Londres era um mexidão de multiculturalismo vibrante e dinheirama ansiosa, ou multiculturalismo ansioso e dinheirama vibrante – no meio em que eu vivia, era dificílimo dizer quem era o imigrante de primeira geração, de segunda geração, e quem era o suposto local, o da gema CREDITO: ROB STOTHARD_GETTY IMAGES
A copa é deles
A utopia nacionalista-cosmopolita do Mundial em tempos extremos
Alejandro Chacoff | Edição 140, Maio 2018
I
Lembro até hoje do jogo. Fomos assisti-lo no sítio do meu avô, no Mato Grosso. O sítio não era muito bem cuidado. Ficava largado por meses e, quando entrávamos no casarão, o meu avô quase sempre mostrava uma irritação vaga pelo desleixo geral, pelas folhas secas que se acumulavam nos cantos e o odor dos canos que vinha dos banheiros. Lembro que alguém havia colado umas bandeirinhas do Brasil perto do tanque, atrás da casa. Eram bandeirinhas de papel. Talvez esse fosse o único símbolo que indicasse uma Copa do Mundo em curso.
É a primeira copa da qual tenho memória. Nessa época, em 1990, eu ainda vivia nos Estados Unidos, e quando voltava ao Brasil nas férias, me sentia um pouco perdido. Falava a língua com sotaque; a minha pele se descascava no sol com mais rapidez que a dos meus primos. O futebol me ajudara, aos poucos, a criar um simulacro de sentimento nacional. Vivendo em outro hemisfério, eu romantizava a Seleção. Sabia escalações passadas, e tinha ganho do meu avô uma fita VHS, na qual um Luciano do Valle parrudo e mais jovem narrava compactos de jogos de outras copas. Os meus primos e os filhos do caseiro do sítio achavam aquilo engraçado, pedante. Nunca lhes havia passado pela cabeça assistir partidas de décadas anteriores. Quando jogávamos bola na frente do casarão, eles conseguiam correr descalços sobre as pedrinhas e o cascalho quente; eu também tentava, mas a certa altura sempre desistia e botava o tênis. Sentia alívio e vergonha ao fazer isso – era bom parar de fingir ser como eles, e era ruim admitir a farsa.
Ninguém estava muito animado com a Seleção naquele ano, só as crianças, que se animam com qualquer coisa. Lazaroni era o técnico – e pelo que me lembro ele não era controverso o suficiente para ser odiado; o tom dos meus tios, avô, e da família em geral era o de um ceticismo apático. Eu achava que todos eles estavam errados. Sabia que a Seleção iria ganhar. E quando o Brasil começou a pressionar e meter bolas na trave da Argentina naquela tarde, e a gritaria no casarão se tornou mais confiante, senti, brevemente, esse prazer sereno que nos toma quando acertamos alguma previsão.
Não me recordo do momento exato do gol. Lembro mais do replay da jogada. Maradona, com aquele peito de pombo e aquela arrancada meio cambaleante dele, driblando o meio-campo inteiro do Brasil e dando o passe exato para Caniggia (a câmera dava uma pausa para mostrar que não havia impedimento). Enquanto Caniggia driblava Taffarel em câmera lenta, o irmão da minha mãe, já em pé, apontava para a televisão, quase encostando o dedo na tela. “Esse sim, esse sim”, ele dizia, um pouco exasperado, “esse sim tem cara de que cheira!”
Nunca entendi muito bem como a Copa do Mundo e a política se relacionam. Sei que deve haver alguma ligação, mas é difícil estabelecer qual é essa ligação exatamente, e qual a sua profundidade. A ideia de que a vitória de uma seleção numa copa possa ter efeito decisivo numa eleição, ou aumentar a legitimidade de um governo, me parece frágil, se não absurda. Essa relação vaga entre a vitória de uma equipe e a força de um regime não resistiria a uma análise minuciosa, que incluísse todas as variáveis do ambiente político doméstico.
A vontade de governos de se associarem a seleções vitoriosas é mais clara. A foto dos incumbentes e dos jogadores com o troféu já é um ritual publicitário consensual, e será interessante, caso a Seleção Brasileira vença em 2018, ver se todos toparão repetir esse ritual com o pior e mais impopular governo desde a redemocratização (é provável que aceitem). Mas até esse gesto tem mais a ver com a política do que com o futebol: governantes querem sempre se associar a vitórias, sejam elas quais forem. Uma vitória na Copa do Mundo, assim como uma vitória no prêmio Nobel, é apenas um dos símbolos mais óbvios e internacionalmente reconhecidos do qual podem se apropriar.
