Conversa de taxista uber coach empreendedor
O vencedor e os finalistas do mês
| Edição 159, Dezembro 2019
GLORIOSO CONCURSO LITERÁRIO
Faça-nos rir e torne-se um imortal.
Se você acha que leva jeito para a coisa, participe do retumbante concurso Encaixe a frase.
Todo mês, proporemos uma frase obrigatória e um ingrediente improvável, que deve ser incorporado à história. Envie um texto de no máximo 5 mil toques ou uma HQ de 1 página, até o dia 16 de dezembro para concurso@revistapiaui.com.br, e a escolhida será publicada na próxima edição da piauí.
FRASE DO MÊS:
“Ricardinho era o rei do pedaço; mandava soltar, mandava prender.” Elemento estranho: Biotônico Fontoura
VENCEDORES DE DEZEMBRO: A frase a ser encaixada era: “Construirei meu império especulando com o preço da rúcula” + elemento estranho: “Vou de Táxi”. Os campeões, Adilson Terrível e Daniel Francoy, assinam juntos a HQ.
Os outros quatro finalistas estão abaixo.
Confira aqui as regras do nosso paleolítico certame literário.
Textos finalistas
TEMPOS MODERNOS
Herácliton Caleb
Um carro para em um posto de gasolina.
– Você pode encher o tanque, por favor?
– O senhor quer dizer despejar gotas de combustível em seu automóvel?
– Isso.
(Ao telefone) Lúcia, eu já estou chegando… Estou perto, vai enrolando o pessoal aí que eu
chego para a reunião. Aqui no posto…
(Ao frentista) Amigo, qual é o nome desse posto?
– Não é um posto. É uma Gasolineria.
– Como?
– Gasolineria. É um novo conceito de atendimento.
– E qual é nome dessa porra?
– Gotas de ouro, senhor.
– Gosta de ouro?
– Sim. É para frisar que cada mísera gota importa.
– Aposto que você não é mais frentista, certo?
– Não. Sou assessor de abastecimento. Esse é o meu cartão.
– Enzo?
– Isso.
– E essa gasolina é boa, Enzo?
– Sim. 70 por cento de óleo de canola.
– Ok. Pode encher.
– (Ao telefone) Isso, Lúcia… Vai dizendo alguma coisa aí. Improvisa. O quê? O carro? Sim,
peguei hoje. Ele é bem macio. Depois te levo para dar uma volta.
– Pronto, senhor!
– Quanto deu?
– 489 reais.
– Porra. Tudo isso?
– O valor excedente é para a preservação das tartarugas.
– Você está louco?
– Não, senhor. Esse preço é praticado nos países mais desenvolvidos para desencorajar o
uso de veículos.
– Mas eu não tenho essa grana.
– Aí é um problema.
– Mas…
– Está vendo aqueles carros perto daquela horta?
– Sim.
– Aquela horta tem de tudo: rúcula, cebolinha, agrião…
– E o que tem a ver?
– Aqueles carros parados estão na mesma situação que o senhor.
– Na mesma situação?
– Sim. Seu carro será retido.
– Mas ele é novo.
– Melhor.
– E como é que eu faço para ir trabalhar?
– Eu não sei. Eu vou de táxi.
O homem deixa o carro puto e sai acenando para algum táxi. Enquanto isso, Enzo olha para
o horizonte e comemora:
– Construirei meu império especulando com o preço da rúcula.
ROQUETTE RÚCULA
Chico Spagnolo
Todo mundo é bonito a duzentos metros de distância, menos o Linguinha. Roberto Santos de Andrade, o único calouro da faculdade que eu tive a manha de apelidar. Duas vezes.
̶ Ric, e esse aqui?
̶ É o Beto Bota Feio Nisso!
Acho que foi a única coisa boa que eu fiz no curso de publicidade. Lembro que a turma de alguma república tinha criado o festival Cannes Lingus para premiar grandes acontecimentos do ano e, na edição do Betinho, eu levei o troféu Palme Dói, pela invenção do melhor apelido. O nome pegou tanto que até a família dele começou a chamar o cara assim. Mas aí vieram os anos 90 e o bonitão entrou na onda de ser clubber: meteu um piercing na língua, o que ampliou a sua lista de predicados negativos. Além da fealdade retumbante, ele passou a ter a dicção mais indecente já ouvida. Algo entre o português, o japonês e o latim.
̶ Beto, fala assim, ó, “casca de árvore”.
̶ Cáscara de árvore.
̶ Isso. Agora fala “aspecto”.
̶ Aspeco.
