A veterinária Danielle Bastos Araujo no Instituto de Ciências Biomédicas: das 141 vacinas em estudo registradas na OMS até agora, só duas são brasileiras, ambas em estágios iniciais CREDITO: MARCIO VILLAR MARTINS_2020
Contra a besta-fera
A luta dos cientistas brasileiros para combater o vírus é dura – vai de propaganda enganosa a ameaça de morte
Claudio Angelo | Edição 166, Julho 2020
Na terça-feira de Carnaval, enquanto o Brasil se entregava à folia e, de modo sorrateiro, a vida se transformava radicalmente, o telefone do virologista Edison Durigon tocou em sua casa em São Paulo. Do outro lado da linha, o patologista João Rebello Pinho, que trabalha no Hospital Albert Einstein, um dos mais conceituados do país, transmitiu uma informação: “Estamos com o primeiro caso.” Em seguida, fez a pergunta previsível: “Não quer isolar?”
Um homem de 61 anos vindo da Itália dera entrada no Einstein com sintomas de Covid-19. Desde janeiro, a comunidade médica e os cientistas sabiam que era uma questão de tempo até que a doença chegasse ao Brasil. Agora, era hora de “isolar”. Ou seja: isolar e multiplicar em laboratório o vírus Sars-CoV-2, o agente causador da doença. Era o passo fundamental para começar a desenvolver o diagnóstico e iniciar as pesquisas em busca de um medicamento. Pinho sabia que Durigon era a pessoa certa para fazer isso.
Pesquisador com mais de 36 anos de experiência, Durigon liderou a força-tarefa que isolou o zika vírus no Brasil, em 2016. Na época, ele recebeu uma amostra do microrganismo, extraída de um paciente no Ceará, multiplicou o bicho, colocou cópias dentro de embalagens triplas, para evitar qualquer risco de contaminação, e distribuiu as cópias pelo correio, pagando o Sedex do seu próprio bolso. As remessas, feitas para dezenas de laboratórios brasileiros, foram decisivas para que o país se tornasse líder mundial nos estudos sobre o zika vírus e viesse a comprovar que ele, ao contagiar gestantes, provocava microcefalia nos fetos.
Aos 64 anos, Durigon faz pesquisas no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP). Há uma década e meia, ele se interessou em trabalhar com os coronavírus, da família causadora da Covid-19. Em geral, os coronavírus são vírus respiratórios quase inofensivos. Afetam nariz e garganta, e causam, para emprestar um termo tornado infame, “gripezinhas”. De cada dez resfriados comuns, três são provocados por coronavírus. Naquele Carnaval, por exemplo, havia três pessoas infectadas com um desses coronavírus leves trabalhando no laboratório do ICB. Mas, comparado com boa parte de seus parentes, o novo coronavírus é uma besta-fera, e já se sabia disso antes que chegasse ao Brasil. Transmitido pelo ar e altamente contagioso, ele precisava ser manipulado dentro de um laboratório com um nível elevado de biossegurança, o nível 3, conhecido como NB3. O primeiro NB3 do Brasil é o laboratório do ICB, que foi montado por Durigon e seus colegas.
Ao custo de 1 milhão de dólares, o laboratório foi inaugurado em 2003, época em que a ciência brasileira tinha o luxo de se preparar para ameaças futuras. No ano 2000, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) investira 8 milhões de dólares para treinar e equipar uma rede de laboratórios de virologia, com o objetivo de estudar vírus endêmicos (como o HIV) e emergentes (como o letal hantavírus). Em 2003, com o laboratório NB3 já concluído, deu-se o surto da perigosíssima gripe aviária H5N1, que mata cinco em cada dez pacientes. Felizmente, a gripe não chegou ao Brasil. “Graças a Deus, senão não estaríamos conversando agora”, disse Durigon.
Em um laboratório NB3, pode-se manipular organismos altamente infecciosos e que se espalham pelo ar. A instalação tem pressão do ar negativa, o que significa que, quando suas portas duplas são abertas, o ar de fora é sugado para dentro, a fim de minimizar a chance de escape de algum microrganismo. Suas paredes têm meio metro de espessura, ar constantemente filtrado e renovado, e um autoclave por onde as roupas passam sob um vapor de 120ºC para matar eventuais agentes infecciosos. O acesso é estritamente regulado, e quem entra ali deve seguir um ritual de paramentação, numa ordem meticulosa: sapatilhas descartáveis, um macacão especial de corpo inteiro feito de material impermeável, um par de luvas de látex que são presas ao macacão com fita adesiva em volta dos pulsos, botas impermeáveis, um segundo par de luvas sobre o primeiro, gorro, uma máscara rígida do tipo N95, óculos e escudo facial, desses que viraram imagem corriqueira nos noticiários. A jornada de trabalho pode chegar a seis horas – sem água, sem comida e sem banheiro, com troca constante de luvas e, na saída, dois banhos, um com cloro desinfetante e outro com água pura. Por segurança, ninguém pode trabalhar sozinho numa instalação dessas.