É o isolamento da Copa do Mundo, o seu relativo descolamento das tensões geopolíticas de cada momento, que me parece mais surpreendente. Após a interrupção da Segunda Guerra Mundial, o evento nunca mais foi cancelado, e desde 1950, ocorre a cada quatro anos, com poucos imprevistos. Difícil apontar algum regime político que tenha tido esse tipo de estabilidade institucional. É muito mais fácil ver um governo cair, ou um regime democrático desmoronar, do que uma copa ser cancelada. Em 2014, o movimento do “Não Vai Ter Copa” sequer chegou perto de vingar, enquanto nos últimos três anos, a democracia brasileira demonstrou ser bem mais frágil do que se imaginava.
Tentar entender a configuração geopolítica e a turbulência do mundo ao rever copas antigas é como tentar enxergar uma paisagem através de uma janela muito embaçada: tem-se alguma ideia de pedaços mais escuros e densos lá fora, mas é impossível ter a noção exata dos contornos, entender a natureza do que se vê. A Iugoslávia dividiu-se; a União Soviética dispersou-se em muitas outras pequenas seleções. Uma tremenda burrice, um tio meu disse certa vez, porque agora sim que eles não ganham nada. Em uma das apresentações de copa narradas pelo Luciano do Valle jovem, notei que ele citava duas Alemanhas. “É a brigaiada deles lá”, meu avô explicou, com concisão típica. Sempre contam a anedota sobre o Pelé na Nigéria, na qual ele chegou para jogar um amistoso e a guerra civil se interrompeu para que todos pudessem assisti-lo. A história, que possui muitas versões (o cessar-fogo aparentemente não ocorreu), é quase sempre contada num tom respeitoso e comovido, para evocar o poder do futebol sobre as pessoas. Mas nunca mencionam o óbvio: que nos dias seguintes, depois da partida, todos voltariam a se matar.
A derrota para a Argentina nas oitavas de final de 1990 foi boa, no fim das contas. Uma romantização perigosa havia crescido em mim, e se o Brasil tivesse ganho aquela copa, eu já estava pronto a confundir uma vitória com algo mais místico, a imbuir-me da crença de que a Seleção era indestrutível.
Depois da derrota, comecei a torcer para o Camarões de Roger Milla. Assim como tinha acontecido com a Seleção Brasileira, um simulacro de identidade logo se transformou numa fé inabalável no time africano; e o meu avô, enxergando o perigo de uma segunda decepção, tentou me explicar que o Camarões era a zebra – toda copa tinha a sua. Dificilmente o time passaria das quartas, me disse. Achei, outra vez, que todos ao meu redor estavam errados. É possível que eu tenha sofrido mais com os dois gols de Gary Lineker contra Camarões do que com o gol do Caniggia.
Lineker fez dois gols de pênalti no fim do jogo, virando o placar de 2 a 1 a favor de Camarões para 3 a 2 em favor da Inglaterra. A derrota foi atribuída à desorganização tática do time africano, à mania de o time inteiro ir para a frente atacar, deixando a defesa muito desprotegida. Eu era muito novo para julgar os méritos dessa acusação, feita reiteradamente por meu avô e meus tios naqueles dias. Mas a narrativa retornou nas copas que se seguiram. Sempre que algum time africano perdia (Nigéria contra a Dinamarca nas oitavas de 1998, por exemplo), culpava-se a falta de disciplina e organização; e lamentava-se tanto talento desperdiçado.
A tese do futebol africano como berço de potencialidades desperdiçadas não é tão distinta da ideia por trás do “verdadeiro futebol brasileiro”: a crença de que possuímos um talento inato e caótico, que, temperado por um pouco mais de disciplina e organização, nos tornaria indestrutíveis. E o “verdadeiro futebol brasileiro”, por sua vez, é um espelho da tese mais ampla e difusa do “verdadeiro Brasil”: a crença de que temos recursos e talentos abundantes, que, temperados por mais disciplina e organização, fariam com que o nosso desenvolvimento deslanchasse.
É uma tese pouco original. Dos seis países sul-americanos que conheço, em dois dos quais morei, só o Uruguai não possui uma variação similar. Lá, a neurose nacional parece ser de outra ordem – a de reiterar a virtude e o valor da insignificância geopolítica. A frugalidade é digna; a aspiração a ser potência um jogo de megalomaníacos. “O negócio é o seguinte: somos pequenos”, um ministro uruguaio disse certa vez numa palestra a que assisti em Montevidéu, no fim de 2008. Estava justificando uma política econômica qualquer, da qual já não me recordo mais. Mas me lembro bem do seu tom ao dizer a frase – era o tom de um orgulho melancólico, um dar de ombros que combinaria com outra frase, que ele nunca disse: “Olhe para os outros ao nosso redor, olhe para os seus planos mirabolantes fracassados.”
O “somos pequenos” uruguaio se traduz, no campo, em um “somos raçudos”; e a Copa do Mundo às vezes parece isso: uma tela onde nações projetam as suas ansiedades identitárias. Quando o Brasil perdeu de 7 a 1 para a Alemanha, em 2014, muitas análises tomaram a Alemanha como um time a ser imitado – um grupo que tinha supostamente pensado no bem coletivo, feito um trabalho sério, com um planejamento de longo prazo, que buscava a renovação e a modernidade. Às vezes era difícil saber se as análises estavam falando das seleções brasileiras e alemãs ou simplesmente do Brasil e da Alemanha, uma nação periférica e outra central; e é notável como, nas copas, frequentemente se toma uma coisa por outra.
