ou um terrorista?” E ele mesmo respondeu: “O terrorista, pois mata inocentes. O torturador causa mal a uma pessoa. Torturador e assassino, seja de que lado for, seriam passíveis de punição, caso não tivesse havido anistia. Agora, sataniza-se o torturador e se endeusa o terrorista. O Ministério da Defesa e as Forças Armadas estão sendo enganados por essa lei.”
No Chile, a ditadura comandada por Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990, torturou mais de 40 mil pessoas, das quais 4 mil tiveram sua morte comprovada. Pinochet foi preso, em outubro de 1998, em Londres, a pedido da Justiça espanhola, que queria julgá-lo por crimes contra os direitos humanos cometidos contra cidadãos espanhóis. Ficou preso 503 dias na Inglaterra, mas conseguiu ser extraditado para o Chile com a ajuda da ex-primeira ministra, Margaret Thatcher. Lá, acabou sendo condenado por desvio de dinheiro público. Morreu de ataque cardíaco, aos 91 anos. Todos os apontados como torturadores e assassinos foram processados.
O Peru criou sua Comissão da Verdade, em 2001, com poderes de processar e enviar para a Corte os documentos comprovando as violações. Um dos processados, julgados e condenados a pedido da Comissão foi o ex-presidente Alberto Fujimori.
Em 2003, foi a vez de o Paraguai criar sua Comissão, que encaminhou à Justiça documentos que permitiram processar vários violadores dos direitos humanos. No Equador, a Comissão da Verdade foi criada em 2007, e seus integrantes também encaminharam à Justiça uma lista de criminosos do regime para serem processados. Em todos os países sul-americanos, a apuração da verdade não substituiu as ações judiciais.
Por que o Brasil tem tanta dificuldade em acertar legalmente suas contas com a repressão ditatorial? O jurista Dalmo Dallari, que presidiu a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, nos anos 70, tem uma explicação. “Se fizermos uma verificação histórica do comportamento de Portugal e Espanha, veremos uma diferença muito assinalada”, disse. “Os espanhóis são muito mais radicais, o português é conciliador. Isso se refletiu na América Latina. A América espanhola é muito mais radical que a portuguesa.”
Dallari está otimista com a Comissão da Verdade. Acha que ela conseguirá apurar novos fatos, mas considerou equivocada a decisão do STF de considerar que a Lei de Anistia vale para torturador: “Crime de tortura e desaparecimento não prescreve. Essa é uma questão que ainda será muito discutida daqui para a frente.” Fábio Comparato faz coro à tese de Dallari. “O grande princípio da política no Brasil é a conciliação”, disse. “Os partidos nunca querem chegar às vias de fato.”
O colombiano Rodrigo Uprimny é especialista em justiça de transição de ditaduras para democracias. A pedido da Comissão da OEA, ele apresentou um estudo sobre o eventual impacto na sociedade brasileira atual, causado pelo desconhecimento da verdade do seu passado. Ele traçou um quadro detalhado dos efeitos da falta de julgamentos penais por violações de direitos humanos. A falta da verdade, disse o perito, implica a violação do direito das famílias e os traumas tendem a persistir.
“Se um Estado desenvolve apenas um esquema de reparação, mas sem justiça, as reparações serão entendidas pelas vítimas como uma forma de comprar o seu silêncio”, disse Uprimny. “Eles verão essas indenizações como um dinheiro ensanguentado, e não haverá um componente reparador.”
Um estudo feito pela Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, comparou mais de 100 casos de processos transicionais. E concluiu que, nos países onde houve julgamento e comissões da verdade, há um respeito muito maior ao direito à vida e à integridade física da população do que naqueles que não adotaram essas medidas. “Quando não há processos, responsabilização e esclarecimento, tendem a persistir enclaves autoritários, déficit de estado de direito e redução das garantias individuais”, disse Uprimny.
Ele acha que não houve no Brasil esforço significativo de reparação. Houve esforços extrainstitucionais, mas não julgamento e verdade. Por isso, a seu ver, as garantias de não repetição de violações aos direitos humanos são precárias: “O Brasil tem uma democracia sólida e invejável, mas no plano da garantia do estado de direito subsistem enclaves autoritários complexos, como a violência policial, maior que a de qualquer país do mundo, com altíssima impunidade.”
A punição de militares poderia ser uma ameaça às democracias relativamente recentes? “Esse é um debate teórico”, disse Uprimny. “Mas creio que, na prática, as perseguições penais raramente desestabilizam as democracias.”