Ele precisava de um novo nome e eu cravei: “vai ser Linguinha”. Quem tem a chance de dar dois apelidos para a mesma pessoa? Quem consegue presentear o mesmo cidadão com duas prósperas alcunhas? Prósperas mesmo, porque a segunda rendeu ainda mais do que a primeira. Eu me lembro de abrir o jornal e o gracioso estar lá, na coluna social: “Beto Linguinha assume direção criativa da agência xxt”, “Linguinha é o publicitário brasileiro mais premiado nos EUA”. O cara era um dínamo. E agora ele estava diante de mim, na Gare de Midi, em Bruxelas. “O que será que ele tá fazendo aqui?”, eu pensava, enquanto olhava indiscretamente para aquele prognata de sobrancelhas grossas, casaquinho de gola alta, cabelo arrumado com pente Flamengo e dois brincos na orelha esquerda.
̶ Tá perdido, Língua?
̶ Ric! Puta virida, é você mesmo?
̶ Agora você é cego também, bonito?
̶ Não é possível! Cataramba, faz uns… 10 anhos?
̶ Acho que até mais. Tá de mudança?
Linguinha deu duas palmadinhas na maleta de couro, tão feia quanto ele. Disse que ficaria na cidade até convencer o representante do maior mercado belga a fechar um contrato de exclusividade com um produtor brasileiro de rúcula.
̶ Sabia que é a única hortaleriça que não perecisa de nenhum tipo defensivo, Ric?
̶ Agrotóxico, certo?
̶ Esse é um apelerido em desuso.
̶ Ok, e esse é o seu principal argumento, Greta?
̶ O segundo, na verardade. O preço disso aqui é paraticamente imbalatível.
̶ Língua, você fala desse jeito só em português ou em inglês é a mesma coisa?
̶ Não me amola, acabelei de chegara.
Eu estava com saudades de aloprar alguém assim, em português. Ainda mais o Lingueta, totalmente analfabeto e rico, como manda a cartilha da carreira que ele escolheu seguir. Você sabe que o publicitário é bom quando ele é feio. Se ele consegue se vender, ele consegue vender qualquer coisa, mesmo com uma péssima dicção. É charmoso. Fiquei imaginando como seria ele falando “rúcula” no dialeto linguinhístico. “Ruculara? Rugular?”
̶ Bom, eu preciso ir nessa, mas pega o meu número e me avisa se quiser sair, valeu?
̶ Ric, e se você me ajudarasse a conquistar os caras? Você era bom nirisso.
Um convite direto de Beto Andrande era o que eu precisava para largar o posto de vendedor de açaí e tapioca na Europa. O publicitário de feiura renomada ia me tirar da merda. Meu ex-calouro, meu Beto Bota Feio Nisso, meu Linguinha, minha criação, meu primeiro slogan. Encarei como a retribuição de um favor. “Construirei meu império especulando com o preço da rúcula“, pensei. Soou instantaneamente falso, mas igualmente promissor.
̶ Tá, faço o que for para te tirar da cidade o quanto antes.
̶ Ó, esquerece o waffle, as fritas, o molerequinho mijão, o Van Damme. Essa verdinha tem que sero novo símboloro da cidade.
̶ Deixa comigo.
Eu me reuni três outras vezes com o Língua para criar a peça que ia transformar a rúcula brasileira em patrimônio belga, ultrapassando o cacau roubado da África. A gente ensaiou na véspera da reunião e decidiu que eu falaria todas as partes da apresentação, sem jogralzinho. O Língua só abriria a boca para falar dos prêmios que ele tinha recebido.
̶ A gente se encontra lá direto, Língua?
̶ Sim, porede ser. Quer uma carona? Tô chamando o Uber.
̶ Não, vou de táxi. É meu amuleto da sorte.
A ideia toda se baseava em dizer que a roquette (ou seja, a rúcula) estava para o Tintim como o espinafre estava para o Popeye. Até criamos uma HQ inteira em que o topetudo de Bruxelas conseguia se livrar de uns crápulas mafiosos comendo folhas de rúcula e ficando extremamente forte.
̶ Língua, se a gente fechar esse trampo, vou te dar um novo apelido!
̶ E qual vai ser deressa vez?
O Linguinha voltou para o Brasil, tirou o piercing, acertou a dicção, mas não desencanou do visual meio Savage Garden, meio Prodigy. Resolveu abrir a própria agência, especializada em promover coisas naturebas pelo mundo. Eu continuo aqui na Bélgica, trabalhando como diretor criativo da Beto Roquette.
BRASÍLIA, TEMOS UM PROBLEMA
Giovanni Ghilardi
Dia 341.
Gabinete do Ministério.
Brasília, Brasil, América do Sul – Planeta Terra.
Alô? Alô? Planeta Terra chamando…
Começo esse relato homenageando o colega astronauta Lucas Silva e Silva porque às vezes penso que também cheguei ao mundo da lua. A atmosfera aqui é cada dia mais insana e tudo se agravou um pouco mais depois que aquele panfleto passou a circular
por nós.