Se tivéssemos goleado a Alemanha por 7 a 1 naquela semifinal, provavelmente não teríamos dado crédito ao esforço coletivo do time – teríamos exaltado o nosso talento caótico e inato, e até, possivelmente, os paroxismos de choro dos jogadores, a emoção bem brasileira que botaram em campo. Ao mesmo tempo, é impossível imaginar algum jornalista alemão extrapolando uma análise futebolística para um comentário mais geral, pedindo para a Alemanha se espelhar mais na criatividade brasileira e deixar um pouco de lado a sistematização e a organização excessivas.
“A passionalidade dos italianos”; “a frieza germânica”; “o talento africano”; “o verdadeiro futebol brasileiro”. Essas frases, ditas com certa frequência por comentaristas, cristalizam clichês nacionais. Na Copa do Mundo, é impossível escapar dessas narrativas fechadas, e as evidências futebolísticas dos poucos jogos (a Alemanha sofreu para ganhar da Argélia nas oitavas em 2014; depois teve um jogo blasé contra a França nas quartas) parecem sempre secundárias em relação à ideia fixa.
“Tem que torcer contra a Argentina” foi a frase que mais ouvi depois da eliminação de Camarões. Mas eu comecei a torcer pelos empates. Gostava de ver as decisões por pênaltis; queria que todas as partidas terminassem assim. Tive alguma sorte, porque a Copa de 1990 teve um índice baixíssimo de gols, com muitos empates na fase dos mata-matas. A final terminou com um árido 1 a 0 da Alemanha contra a Argentina – uma partida decidida também por um pênalti. Hoje não gosto de decisões por pênaltis, e a razão pela qual não gosto deve ser a mesma pela qual antes eu gostava: é um jeito um pouco infantil e absurdo de resolver uma partida.
Não consegui torcer para a Alemanha naquela final, como os meus primos fizeram. A ideia de não ceder a pressões coletivas – e de não vender barato uma preferência – me pareceria mais e mais romântica com o passar do tempo; mas seria falso atribuir um sentimento tão nobre à decisão de ficar do lado oposto da família naquele ano. O futebol da seleção alemã era insosso; e Lothar Matthäus, que todo mundo tratava como um gênio, me parecia um jogador de várzea quando comparado a Maradona. Torci contra a Alemanha porque eu gostava do Maradona. Não admiti isso para ninguém na época, talvez nem para mim mesmo, porque embora eu ainda fosse muito criança, entendia vagamente a blasfêmia implícita na preferência. Pouco me importava que o chamassem de cheirador – é até provável que esse rótulo (algo enigmático àquela altura) tenha aumentado o seu magnetismo aos meus olhos.
“São uns babacas, mas eles têm muita raça”, o irmão mais novo da minha mãe, ele mesmo bom de bola, dizia da Argentina, num tom de admiração reprimida. Essa linguagem metafísica dos comentaristas (“raça”, “força da camisa”, “tradição”) era absorvida por todos, e até as crianças a reproduziam com confiança professoral. A linguagem, a repetição maníaca dos estereótipos nacionais, e os rituais das torcidas – hinos cantados em coro; rostos pintados; um mar de bandeiras na arquibancada – evocavam um tribalismo que, em qualquer outro contexto, pareceria mais ameaçador e sombrio. O meu avô (e o Luciano do Valle do VHS) tinha me contado sobre a “tragédia nacional” no Maracanã, o gol fatal de Ghiggia em 1950 e o choro da multidão. No dia da derrota para a Argentina no sítio, eu mesmo tinha visto duas pessoas com lágrimas nos olhos.
Mas as lágrimas se dissiparam rapidamente. Logo todos escolheram países novos aos quais aderir; eu não fui o único a torcer por Camarões. E notei que a frase “tem que torcer contra a Argentina” não era uma imposição férrea, como eu a tinha interpretado da primeira vez, mas apenas uma sugestão jocosa. No dia da final, lembro que muitos se irritaram com a sonolência das duas seleções. O meu tio, o mesmo que apontara o dedo para Caniggia com raiva, agora fazia uma súplica contraditória. “Faz alguma coisa, Maradona”, dizia, rendido no sofá, “se você não fizer nessa merda ninguém mais faz.”
Eu começara a Copa de 1990 com o intuito de aderir a um sentimento nacional; eu a terminara torcendo para a equipe rival, a mesma que havia eliminado a Seleção que eu tanto amava e romantizava. Esse trajeto esquizofrênico não me parece hoje tão particular à minha experiência pessoal de confusão identitária e geográfica. Parece algo mais ligado à própria natureza da Copa do Mundo – um torneio paradoxal que, ao mesmo tempo que fetichiza clichês nacionais, estimula, de forma oblíqua mas pungente, uma identificação com o outro. Nenhum torneio consegue unir tão bem paroxismos nacionalistas e uma leveza vagamente cosmopolita, com alianças mercuriais e simpatias móveis, às vezes baseadas em nada mais que um sufixo interessante (em 1994, descobri que muitos sobrenomes búlgaros terminavam em “ov”).