Quando recebeu o aviso do Einstein, Durigon já sabia quem designar para a missão de encarar o vírus assassino no laboratório: sua própria mulher.
“Eu não sei se é porque ele confia muito em mim ou porque quer ficar viúvo, mas não vai acontecer”, brincou a biomédica Danielle Bruna de Oliveira. Paraense, ela se mudou há vinte anos para São Paulo, onde pretendia fazer mestrado sobre a bactéria da tuberculose. Não tinha quase nenhum conhecimento sobre vírus. E apaixonou-se, como ela diz, “pelos vírus e pelo virologista”. Hoje, é especialista em isolar e cultivar patógenos no laboratório junto com sua xará, a veterinária Danielle Bastos Araujo. A tarefa consiste em infectar uma linhagem de células de rim de macaco com uma solução extraída da secreção do paciente de Covid-19 e esperar que o vírus se multiplique. A etapa seguinte é passar o caldo cheio de partículas virais por uma nova cultura de células, para aumentar a concentração de vírus no líquido. Com isso, o caldo fica perigoso. “Fiquei muito tenso, mas tinha de confiar no que a gente faz”, disse Durigon.
No sábado seguinte ao Carnaval, dia 29 de fevereiro, as duas Danielles tornaram-se as primeiras brasileiras a isolar o Sars-CoV-2. As cientistas planejavam se encontrar no laboratório às nove da manhã, finalizar trabalhos de rotina e depois ir ao show do BaianaSystem, banda que animaria um bloco de rua no Centro de São Paulo naquele sábado. No trajeto para o laboratório, Danielle de Oliveira e seu marido receberam uma ligação do Einstein, avisando que a amostra de secreção do paciente número 1 estava pronta, pois a equipe das pesquisadoras Ester Sabino e Jaqueline de Jesus, do Instituto de Medicina Tropical da USP, havia concluído em tempo recorde o sequenciamento genético do vírus. E viria com brinde: uma outra amostra, do paciente número 2, que fora confirmado com a Covid-19 na Quarta-feira de Cinzas. O casal foi pessoalmente buscar o material no hospital. Oliveira chegou ao laboratório para encontrar a colega com mais de duas horas de atraso. As duas não foram ao show do BaianaSystem, nunca mais estiveram em qualquer lugar com aglomeração e, desde então, não fazem outra coisa além de pesquisar o Sars-CoV-2.
Com o vírus devidamente isolado e multiplicado, 32 laboratórios brasileiros, localizados em nove estados, ganharam amostras para pesquisar. A maior parte deles recebeu o novo coronavírus inativado. Ou seja: foi tratado com uma espécie de detergente que dissolve a sua “casca” e deixa apenas seu material genético, o RNA. Quando está assim, inativado, o vírus é usado em diagnósticos da Covid-19. Uma dezena de laboratórios recebeu o vírus vivo, remetido também pelo correio. Vivo, ele serve para testar remédios e pesquisar vacinas contra a doença.
Sempre que aparece uma doença nova, a primeira coisa que os biomédicos fazem é tentar o chamado “reposicionamento de fármaco”, que consiste em descobrir se um remédio criado para a doença A funciona bem para a doença B. Foi assim que se descobriu, por exemplo, que o Viagra, desenvolvido para hipertensão e angina, era eficaz no combate à disfunção erétil. Quando a biomedicina consegue reposicionar um fármaco, há um ganho notável de tempo, pois não é preciso cumprir as demoradas etapas de testar a substância em animais e depois avaliar se é segura para seres humanos. Pode-se ir direto para as fases posteriores. Como é bastante complicado encontrar um remédio eficaz contra vírus, esse processo é ainda mais valioso no caso da Covid-19. “Temos um histórico ruim de drogas contra viroses agudas”, explicou o médico Estêvão Nunes, vice-diretor de Serviços Clínicos do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fiocruz.
Pelo seu jeito peculiar de infectar e de matar o paciente, o novo coronavírus é difícil de combater. Ele invade as células ao se ligar a um receptor chamado ECA2, que está presente em vários tecidos do corpo humano. Por isso, afeta as vias respiratórias e causa pneumonia, mas também pode provocar problemas no trato digestivo, nos rins, no coração e no sistema nervoso. Nos dias iniciais, age silenciosamente. Os primeiros efeitos surgem em torno do sexto dia. A partir daí, começam as complicações, que podem provocar uma inflamação aguda e enlouquecer o sistema imunológico, que passa a combater o próprio organismo. Deflagra-se então o que os médicos chamam de “tempestade inflamatória” ou “toró de citocinas”, nome de uma classe de proteínas ligadas à inflamação. A virologista Carla Braconi, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), tem feito longas pesquisas com o Sars-CoV-2 em um laboratório NB3. Ela diz que o novo coronavírus é diferente de tudo que já viu, no pior sentido: “Eu não sou de falar palavrão, mas que vírus filho da puta!”