Não, não estou falando do papel que o Frota levou na câmara, aquele que envolvia Olavo e Caetano (se você ainda não sabe ao que estou me referindo, te aconselho a deixar pra lá e não ir atrás disso).
Estou falando de um folheto que devia ter a metade de um papel A4, com uma arte gráfica que lembrava as mensagens da Damares no grupo do Ministério, impresso em couchê, com os dizeres:
• Karaokê do Ministério: open bar acima de todos, confraternização quebrando tudo.
De cara, não parecia uma boa ideia, já que estamos passando por algumas turbulências. Mas no Brasil esse ritual alcunhado de “festa da firma” chega com tudo no fim do ano e atropela qualquer situação ou problema.
Agora, ficamos na expectativa do evento.
Que seja tranquilo como não costuma a ser.
Saudações.
Astronauta M.P.
Dia 343.
Banheiro do Karaokê.
Brasília, Brasil, América do Sul – Planeta Terra.
Depois que Abe inclinou os joelhos, segurou o microfone com as duas mãos e desatou a cantar a discografia inteira de Elvis Presley; considerei mais seguro e confortável me refugiar aqui no banheiro. Pensava que o homem logo largaria o microfone, mas dessa vez, ele estava emocionado demais.
Antes disso, o álcool já começou a circular pelo recinto.
Meu colega Salles estava descontrolado, colocando todas as verduras na pequena chapa do local. Ria freneticamente enquanto queimava alfaces, abobrinhas e rúculas.
O Paulo Guedes que um pouco antes entoava canções do grupo musical Bonde do Tigrão (e em meio a um hit e outro, afirmava que sim, ele era tigrão pra todos), olhou aquela chapa pegando fogo e bradou:
– Construirei meu império especulando com o preço da rúcula.
O Capitão não gostou nada de ver aquela cena, comentou com Moro que parecia estranho seu braço direito querer assumir o império. O Moro por sua vez, achou que era com ele. Ficou sem graça, mas pensou em uma resposta rápida.
– Esquece isso, Jair. O perigo mesmo é o Huck.
O nome causou um frio na espinha do Capitão que tornou a proferir palavras acaloradas contra a Rede Globo e seus funcionários.
A situação ainda se alarmou depois que alguém soprou na orelha do homem:
– E o pior, ele emprestou um jatinho dele pro Lula.
Aí ficou aquele climão no ar, coisa chata. Mas pelo que averiguei é mesmo natural que em confraternizações de empresas, umas verdades sejam ditas para o chefe depois de alguns drinks.
– Huck, Globo e Lula juntos pra me derrubar?
O Capitão ficava puxando esse assunto de ministro em ministro. Até que Carlos (não sei o que ele fazia na festa, mas o rapaz sempre dá um jeito de aparecer) pegou o microfone e acalmou a todos.
– Se eles tem o Huck, a gente tem a Angélica. Se o Lula vai de avião, eu Vou de táxi!
E aí começou a cantoria. Todas as vozes presentes se esgoelando na música da década de 1980. Damares até fez uma coreografia que todos copiaram.
Nesse momento, a festa parecia ter chego em seu ápice, todos se animaram. Quer dizer, todos menos o Abe que já tinha colocado o nome na fila pra cantar e tinha presenciado a interrupção de Carlos.
Agora, ele não largaria mais o microfone.
E assim, a energia que estava lá em cima, caiu com uma força de gravidade que eu nunca tinha visto antes.
Imagino que na segunda-feira a ressaca e o vexame serão insustentáveis.
Aliás, quem estou querendo enganar? Ninguém tem medo de vexame nesse grupo não. Parece que qualquer papelão é fichinha…
Só espero que alguma hora, o Abe largue o microfone e as pessoas se acalmem.
Que 2020 seja tranquilo como esse ano não costumou ser.
Saudações.
Astronauta M.P.
TÁ MELHORANDO
Felipe Araújo
Não, moço. Isso aqui é temporário. Tô preocupado com essas coisas, não. Direitos, o quê?! Trabalhistas?! Preciso não, em nome de Jesus. Isso é coisa desses vagabundos da esquerda. Bando de comunista desocupado. Só querem o bem bom. Trabalhar mesmo, gostam não. Comigo não. Aqui é trabalho, entendeu? Ralando todo santo dia. Se bem que esse negócio de santo é melhor nem falar, pastor não gosta muito. Importante é que nosso presidente é por nós, tô animado. Tem muita coisa errada que ele tá arrumando. Acabando com a corrupção, com o toma-lá-dá-cá…
Desculpa, não entendi. Pode repetir? Milícia?! Onde já se viu? Isso é coisa de vagabundo esquerdopata. Povinho do PT, do PSol, do PSDB, do DEM. Acabou a mamata e eles ficam aí inventando essas calúnias. Não querem deixar nosso presidente governar. Eles são donos da Globo, da Veja, da Folha, essa outra revistinha comuna, como é o nome?, isso mesmo, Piauí. Essa imprensa toda de esquerda, comunista. Querem bagunçar. Presidente não é metido com isso não. O Moro tá aí, não ia fazer negócio errado nem se meter com gente corrupta, pelo sangue de Jesus.