Com o passar do tempo, me dei conta de que a minha admiração por Maradona, nascida contra a minha vontade, não era tão rara assim. E a primeira vez que visitei Buenos Aires, não fiquei surpreso ao notar que muitos argentinos sabiam detalhes pessoais de Ronaldinho Gaúcho ou Roberto Carlos (detalhes pedantes, como o nome completo de cada um no rg), e que nutriam uma admiração ansiosa pelos jogadores brasileiros e pela Seleção.
Para uma criança que se interessa por futebol, a Copa do Mundo é menos a experiência de rituais atávicos do que o primeiro contato com o que está distante. O estrangeiro abstrato se torna concreto pela primeira vez, e há um fascínio incontornável em trocar as descrições estéreis dos livros didáticos de história e geografia por algo de carne e osso. Antes de ouvir o nome de Eugène Ionesco, admirei os passes longos e os chutes de Gheorghe Hagi na Copa de 1994; antes de saber quem eram Hitler ou Nietzsche, soube quem eram Matthäus e Völler. Na tradução televisionada do hino da Holanda, notei que o narrador do hino jurava honra ao rei da Espanha – uma contradição aparente que por muito tempo me confundiu. Primeiras impressões nunca são triviais, sobretudo quando vêm a seco, sem o embrulho explicativo de adultos (para o bem e para o mal, nenhuma criança se deparará com Hitler ou Nietzsche sem algum filtro).
Essa descrição pode soar tão sentimental como a de um narrador da copa; mas, rigorosamente, não existe torneio que suscite os mesmos efeitos. A Olimpíada, um evento mais explícito em seu intuito de – por assim dizer – unir povos irmãos, é mais porosa a ranços políticos, boicotes, punhos em riste. Há a neurose competitiva das potências por estarem sempre à frente no quadro de medalhas, os grandes investimentos dos regimes autocráticos que querem se provar: os símbolos são mais carregados, e a atmosfera de união, mais falsa.
A memória de edições passadas das olimpíadas é quase sempre ofuscada ou definida por algum momento de significado político: o gesto de Jesse Owens em 1936; as tensões da Guerra Fria. A atmosfera peculiar e benigna da copa tampouco pode ser atribuída ao futebol em si. Basta pensar em como os mesmos rituais e tribalismos fogem ao controle em partidas entre clubes, e frequentemente descambam para cantos preconceituosos e violência.
Talvez seja o formato da copa que permita um equilíbrio entre o fetiche nacionalista e o cosmopolitismo (vago, necessariamente imperfeito, mas também vigoroso). Mesmo enredado em clichês culturais incontornáveis, o torneio estimula certa balança de poder – ele é infrequente demais para que um só país o domine por longos períodos, e curto o suficiente para que torcedores mantenham o interesse após a eliminação do seu time. Os poucos jogos de cada seleção e o sistema de mata-mata diluem a correlação entre investimento monetário e sucesso, vedando o torneio às ambições performáticas das grandes potências (o “Project 2010”, um programa de incentivo e injeção monetária criado pela federação norte-americana de futebol em 1998, para que a seleção se tornasse campeã mundial, obviamente não deu certo).
Mas essas especulações formalistas não capturam a atmosfera peculiar e um pouco contraditória do torneio – essa mistura de letargia prazerosa, de curiosidade ingênua pelo que é distante, com a intensidade fanática de uma causa nacional (as lágrimas da multidão no Maracanã também se dissiparam rápido, imagino, mas a ninguém ocorreria dizer que eram lágrimas de crocodilo). É irônico que um torneio tão misteriosamente distante da política encontre as melhores analogias precisamente na política. Em seu poder de suspender o cotidiano e parar um pouco o tempo, em sua intensidade sincera e ao mesmo tempo efêmera, a copa lembra um pouco uma passeata, os primeiros estalos de um movimento de rua que depois definha. É uma espécie de utopia.
II
Apesar de morar metade da minha vida fora do país, a única copa que não assisti no Brasil foi a de 2010. Nessa época, eu vivia e trabalhava na Inglaterra. Em maio daquele ano, uma eleição nacional tinha dado uma vitória apertada aos conservadores ingleses que, sem conseguir maioria no Parlamento, tiveram de se aliar ao Partido Liberal Democrata para formar um governo. Foi uma eleição estranha. No trabalho, as pessoas falavam pouco sobre o evento, e jamais diziam em quem iriam votar. Essa reserva fazia parte dos costumes do lugar; mas eu também via algo a mais na reticência.