Como o vírus funciona em duas etapas – primeiro, infecta e fica quieto, e só depois explode –, os cientistas enxergam vários flancos para combatê-lo com reposicionamento de drogas. Estão testando anticorpos humanos que inibem proteínas envolvidas no toró de citocinas. Estão examinando drogas que bloqueiam a espícula, nome da “chave” que o vírus usa para entrar na célula e se ligar ao receptor ECA2. Estão pesquisando como destruir as proteases, como são chamadas as “tesouras químicas” que o vírus usa para cortar proteínas sob medida e fazer mais cópias de si mesmo. Estão estudando drogas que alteram o ambiente da célula para torná-lo mais inóspito ao vírus. Por fim, há várias pesquisas de drogas que buscam aumentar a sobrevida do paciente, combatendo a inflamação ou as tromboses da segunda fase da doença.
Dos 111 ensaios clínicos aprovados no Brasil até dia 22 de junho contra a Covid-19, mais de trinta testavam algum tipo de droga reposicionada. A equipe do médico Kleber Franchini, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, começou a testar in silico, ou seja, no computador, 2 mil compostos contra a espícula e duas proteases. As informações sobre a estrutura das proteínas do vírus estavam disponíveis em bancos de dados internacionais, onde foram depositadas pelos primeiros pesquisadores – chineses, sobretudo – a ter contato com o patógeno. Franchini e seus colegas passaram a examinar as estruturas dos 2 mil compostos em busca daquelas que se encaixassem nessas proteínas do vírus como uma chave se encaixa numa fechadura, e pudessem assim impedir sua ação.
O encaixe é a primeira etapa. Além disso, é preciso saber quanto tempo e em que condições a droga permanece encaixada na proteína viral, sua metabolização, sua eliminação, sua toxicidade. “Qual é a melhor noiva? A mais rica? A mais bonita?”, compara Franchini, ao referir-se ao composto ideal. Ao final desse processo, todo ele realizado no computador, sobraram seis “noivas”, que foram então enviadas para o virologista José Módena, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em um laboratório NB3, Módena, que tinha recebido amostras do vírus vivo, começou a testar as “noivas” em busca de uma resposta para a seguinte pergunta: Os medicamentos matavam o vírus numa placa de cultura sem fazer mal às células?
Uma delas apresentou resultados promissores. No dia 15 de abril, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, o ex-astronauta Marcos Pontes, foi informado do resultado, já que o LNBio faz parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), organização vinculada ao governo federal. Ansioso para dar uma notícia boa, o ministro fez questão de anunciar publicamente que uma substância conhecida, barata, segura e acessível seria testada em seres humanos contra a Covid-19. O ex-astronauta não informou qual era a droga, alegando que não queria gerar uma corrida às farmácias, mas seu segredo não durou 24 horas. Era a nitazoxanida, um vermífugo que o país inteiro conhece como Annita.
Deu-se, então, o tumulto. O frenesi em torno do remédio levou o governo a proibir sua venda sem receita. A hipótese de que um vermífugo seria eficiente fez com que seu consumo disparasse. No dia 11 de junho, em sua live semanal, o presidente Jair Bolsonaro aumentou a confusão ao fazer propaganda enganosa da ivermectina, outro vermífugo. “Eu acho que o resultado é até melhor do que a cloroquina, porque mata os vermes todos”, disse. A ivermectina está sendo distribuída pelas prefeituras, sobretudo em estados como Pará, Rondônia, Amapá e Maranhão, como parte do “kit-Covid”. Comentando a excitação em torno do Annita, Franchini disse que poderia ter sido pior, caso outra de suas seis “noivas” tivesse apresentado sinais positivos: “Uma das moléculas candidatas era para disfunção erétil. Ainda bem que não deu resultado.”
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações propôs dois ensaios clínicos com a nitazoxanida, ambos a serem conduzidos pelas Forças Armadas. O primeiro com o objetivo de testar a eficácia do vermífugo em quinhentos pacientes com pneumonia em dezessete hospitais. O outro, anunciado em maio, destinava-se a testar trezentos pacientes na fase inicial da Covid-19, a fim de avaliar se o vermífugo era capaz de impedir o surgimento de sintomas mais graves. No começo de junho, quase dois meses depois do anúncio inicial do ministro, os militares ainda não tinham conseguido recrutar os quinhentos pacientes para o primeiro estudo. O segundo começou apenas em junho.
Seis dias depois que o médico francês Didier Raoult anunciou ao mundo que descobrira a cura da Covid-19, o médico brasiliense Marcus Vinícius Lacerda, da Fundação Oswaldo Cruz, em Manaus, já estava pronto para escrutinar a novidade. O francês dizia que a hidroxicloroquina, um derivado da cloroquina, associada ao antibiótico azitromicina, eliminava a doença em 100% dos casos, em cinco dias. Naquele 23 de março, Lacerda recebera a autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para fazer um ensaio clínico com a cloroquina entre pacientes do Hospital Delphina Rinaldi Abdel Aziz, na capital do Amazonas. Dos 81 pacientes graves recrutados para o estudo, 41 receberam uma dose baixa de cloroquina (450 mg, duas vezes ao dia) e quarenta receberam uma dose alta (600 mg, também duas vezes ao dia). O estudo seguia os melhores padrões mundiais. Era randomizado e duplo-cego. Ou seja: os pacientes foram escolhidos de modo aleatório e não sabiam o que estavam tomando, e os médicos desconheciam quem estava tomando qual dose.