José Gregori lembrou que, no começo do governo Fernando Henrique, houve pressões de militares contra a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos. “Foi um desafio muito grande para nós naquela época”, disse. Para ele, embora a democracia no Brasil esteja consolidada, não há razão para se abrir uma crise institucional, que ele acredita que irá ocorrer caso se julguem e se mandem militares para a prisão. “Nossa democracia é uma plantinha tenra, que tem que ser regada todos os dias”, falou com seu vozeirão calmo e pausado. “Nesse sentido, penso como Ulysses Guimarães: nós não somos uma Suécia.”
O consultório do psicólogo paulista Paulo César Endo fica num sobrado em Perdizes. Ele analisa as consequências da não punição aos crimes contra os direitos humanos por duas vertentes. Uma pelo lado das vítimas, outra pelo efeito na sociedade. Foi ele quem fez a perícia dos danos psicológicos sobre as famílias dos desaparecidos no Araguaia. “O psiquismo precisa de um material para produzir o seu luto”, disse. “Por isso os enterros, as missas, os rituais. Os rituais falam disso. Se aceita que a pessoa vá, não tem volta. Quando você tira isso das famílias, você impede o processo de luto. Elas se recusam a fazer o luto. Porque sem o corpo é como se você tivesse que matar seu ente querido. E há uma recusa disso.”
Lorena Moroni Girão Barroso tinha 14 anos quando sua irmã, Jana Moroni, de 21 anos, estudante de biologia no Rio, partiu para o Araguaia. Até hoje ela sofre ao falar do assunto. Um trecho do seu depoimento a Paulo Endo, que o encaminhou à Comissão da OEA, diz:
Chegou, porém, um dia em que Jana chamou meus pais no quarto e de lá eles saíram chorando. Meu pai me chamou e me disse aos prantos: “A Jana vai embora…” Perguntei: “Para onde?” E ele falou: “Ela não pode dizer, por questão de segurança. Mas vai lá e fala para ela, pede a ela para ficar. Se você pedir, ela fica, ela é sua madrinha.” Isso é uma das maiores tristezas da minha vida. Durante anos me senti culpada pela partida dela. Na minha mente juvenil, sempre achei que ela tinha ido embora porque eu não havia pedido com a convicção e ênfase necessárias. Embora eu tenha trabalhado tal aspecto na terapia, e racionalmente saiba que nada a faria mudar de ideia, esta é uma passagem na vida em relação a qual eu sempre desabo de chorar. É como se eu tivesse desapontado meus pais na única tarefa importante que eles me deram: impedir a partida da Jana. E como eu falhei nisso, nada mais importa; qualquer êxito ou vitória ficará eternamente obscurecido por essa derrota: não conseguir fazer com que a Jana não fosse embora. E, no dia seguinte, ela partiu para nunca mais voltar.
Outra consequência da impunidade, na avaliação de Paulo Endo, é a violência policial sobre a população carente. “Como não há punição, acredita-se que se pode continuar torturando”, disse. “No Brasil, desde o Descobrimento, há um grupo no qual a intrusão ao corpo é permitida. Primeiro os índios, depois os escravos, os militantes de esquerda, os pobres e negros, os homossexuais.”
O psicólogo lembrou que a tortura continua impune: “Nunca nenhum agente do Estado foi condenado por tortura. O máximo que se condena é dona de casa que tortura empregada.” Outro efeito da impunidade são os grupos de extermínio, nos moldes que existiam no regime militar: “No Brasil, dos 26 estados, dezesseis têm grupos de extermínio mapeados e nada se faz a respeito.”
O presidente da OAB do Rio, Wadih Damous, esteve na Corte da OEA. Ele não consegue entender por que os militares atuais não concordam com a exposição da verdade e punição dos criminosos. “Esses nossos comandantes não têm nada a ver com os crimes que seus antecessores praticaram”, disse. “Localizar os corpos para que as famílias possam enterrá-los é um princípio básico da civilização. Foge a qualquer ideologia e religião. É um princípio humanitário.”
Romildo Valle perdeu o irmão, Ramires, em 1973. As fotos de seu corpo carbonizado saíram no jornal da época. Mas ele nunca conseguiu localizá-lo. Nos anos 80, com a abertura dos arquivos da polícia no Rio, conseguiu descobrir, junto com outros parentes de vítimas da ditadura, que havia corpos enterrados numa vala num cemitério de subúrbio. Nos arquivos, descobriu o atestado de óbito do irmão e soube que o corpo tinha sido levado para lá.
A ossada de Ramires, e de mais catorze militantes de esquerda, estava misturada a mais de 2 mil ossadas de indigentes. Em dezembro passado, as famílias dos militantes recolheram catorze ossadas, sem qualquer identificação, e as enterraram num memorial, construído pela prefeitura em homenagem às vítimas.
Para Romildo foi importante fazer o ritual de luto e saber que no memorial está o nome de seu irmão Ramires. Os familiares de outros 140 desaparecidos esperam, embora sem muita convicção, que a Comissão da Verdade traga à tona a história deles.