Eu trabalhava num ambiente muito parecido com o ambiente jornalístico, formado em parte por ex-jornalistas – fazíamos consultoria política e previsões eleitorais. Os profissionais eram, em sua maioria, ingleses que votavam no Partido Trabalhista, embora houvesse também conservadores no alto escalão. Talvez seja paranoia minha, mas interpretei algumas daquelas reticências e silêncios como uma forma de dizer: mesmo que eu vote na esquerda outra vez, tenho minhas reservas agora.
Quando a copa começou em junho, o tempo parou, como sempre. O clima de tensão pós-eleitoral, intensificado pelo fato de nenhum partido ter obtido maioria, evaporou, e todo mundo fingiu trabalhar por um mês, movendo-se primeiro discretamente, e depois de forma descarada entre as tevês espalhadas pelo escritório. A neurose dos torcedores da Inglaterra com a Copa do Mundo é das mais peculiares. Por um tempo, zombam de si mesmos, com o humor autodepreciativo costumeiro, ridicularizando a própria seleção e fazendo chacota dos tabloides mais vulgares, que se arriscam a sugerir um triunfo. Faltando uma ou duas semanas para a copa começar, alguma chave vira, e o que era uma descrença geral na seleção se torna um ardor tímido, falsamente humilde – nasce uma crença contida de que, dessa vez, dá para ganhar. Correndo o risco de interpretar excessivamente, acho que um ritual tão complicado só poderia surgir num lugar onde se misturam a culpa e o orgulho mudo de ser um ex-império.
Alguns meses antes da eleição e da copa, no fim de 2009, Nick Griffin, o então líder do British National Party (BNP), um partido britânico de extrema direita, foi convidado para um programa televisivo da BBC, o Question Time. Uma espécie de Roda Viva com vários convidados, o Question Time reúne personalidades e políticos que debatem entre si e respondem a perguntas de uma plateia ao vivo. O critério para convidar Griffin tinha sido um ligeiro aumento na representatividade do BNP no Parlamento. Com mais cadeiras, os produtores julgaram justo chamá-lo para participar do programa, gerando muitas críticas de ativistas – a emissora foi acusada de dar plataforma nacional a ideias fascistas. No dia do programa, os pubs do bairro em que eu morava, no norte da cidade, ficaram todos lotados, assim como ficariam nos jogos da copa alguns meses depois. Eu também fui a um pub assistir ao programa da BBC com amigos. A plateia – formada por hipsters, beberrões locais, alguns casais jovens e outros de meia-idade – oscilava entre a vergonha alheia e a curiosidade pela performance de Griffin; todos estavam prontos para se chocar, ofender e xingar o fascista. Se bem me lembro, o programa bateu naquela noite o seu recorde histórico de audiência.
Tenho três grandes amigos de Londres, o que me parece bastante pelos cinco anos que passei lá. Um deles, negro, nasceu em Trinidad e Tobago e é filho de uma jamaicana. Se formou em física, com graduação, mestrado e doutorado pelo MIT, Stanford e Cambridge, e está na cidade há mais ou menos vinte anos; é sócio de um fundo de investimentos voltado às startups de tecnologia. Sei pouco sobre a sua família, mas tenho a impressão de que tem dinheiro. Outro amigo meu, também negro, é fotógrafo. Nasceu em Londres, filho de um pai nigeriano e mãe de Trinidad e Tobago, e passou a vida inteira na Inglaterra. Com origem social e formação mais modestas (graduação numa universidade de Manchester), trabalhou como fotógrafo freelancer por muito tempo até conseguir um emprego fixo numa loja multimarca famosa no Reino Unido, que vende roupas pela internet. O terceiro dos meus melhores amigos é branco, nascido na costa inglesa, com mãe e pai também da costa inglesa, da classe média-média, por assim dizer. Trabalhou um pouco no mercado financeiro, um pouco em relações públicas, depois tentou abrir um negócio que não deu certo; trocou de emprego muitas vezes e, já depois dos 30 anos, pensou até em estudar direito. No fim, mudou-se para a Costa do Marfim, no oeste da África, onde hoje vive trabalhando numa multinacional que comercializa leite em pó.