Doze dias depois do início do tratamento, um comitê independente de avaliação mandou suspender o ensaio: onze pacientes haviam morrido, dos quais sete estavam recebendo a dose alta. No dia 11 de abril, o grupo publicou um artigo com suas conclusões. Primeiro, dizia que os resultados espetaculares anunciados pelo médico francês não eram replicáveis. Os pacientes não tinham nenhuma redução substantiva da carga viral, mesmo quando usavam o antibiótico azitromicina, nem havia evidência de melhora no quadro geral. Segundo, e ainda pior: o estudo levantava a forte suspeita de que a dose mais alta de cloroquina não era segura, em especial para pacientes idosos com infecção cardíaca.
O estudo do Amazonas foi o primeiro teste randomizado sobre a cloroquina a ser publicado no mundo. Pelo ineditismo e pelos resultados relevantes, chamou a atenção da comunidade científica internacional e acabou sendo notícia no jornal The New York Times, por meio do qual chegou ao conhecimento de um empresário apoiador do presidente Donald Trump. Contrariado com o resultado da pesquisa, o trumpista acusou os pesquisadores de Manaus de terem usado “cobaias humanas” para desmoralizar o medicamento, que vinha sendo elogiado por Trump – e por Bolsonaro – como se fosse uma panaceia contra a Covid-19. Foi a senha para que a vida de Lacerda saltasse do noticiário científico para o policial.
Três dias depois da acusação do trumpista pró-cloroquina, o deputado federal Eduardo Bolsonaro tuitou o link de um site de fake news que trazia fotos em que Lacerda e alguns de seus colegas apareciam com selos de apoio ao petista Fernando Haddad na eleição de 2018. O filho do presidente escreveu a seguinte mensagem: “Estudo clínico realizado em Manaus para desqualificar a cloroquina causou onze MORTES após pacientes receberem doses muito fora do padrão. Este absurdo deve ser investigado imediatamente. Os responsáveis são do PT. Mas isso é pura coincidência, claro…”
“Comecei a receber ameaças de morte”, contou Lacerda, que de fato votou em Haddad no segundo turno. “Diziam que eu ia pagar caro e que ia acontecer comigo o mesmo que aconteceu com a Marielle Franco.” Ele e sua família passaram a andar com escolta policial em Manaus. O Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul abriu um inquérito para “coletar informações” sobre o estudo e intimou os autores a responder uma série de questionamentos em dez dias. Dois dos três procuradores que assinavam a peça, Alexandre Schneider e Wesley Miranda Alves, publicaram manifestações de apoio a Bolsonaro e a Trump em suas redes sociais. O inquérito continua aberto. Os procuradores não quiseram dar entrevista à piauí.
As ameaças contra Lacerda só refluíram depois que o grupo de Manaus publicou seus resultados na prestigiosa revista médica norte-americana Jama, em 24 de abril. Dias antes, um estudo realizado entre 368 veteranos de guerra hospitalizados com Covid-19 nos Estados Unidos havia chegado a conclusões semelhantes: nenhuma melhora significativa com cloroquina e risco de vida mais elevado entre os pacientes que usaram a droga.
“Caí na maior fake news da história”, disse o médico, lamentando ter se interessado pelas propriedades supostamente curativas da cloroquina. “Colocamos toda nossa energia de pesquisa nisso e deixamos coisas mais promissoras de lado.” Correndo atrás do tempo perdido, os pesquisadores de Manaus estão fazendo testes com mais três medicamentos, com nomes quase impronunciáveis: o anti-inflamatório corticoide metilprednisolona, o anticoagulante heparina e o tocilizumabe, um anticorpo que inibe uma proteína envolvida no “toró de citocinas”. O mais promissor tem sido a prednisolona, que está sendo testada em duzentos pacientes. Os resultados preliminares mostram que o grupo que recebe o remédio tem menor taxa de mortalidade do que o grupo que não recebe. Em junho, Lacerda disse que publicaria o estudo “quando nossas instituições permitirem que os pesquisadores façam suas publicações em paz”.