Aqui é trabalho, moço. Se o povo trabalhasse em vez de ficar reclamando, esse país era outro. Tem que botar moral. Povinho quer muito direito, mas não quer obrigação. Aí vem com esse negócio de gay, de negro, de índio, de Amazônia, de queimada. O senhor sabe que é mentira, não sabe? O senhor parece inteligente… Aquilo lá é muito grande, sempre teve queimada por lá. E a floresta é úmida, pega fogo não. Pode desmatar à vontade. Mas tem que proteger porque as ONGs querem entrar lá e dominar. Então desmata pra proteger, sabe como é que é?
As coisas estão melhorando, só não vê quem não quer. Eu mesmo estou juntando dinheiro. Logo logo, compro umas terras lá pelas bandas do Pará, Tocantins, aquele lado ali da Bahia, do Amazonas. Ah, vai ser uma beleza. Desmatar um monte, abrir minha plantação, meter bala nesses terroristas do MST. Vou produzir, exportar, negociar em bolsa. O agro é pop, conhece aquela propaganda? Pode ser soja também, mas prefiro hortaliça. Construirei meu império especulando com o preço da rúcula. Trator, jatinho, carrão do ano, tudo de bom. Tenho fé que Jesus vai me abrir esses caminhos, pastor avisou. Merecimento. E Bolsonaro tá ajudando…
Esse Uber aqui é só uma chuva, te disse. Perdi meu emprego anterior e vim pra cá. Gerente de banco. Sou engenheiro, mestrado em finanças. Mas foi bom ter saído, esses bancos… Sei não. A gente tem mesmo é que lutar contra o sistema, contra tudo isso que tá aí, aleluia! Olavo de Carvalho tem alertado, mas fazer o quê? Brasil é um país em que ninguém lê, pessoal não se informa e aí cai nas histórias que os esquerdistas inventam. Repare nesse óleo do Nordeste. Isso aí é só em três ou quatro praias, negócio pequeno, só ali. E vem o pessoal chorando, fazendo escândalo. Tá controlado já, nosso ministro disse. Sem falar que no Nordeste eles apoiam a Venezuela e esse óleo veio de lá. Gentinha!
Sim, sou casado, sim. Minha esposa era funcionária dos Correios. Pensa que nem eu e está na luta comigo. Votou Bolsonaro, claro! É mulher direita. Perdeu o emprego também, mas foi até bom, sabe? Tem que diminuir o Estado mesmo. Privatiza tudo, é o correto. Ela tava recebendo o seguro-desemprego, mas o governo vai taxar. Tem problema, não. Situação fiscal do país, só Jesus na causa. Fico assim só meio preocupado às vezes com meu irmão. Tava quase lá, ia se aposentar, mas aí teve que ser demitido, dois anos já. Tô tentando ajudar, mas tem mês que é difícil aqui… Enfim, bola pra frente! O importante é que o país hoje é outro.
Eleição?! Voto de novo, Mito sempre. Era esse homem que faltava. Tem ninguém, não. Outro dia, vi no grupo de zap que o Huck quer se candidatar. Uma piada, não é não? Hein? Jamais! Um esquerdista daquele. Pau mandado da Globo, essa maldita. O PT e a Globo quebraram esse país. Vi no grupo que ele até se separou da Angélica. Sabe a Angélica? Aquela que cantava “Vou de Táxi”, fez sucesso nos anos 80. Bonitinha ela… Pois é, se separou e parece que casou com a tal de Zélia Duncan, aquela cantora comunista cearense. Não soube?! Senhor leve a mal não, mas a gente tem que procurar se informar hoje em dia.
Pois é. Mas tá tudo melhorando. Jesus Cristo interveio e o Brasil tá mudando. Vai ser outro país pro meu filho. Ele agora tá em aula. Estuda no colégio municipal, tive que tirar do particular. Cheio de doutrinador por lá, comunista corrompendo criança, impossível. Tirei mesmo. Por enquanto, tá no colégio público. Mas estou até olhando as escolas lá de Manaus, no Pará. Matricular quando comprar minhas terras. Rúcula vai dar muito dinheiro. Basta querer trabalhar. O senhor ainda vai escutar muito sobre mim.
Já vai descer?! É aqui mesmo? Fica com Deus, senhor. Tenha um bom dia. Quer comprar umas pastilhas, não? Pra ajudar no décimo terceiro…