Toda amostra demográfica tem seus limites – mais ainda quando se trata de apenas três pessoas. Mas, quando penso nesses amigos e em outros de Londres, vejo um esboço impressionista do que a cidade em certo momento quis ser, ou foi. Sob o governo trabalhista de Tony Blair e Gordon Brown, sob a prefeitura do esquerdista Ken Livingstone (“Red Ken” é o apelido famoso); e depois, a partir de 2008, sob a prefeitura do conservador Boris Johnson (àquela altura ainda aparentemente moderado), Londres era um mexidão de multiculturalismo vibrante e dinheirama ansiosa, ou multiculturalismo ansioso e dinheirama vibrante, com empregos sempre instáveis, ora promissores, e muita desregulação financeira. Muitas possibilidades estavam aparentemente ao alcance de todos, e ao mesmo tempo muito distante de todos. Os preços dos imóveis e dos aluguéis subiam e subiam – culpa dos xeques e dos magnatas do petróleo russo, com aquelas casas imensas em Kensington, alguns diziam, ressentidos. Como em toda economia capitalista, quase todo mundo se dava mal ou ficava na mesma, e alguns poucos escolhidos se davam bem. Mas era impossível não se nutrir das histórias dos que se davam bem, porque elas eram concretas, palpáveis – você cruzava com elas em qualquer restaurantezinho ou pub. Certa noite, um amigo do trabalho me apresentou a uma amiga sua que acabara de deixar o emprego. Largara o seu cargo mal pago numa ONG e começara a escrever. Agora tinha finalmente vendido o seu primeiro romance por 40 mil libras. 40 mil libras!, pensei. E por um romance!
Não é o caso de embarcar na nostalgia. Era uma atmosfera instável. Havia certo frisson, certa ambição econômica e intelectual, desejos e ressentimentos misturados em proporções quase idênticas. No meio em que eu vivia, trafegando entre a classe média e a classe alta londrina, era dificílimo dizer quem era o imigrante de primeira geração, de segunda geração, e quem era o suposto local, o da gema – o que me faz duvidar, muitas vezes, da solidez ontológica dessas definições.
Na Inglaterra, assim como em outros países da Europa e nos Estados Unidos, imigrantes são quase sempre retratados como refugiados, vindos de um lugar inóspito para beber na fonte da grandeza libertária do Ocidente. É certo que muitos imigrantes se encaixam nessa situação de fuga ou exílio forçado, e esses são os que merecem mais atenção. Mas é inegável, também, que essa caricatura do imigrante estropiado faz tanto a direita como a esquerda dos países ricos se sentirem bem, seja pelo viés paternalista-acolhedor (na esquerda), xenófobo (na direita), ou narcísico, indulgente com a sua autoimagem (na direita e na esquerda). É uma caricatura que enfatiza as diferenças entre o imigrante e o suposto local, e que rejeita qualquer ambiguidade na sensação de pertencimento – como se a única escolha a ser feita fosse sempre entre uma vila em chamas e uma pólis perfeita. Os outros imigrantes, sobretudo os de classe média e alta, com maior educação formal, mais ambiciosos e mais céticos quanto às benesses do país adotivo, mais seculares em geral, incertos sobre a que país devem maior lealdade (se é que devem lealdade alguma), raramente são mencionados. Qual seria o custo existencial de incluí-los na narrativa? Que grau de crise identitária tal complicação traria à autoimagem desses países?
Penso no meu amigo de Trinidad (certamente o que tinha mais dinheiro entre nós), que às vezes passava um gel denso no seu afro, para amansá-lo e ir para o escritório do fundo de investimentos. A certa altura, ele parou de fazer isso, e tenho a impressão de que também começou a soltar mais o seu sotaque, e que havia certa autoconsciência nessa tentativa de recuperar os tons de sua infância em Port of Spain. Mas o fato de que uma pessoa como ele, versado em história e erudito, tenha amansado o cabelo por tanto tempo, mostra que ele percebia o peso simbólico que carregava consigo no seu ambiente de trabalho; um ambiente supostamente progressista. Depois que ele virou sócio, me contava do susto que alguns americanos, ingleses e franceses brancos levavam quando iam pedir dinheiro para os seus negócios. Treinados desde cedo para afetarem discrição e cordialidade, tinham dificuldades em disfarçar o desconcerto quando viam um negro relativamente jovem, de afro. Ele tinha uma piada pronta para essas ocasiões; uma piada ambígua e perfeita, que poderia tanto gerar tensão como fazê-la evaporar. “Vocês todos acharam que eu era mais alto, né?”
Não me lembro de quem estava comigo na noite em que Griffin foi ao programa da BBC. Lembro que foi divertido vê-lo ser devorado pelos outros debatedores e pela plateia; lembro que bebi muito. A cada resposta humilhante que algum participante dava a Griffin, berros ecoavam no pub, e algumas pessoas até entoavam cantinhos, um pouco como numa partida de futebol. Mas havia também um desconforto no ritual. Todos sabiam que o Partido Trabalhista estava nas cordas, e que provavelmente perderia a eleição em alguns meses. Um dos participantes do debate televisivo da BBC era Jack Straw, então ministro da Justiça de Gordon Brown. O desespero e a ansiedade de Straw para atacar Griffin e ganhar pontos com a plateia era um pouco obsceno, um pouco triste. E se me lembro da gritaria e do clima de confraternização daquele dia, me lembro sobretudo do silêncio desconfortável, das palmas esparsas da plateia do programa – e de nenhuma vaia – quando Griffin criticou a imigração de muçulmanos para o país.