Outra boa promessa é o estudo clínico da Coalizão COVID Brasil, coordenada pelos melhores hospitais de São Paulo e Porto Alegre. Uma das drogas em teste é a dexametasona, um tipo de cortisona. No dia 16 de junho, um grupo de pesquisadores da Universidade de Oxford que vinha fazendo um estudo clínico com a mesma droga em 2 mil pacientes anunciou um resultado animador: uma significativa redução da mortalidade de pacientes em estado grave, que já estavam intubados ou recebendo ventilação mecânica. No Sírio-Libanês, outro dos hospitais mais prestigiados do país, o clínico geral Zyun Masuda conta que receita dexametasona para seus pacientes desde o início da pandemia. Bem antes da Covid-19, ele leu no New England Journal of Medicine que pacientes com pneumonia sofreram menos infartos ao tomar pequenas doses de cortisona. Com a chegada da Covid-19, Masuda recorreu à cortisona porque, ao moderar a resposta inflamatória, ela reduz o “toró de citocinas”. Masuda não perdeu nenhum paciente até agora, mas, em entrevista ao podcast Luz no Fim da Quarentena, uma coprodução da piauí com a Rádio Novelo, ele alertou: “Não é a panaceia, não é a solução. É um tratamento com bom impacto.”
A obsessão bolsonarista pela cloroquina atrapalhou a própria cloroquina. O médico Estêvão Nunes, do Instituto Evandro Chagas, contou que teve dificuldades para recrutar pacientes para o braço brasileiro do Solidarity, o mais amplo estudo clínico mundial, coordenado pela OMS, que vinha testando a droga. Seu público-alvo não é nada modesto: toda a população mundial internada com Covid-19. A dificuldade, no Brasil, é que os pacientes, com a onda provocada por Bolsonaro, já chegavam ao hospital tomando cloroquina. Sendo assim, não podiam ser randomizados para participar do estudo.
Até o final de maio, só 150 voluntários estavam sendo estudados no Brasil pelo Solidarity, que atualmente testa três compostos diferentes, desde que os estudos com a cloroquina foram suspensos. Mas há outros entraves. Um dos compostos, o lopinavir, um antiviral antigo usado contra o HIV, saiu de uso e não existe em estoque. Outro, o remdesivir, fabricado pela farmacêutica norte-americana Gilead, não é aprovado para uso no Brasil – e é o mais promissor. Embora não tenha reduzido a letalidade, um teste pequeno com remdesivir nos Estados Unidos diminuiu o tempo de internação dos pacientes de quinze para onze dias. Diante do colapso dos hospitais, como ocorreu na Itália, na Espanha e está ocorrendo em várias cidades brasileiras, aumentar a rotatividade dos leitos de UTI pode salvar vidas. Pelo tamanho da amostra – apenas cinquenta pacientes – e pelo forte interesse comercial da Gilead, porém, especialistas desconfiam do remdesivir. O Solidarity pode dar a resposta.
A cloroquina, por sua vez, está cada vez mais fora do páreo. Em 25 de maio, a OMS suspendeu o uso de hidroxicloroquina nas suas pesquisas depois que um artigo publicado na revista The Lancet afirmou que a droga era ineficaz e até perigosa. Porém, voltou atrás, retomando os testes, quando os autores do artigo recuaram nas suas conclusões. No dia 17 de junho, exatos três meses após a publicação bombástica de Didier Raoult, a OMS suspendeu outra vez os testes com a hidroxicloroquina, interrompendo o braço do Solidarity que testava a droga. Um novo estudo randomizado, feito no Reino Unido, mostrara que não há evidência de que a hidroxicloroquina funcione contra a Covid-19. É improvável que a droga, eleita como a salvação pela extrema direita, venha a sobreviver.
Mas ainda há resultados a avaliar no Brasil de um ensaio conduzido pela Coalizão covid Brasil, que encerrou no final de maio um estudo randomizado, duplo-cego e controlado por placebo – o que significa que há pacientes que recebem a hidroxicloroquina e outros que recebem apenas um medicamento sem efeito. Até 24 de junho, o resultado, que deveria ter sido publicado no início do mês, ainda não tinha sido divulgado. “Temos o estudo mais bem desenhado do mundo”, disse o imunologista Luiz Vicente Rizzo, diretor de pesquisa do Einstein. Ele contou que foi criticado por fazer “pesquisa bolsonarista”, chamou o Solidarity de “mal-ajambrado”, disse que a OMS “está sendo inútil nesta pandemia” e classificou o resultado do estudo de Manaus como um “desastre”. Rizzo, apesar de criticar todos os testes sobre a cloroquina, nunca receitou o remédio para seus próprios pacientes. “Nenhum dos meus pacientes morreu”, afirmou.
O Einstein tem outros 21 ensaios clínicos em curso. Um deles, em parceria com o Hospital Sírio-Libanês, usa o plasma de pacientes recuperados de Covid-19. Conhecido desde o século XIX, o princípio é tomar emprestada a imunidade de pacientes curados, passando seus anticorpos via plasma (o meio líquido do sangue, sem glóbulos vermelhos, brancos e plaquetas) para outra pessoa, tentando imunizá-la também. É um tratamento padrão que já conseguiu salvar, por exemplo, alguns pacientes de ebola, um vírus altamente agressivo que, a depender da variedade, mata até 90% dos infectados. Até o começo de junho, havia dez estudos com plasma convalescente no Brasil. O tratamento não será a cura da Covid-19, mas é mais uma arma no arsenal dos médicos.