Recentemente, em 2017, Griffin disse que planeja sair da Inglaterra[1]. Quer viver na Hungria, onde o governo de extrema direita de Viktor Orbán reconfigurou o ambiente doméstico (a piauí relatou o processo em reportagem de Rafael Cariello, na edição 127). Sobre a contradição de um xenófobo que decide sair do país, Griffin diz apenas esperar que a Hungria receba só os “europeus ocidentais” genuínos, e que mantenha longe “os europeus liberais que trouxeram a Europa Ocidental para o estado atual” em que ela se encontra.
O avanço da xenofobia e do nacionalismo pelo mundo nos últimos anos faz Griffin hoje parecer uma figura menor, tragicômica. Orbán na Hungria, Brexit no Reino Unido, Trump nos Estados Unidos, o whitewashing do antissemitismo na Polônia, os ganhos da direita na Itália, Alternative Fu¯r Deutschland (af d) na Alemanha, o regime nacionalista hindu de Narendra Modi na Índia – a lista é longa.
É óbvio que existem diferenças entre esses governos e esses políticos; é óbvio, também, que todos bebem na fonte da xenofobia e do fervor nacionalista. Muitas pessoas devem ter algum momento íntimo em retrospecto, alguma lembrança privada em que sentiram que uma onda assim poderia avançar. Para mim, foi naquela noite do programa da BBC, no pub, naqueles poucos segundos de silêncio, em que o comentário malicioso de Griffin não foi totalmente rejeitado.
Escrevendo sobre a obra de V. S. Naipaul, num ensaio de 1980 intitulado “Bitter dispatches from the Third World” [“Relatos amargos do Terceiro Mundo”], Edward Said argumenta que a “raiva, o senso de perplexidade desesperada, o sarcasmo amargo” sempre estiveram presentes como possibilidade latente na obra do escritor, desde o começo de sua carreira. Said relaciona isso ao tema central de Naipaul, que “sempre foi a extraterritorialidade – o estado de não estar nem aqui nem lá, mas sempre entre as coisas”. Espécie de apátrida em busca de uma origem, de uma completude, Naipaul ao longo do tempo se viu preso num “mundo de reflexos e réplicas inautênticas”, e o seu tom, segundo Said, foi sempre o da amargura da derrota. Ele escrevia de um ponto de vista irônico, do ponto de vista “do fracasso ao qual parecia estar resignado”.
O tom de Said no ensaio é de decepção melancólica – ele diz escrever com “dor e admiração”, e reitera, mais de uma vez, que Naipaul é um “grande escritor” (embora não discorra sobre os aspectos que considera louváveis em sua escrita). A amargura de Naipaul, a sua dureza com os países do chamado “Terceiro Mundo”, diz Said, legitima a visão de muitos brancos liberais americanos e europeus, que enxergam os problemas políticos desses países como fracassos internos, chagas que eles deram a si mesmos. Em outras palavras, Said acusa Naipaul de dissipar a culpa de muitos progressistas do norte, e de se aliar (inconscientemente ou não) ao legado imperialista.
Mas a atitude crítica e a dureza de Naipaul nunca foram restritas só aos países pobres. Há, no corpo e nos interstícios de sua obra, ensaios e passagens inteiras em que ele joga o seu ácido corrosivo sobre o hemisfério Norte, questionando narrativas nacionais aceitas, e mostrando o mesmo ceticismo de sempre com a construção da identidade dos países mais ricos. A passagem mais estimulante de An Area of Darkness [Uma Área de Escuridão], o seu primeiro relato de viagem sobre a Índia, escrito em 1964, não diz respeito à Índia, mas à Inglaterra. Ao longo de mais de trinta páginas, Naipaul mostra como a ideia (o mito nacional) do império inglês sufocou a escrita do país (a boa escrita, para Naipaul, é a habilidade de olhar para a realidade concreta sem demasiados preconceitos).
Ele traça uma deterioração nas narrativas de viagens inglesas, do ponto alto de Darwin em 1832, decaindo para Trollope e Kingsley, até chegar no que ele considera o ponto baixo de Froude, em 1887.[2] A razão para a deterioração, Naipaul argumenta, é que os escritores passaram a reportar não a partir de si mesmos, mas a partir de uma ideia abstrata de Englishness. O desdém de Naipaul por essas mistificações nacionais, pelos ofuscamentos que esses conceitos identitários rígidos criam, é palpável. Ele diz que nenhum escritor monumental inglês surgiu depois de Dickens (o último a olhar para Londres de fato). Naipaul escreveu também sobre os Estados Unidos, e poucos autores foram mais precisos ao captar a automistificação teatral do meio literário nova-iorquino (ao acompanhar a campanha de Norman Mailer para a prefeitura, Naipaul notou a sujeira de Nova York em certas partes da cidade, o lixo espalhado, e a descreveu como similar a Calcutá, uma comparação que deve ter irritado alguns locais orgulhosos).