Num desdobramento inesperado, o plasma do Einstein também virou um antídoto temporário contra um dos piores males da ciência brasileira: a burocracia. Há tempos que o laboratório de um biólogo cearense com sobrenome de extensão imperial – Lucio Holanda Gondim de Freitas Junior – carece de anticorpos humanos, reagentes necessários para que se possa enxergar o coronavírus nas placas de cultura. Freitas Junior encomendou o material do exterior, mas ficou tudo retido na alfândega, em São Paulo. “Liguei lá e disse: ‘Sou professor da USP, o que você tem aí pode ser a cura da Covid.’ Ouvi de volta: ‘Professor, sinto muito, temos um procedimento.’” Casualmente, o biólogo soube que Edison Durigon, seu vizinho de laboratório na USP, estava fazendo testes no plasma do Einstein, e conseguiu algum para usar no lugar dos anticorpos humanos, que só veio a receber mais de dois meses depois da encomenda. Funcionou.
Com tantos nomes, Lucio Holanda Gondim de Freitas Junior é chamado de modo diferente em cada lugar. “Na USP, me chamavam de Holanda. Na França, de Gondã. Na Coreia, de Freitas”, disse ele, enumerando os locais por onde passou como pesquisador. Na Coreia do Sul, ele aprimorou a técnica que lhe permitiu demonstrar que a droga sofosbuvir, originalmente usada contra a hepatite C, era eficaz no combate à febre amarela. Na corrida contra a Covid-19, ele já testou in vitro cerca de 1,5 mil medicamentos. “A gente recebe compostos do Brasil inteiro. Até água benta, se o povo falar que funciona, eu testo”, brincou o pesquisador.
Um dos principais fornecedores de drogas para Freitas Junior é o químico Luiz Carlos Dias, do Instituto de Química da Unicamp. Desde 2008, Dias trabalha na busca de novas drogas contra doenças parasitárias tropicais, como malária e doença de Chagas. Ele tem uma parceria com a iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), que se empenha em descobrir remédios para males que não atraem a atenção dos grandes fabricantes farmacêuticos. Também é parceiro da Remédios contra a Malária (MMV, na sigla em inglês), que é ligada à Fundação Bill e Melinda Gates, a organização que mais investe em pesquisa de novas drogas no mundo. Com esses associados, Dias tem acesso a uma biblioteca de mais de 2 mil compostos, duzentos dos quais estão sendo testados no ICB. Seu grupo faz parte de um consórcio internacional articulado pela DNDi cuja missão é garantir que, caso apareça uma superdroga contra a Covid-19, os países pobres tenham acesso a ela.
Os cientistas ouvidos pela piauí são, quase todos, um tanto céticos quanto à descoberta de uma droga que cure a Covid-19. O químico Luiz Carlos Dias não acredita muito na eficácia de drogas reposicionadas. “Das que testamos até agora, há alguns resultados interessantes, mas nada que seja fantástico”, diz ele. “Não tem bala mágica”, avalia o biólogo Freitas Junior. “Até surgir uma vacina, o que vai acontecer é que essa doença passará a ser tratável”, acredita o médico Mauro Teixeira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com o passar do tempo e o acúmulo de experiência, o próprio padrão de tratamento vem melhorando. “Uma coisa é ficar doente agora, outra será ficar doente em novembro”, diz Durigon, ao mostrar por que é importante “achatar a curva”, reduzindo o ritmo da contaminação. Com isso, será possível que, lá na frente, muitas vidas sejam salvas.
Os pesquisadores acreditam, no entanto, que é no sistema imunológico humano que mora a chave para o combate ao vírus. Dois braços desse combate ainda engatinham no Brasil: a produção de vacinas e de anticorpos monoclonais, que são uma evolução turbinada do plasma convalescente, capazes de neutralizar um agente invasor dentro do organismo. O problema é que o custo de produção de anticorpos monoclonais é muito alto, podendo chegar a 5 milhões de dólares, razão pela qual não há nenhum grupo brasileiro envolvido na sua produção. Mas há brasileiros trabalhando nas pesquisas em curso nos Estados Unidos. A equipe da imunologista sergipana Marina Caskey, da Universidade Rockefeller, em Nova York, parou todas as outras linhas de pesquisa – inclusive com HIV – para buscar esses anticorpos monoclonais capazes de neutralizar o novo coronavírus.
O imunologista mineiro Julio Lorenzi, que faz parte da equipe de Caskey, afirma que essa abordagem é mais rápida do que o processo de uma vacina. “Uma vacina demora seis meses para você ver se funciona. Um anticorpo, uma vez selecionado, você já sabe que funciona.” A desvantagem dos anticorpos é que eles não são para sempre. Só existe hoje um monoclonal para vírus (o sincicial respiratório, que pode causar complicações sérias em bebês), que tem uma meia-vida no organismo de 14 a 21 dias. Ainda assim, eles podem ser úteis para proteger idosos e profissionais de saúde, e no combate à infecção em estágio inicial. A equipe de Caskey já identificou 88 anticorpos e, se tudo der certo, talvez monoclonais para a Covid-19 venham a estar no mercado antes de uma vacina.
Das 141 vacinas em estudo registradas na OMS até 24 de junho, só duas são brasileiras, ambas em estágios iniciais. Uma delas está sendo desenvolvida pela USP, que planeja usar proteínas virais para induzir imunidade. A outra, desenhada pelo grupo do médico Ricardo Gazzinelli, da Fiocruz de Belo Horizonte, busca usar como agente imunizante uma criatura exótica: um vírus da gripe disfarçado de coronavírus. Utilizando a sequência genética da proteína da espícula do coronavírus (espícula, lembremos, é aquela “chave” que o vírus usa para abrir a porta da célula), o biólogo Alexandre Machado está construindo quimeras. São partículas de vírus da gripe, só que alteradas geneticamente de modo que passem a exibir a espícula do coronavírus em sua superfície – e, assim disfarçadas, podem ser confundidas com o coronavírus e levar o organismo a gerar a imunidade desejada contra a Covid-19.
A boa notícia é que as quimeras já estão em produção. Em Belo Horizonte, elas serão usadas para inocular camundongos, que depois serão “desafiados” com o coronavírus no laboratório de Durigon, em São Paulo. A má notícia é que tudo isso ainda levará um bom tempo, a começar por uma razão esdrúxula: há escassez no mercado de camundongos adequados para esse tipo de pesquisa. Um laboratório nos Estados Unidos já está encarregado de abastecer o mercado. “Já estamos na fila da pré-venda desses camundongos”, diz Machado. “A gente começa a testar em humanos em dois anos. É uma perspectiva otimista”, completa Gazzinelli. Para se ter ideia do grau de dificuldade, basta registrar que a chance de qualquer vacina dar certo é menor que 5%.
Machado, o construtor de quimeras, sabe que seu grupo não está no páreo na corrida para a produção da vacina. No mundo, já existem dezesseis em fase de testes em humanos. Duas delas têm ensaios clínicos acontecendo no Brasil. Uma, a mais adiantada do planeta, é da Universidade de Oxford, em parceria com a farmacêutica AstraZeneca. A outra é da empresa chinesa Sinovac, cuja parceria com o Instituto Butantan foi anunciada pelo governador de São Paulo, João Doria, em junho. “Nada disso nos impacta. Desejo sucesso a essas vacinas, mas queremos chegar a uma vacina brasileira. Vacina para bilhões de pessoas é uma questão geopolítica”, diz o biólogo mineiro. “O Brasil tem de ter sua vacina. Não sabemos o que o futuro reserva para esse vírus.”
O virologista paulista Atila Iamarino diz que há duas medidas prioritárias: investir em equipar fábricas de vacina, como as da Bio-Manguinhos, no Rio de Janeiro, e do Instituto Butantan, em São Paulo, e disseminar testes numa escala muito mais ampla do que a que existe no Brasil. “É muito difícil você ter um medicamento contra esse vírus porque nenhum remédio que não seja preventivo adianta”, afirma. Ele menciona a característica silenciosa do coronavírus, que não causa sintomas até o sexto dia, mas pode ser transmitido. “As terapias que temos condição de verificar são para pacientes internados, mas elas não interferem na transmissão do vírus.” Enquanto a imunização não vem, diz o cientista, só testes maciços e rastreio de contatos podem ser uma esperança de algum retorno seguro à normalidade. E nada disso ainda está sobre a mesa no Brasil.
A Covid-19 pegou a ciência brasileira num momento de penúria singular: temos, hoje, o menor orçamento do século, além de um governo em guerra com as universidades, seus centros de pesquisa e com o próprio conceito de ciência. Na epidemia do zika vírus, ocorrida em 2015, o orçamento para pesquisa começou a desabar. “Os desinvestimentos em ciência que já estavam em curso não vão mudar”, diz o epidemiologista Naomar Monteiro de Almeida Filho, do Instituto de Estudos Avançados da USP. “É quase um milagre do voluntarismo que ainda exista ciência brasileira.”
Quem se manteve na dianteira das pesquisas sobre o coronavírus, avalia Almeida Filho, foram grupos com orçamentos dos governos estaduais, como os de São Paulo, ou quem recebia dinheiro de fora do orçamento federal para ciência e tecnologia, como a rede Fiocruz. O físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, aponta uma regressão dramática na pesquisa biomédica no Brasil. “Nós tínhamos uma indústria que fabricava medicamentos. Isso acabou. Com 20% da biodiversidade do planeta, poderíamos estar fabricando biofármacos. Estamos ficando para trás, e isso é um risco para nós.”
Davidovich enumera os dados compilados pelas pesquisadoras Fernanda De Negri e Priscila Koeller, a respeito dos investimentos feitos por diversos países na pandemia. Os Estados Unidos aplicaram o equivalente a quase 32,4 bilhões de reais na pesquisa da Covid-19, o que corresponde a 4% do seu orçamento. A Alemanha mobilizou 12,5 bilhões de reais, ou 6,3% do orçamento. O Reino Unido, 10,8 bilhões, mais de 10% do orçamento. O Brasil, até junho, investiu 452 milhões de reais, ou 1,8% do orçamento. “Foi só um cala-boca para a comunidade, mas não vai dar para muita coisa”, diz Almeida Filho.
Além de não investir, o governo atrapalhou. Em março, o Ministério da Educação, então sob o comando de Abraham Weintraub, resolveu mudar uma série de critérios para a distribuição de bolsas de pós-graduação. O efeito imediato foi paralisar, por exemplo, parte da pesquisa do grupo do virologista Fernando Lucas de Melo, da Universidade de Brasília. Ele trabalha contando as diferenças genéticas entre os vírus dos pacientes para saber, por exemplo, quantas vezes o patógeno entrou no país e se está sofrendo mutações perigosas. Um de seus alunos, aprovado em primeiro lugar no doutorado, perdeu a bolsa e foi obrigado a se mudar de Brasília. Depois de muita gritaria, o governo reviu a decisão – mas, até junho, o aluno de Melo seguia sem bolsa.
A experiência recente de outras epidemias talvez tenha sido a razão pela qual os pesquisadores brasileiros conseguiram dar uma resposta rápida à Covid. Antes da chegada do vírus ao país, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações coordenou a formação da RedeVírus, aglutinando as pesquisas em virologia. “A gente estava sem dinheiro, mas vinha capitalizado de alguns anos de recursos anteriores. Por ‘sorte’ – entre aspas –, quem lida com Covid-19 são os mesmos grupos que lidam com zika e dengue”, diz Mauro Teixeira, da ufmg. Graças à rede de pesquisa formada no início do século e reativada na época da zika, o Brasil tinha mais de uma dezena de laboratórios NB3, capazes de manipular o coronavírus.
A mobilização refletiu no número de estudos com Covid-19 aprovados pela Conep entre março e junho: 485. “Em 15 de abril tínhamos 852 protocolos para despachar, quando o normal seriam 250”, conta Jorge Venâncio, coordenador da Conep. Ele aponta uma bem-vinda inversão na proporção entre ensaios clínicos brasileiros e estrangeiros pedindo autorização. “A maioria dos desenhos vinha de fora. Isso mudou destacadamente, o que demonstra um potencial, que estava meio nublado, de ir muito mais longe”, afirma. “Mas é preciso ter meios para isso.”
O físico Antonio José Roque da Silva, diretor-geral do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, acha que a crise sanitária pode marcar um ponto de virada para a ciência no Brasil. “A pandemia despertou a sociedade para a relevância da ciência”, diz. É possível, considerando que a celebridade emergente do país em 2020 é um cientista: Atila Iamarino, estrela de lives assustadoras no YouTube sobre os números da pandemia. Iamarino deu uma entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura, e obteve uma das maiores audiências da história do programa.
Marcelo Morales, coordenador da RedeVírus, reconhece as dificuldades financeiras, mas diz que a pesquisa com doenças emergentes “sempre esteve como prioridade” no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Em maio, segundo ele, a pasta recebeu um crédito suplementar adicional no valor de 353 milhões de reais. Parte dos recursos será usada na pesquisa de anticorpos monoclonais, aqueles cuja produção é excepcionalmente cara. Outra parte deverá ser destinada à construção de um laboratório NB4, o nível máximo de biossegurança, que é uma necessidade antiga do Brasil.
Os NB4 são usados para conter os chamados supervírus, como o ebola, o Marburg e o Machupo, zoonoses causadoras de febre hemorrágica e altamente perigosas. Com a maior floresta tropical do mundo e a maior taxa de conversão de ecossistemas do planeta, o Brasil é, provavelmente, um reservatório imenso desses vírus, tanto que especialistas classificam como um milagre que, até hoje, uma epidemia de um desses agentes não tenha estourado na Amazônia.
Um único supervírus brasileiro que afeta humanos foi descrito pela ciência até agora: o Sabiá, que causa febre hemorrágica. Descoberto em 1994, o Sabiá já infectou quatro pessoas e matou duas, todas na década de 1990. Em janeiro, quando a Itália registrava seus primeiros infectados com o coronavírus, um homem morreu de febre hemorrágica em São Paulo. O teste sorológico revelou que seu sangue tinha um vírus com 90% de similaridade com o Sabiá. Somados, os casos mostram que o supervírus brasileiro tem altíssima taxa de letalidade. É impossível saber se o Sabiá ou algum parente próximo será origem da próxima epidemia. Iamarino conta a história de um colega que teve um recurso para pesquisa recusado há alguns anos. Ele estudava coronavírus de morcego, exatamente o tipo que parou o planeta. “A gente não tem como saber de onde virá o problema.” Se o Sars-CoV-2 deixa alguma lição ao Brasil é que cada real investido em pesquisa biomédica retorna, mais cedo ou mais tarde, em benefício da sociedade.
Leia Mais