Ao ignorar essas partes da obra extensa de Naipaul, Said ironicamente cai na sua própria acusação, juntando-se aos leitores americanos e europeus que se recusam a encarar tais críticas como um convite à autorreflexão. Críticas de Naipaul à Inglaterra ou aos Estados Unidos são lidas apenas como “Naipaul sendo Naipaul”, o provocador jocoso; críticas de Naipaul a países mais pobres são lidas como parte de sua metafísica, de sua visão literária.
James Baldwin atribuía muito da persistência do racismo americano a brancos progressistas que tinham medo de olhar para si mesmos, de quebrar a complacência e fazer o duro autoexame que reconfiguraria o mundo em que eles vivem, tirando muitos de seus privilégios. Há algo disso na recusa das esquerdas britânicas e americanas em olhar com mais ceticismo para os seus mitos nacionais. Uma crítica a Trump não precisa ser sempre acompanhada de uma citação a Lincoln. No programa da BBC, a plateia criticava a maneira pela qual Griffin tentava se “apropriar” do legado de Winston Churchill, como se não houvesse relação alguma entre o nacionalismo de direita e o triunfalismo pós-guerra do país.
“Raiva” e “sarcasmo amargo” – traços que Said vê em Naipaul – são termos aplicáveis aos movimentos nacionalistas, que não vivem num plano sólido e irrevogável como imaginam; pelo contrário, estão sujeitos à mesma areia movediça identitária, aos mesmos sacolejos políticos e alianças de conveniência de qualquer outro grupo (a ironia trágica dos nacionalismos é que eles todos se parecem muito).
Griffin hoje elogia a Hungria, país de uma região quase sempre desprezada pela extrema direita britânica (a mão de obra barata polonesa sempre foi um alvo do discurso anti-imigração). Na Itália, a Liga Norte muda de nome para tirar um pouco a pecha de secessionista e tentar cooptar o sentimento xenófobo no sul do país. Novos aliados virão, novos inimigos também. Talvez o tom amargo de Naipaul não venha do fato de que ele vive num “mundo de reflexos e réplicas inautênticas”, mas sim da descoberta de que essa é a condição humana.
III
Em retrospecto, parece incrível que a camisa da Seleção Brasileira tenha demorado tanto tempo para ser usada como símbolo pela direita nacionalista brasileira. Esse uso pode ser considerado de mau gosto, ou até nefasto, mas trata-se, no fim, de uma apropriação política bastante óbvia. Para cantar um hino antes de uma partida em 2018 sem sentir desconforto será preciso ou aderir a essa visão ou criar uma espécie de redoma, puramente estética, para isolar o evento.
Nas últimas semanas, em meio a tensões diplomáticas entre os governos inglês e russo, surgiram boatos sobre um possível boicote da Inglaterra à Copa do Mundo. A Islândia, mais decidida que os próprios aliados, já informou que os seus oficiais de alto escalão não irão ao evento – um gesto amigo aos ingleses. Em abril, sessenta membros do Parlamento Europeu de dezesseis países diferentes lançaram uma petição pedindo para que todos os Estados-membros da União Europeia que estejam participando da Copa do Mundo retirem as suas seleções do evento, em protesto contra as ações do regime de Vladimir Putin na Síria e na Crimeia, e o suposto envolvimento de seu governo no assassinato de um ex-espião russo, no interior da Inglaterra. É improvável que a copa sofra uma baixa significativa de seleções. Mas, em tempos turbulentos, é difícil manter-se numa zona platônica rarefeita, longe das tensões do mundo. O recurso à redoma e a distância esteta em momentos assim podem se transformar também numa forma de hipocrisia.
O avanço nacionalista e xenófobo dos últimos anos deixa mais à mostra a fragilidade da utopia da Copa do Mundo – essa mistura peculiar em que um cosmopolitismo benigno se une a um nacionalismo intenso mas inofensivo. Talvez haja aí um dilema irreconciliável, que Isaiah Berlin chamava de escolha trágica. É difícil criar um multiculturalismo vigoroso e genuíno sem um desmonte – ou pelo menos uma autocrítica mais rigorosa – de alguns fetiches ligados ao Estado-nação, fetiches mobilizados não só pela extrema direita, mas também adotados, em tom mais brando, em outras partes do espectro político.
Quando se discute o caminho traçado entre a performance de Griffin e a vitória do Brexit na Inglaterra, surge invariavelmente o argumento de que os eleitores brancos da classe trabalhadora foram esquecidos pela esquerda e pelo Partido Trabalhista, que acabou por focar demais os seus esforços no estímulo ao multiculturalismo.
A premissa de que os ganhos e perdas de brancos pobres devem conflitar com os ganhos e perdas de imigrantes pobres é perniciosa, um truque frequente dos tabloides de lá, que acaba por estimular justamente essas percepções de contrastes nos seus leitores – transformando assim uma premissa racista numa espécie de profecia autorrealizável. Há também uma simplificação, pois não se faz um Brexit só com um segmento da população (assim como não se elege um Trump só com o apoio de supremacistas brancos), e os ganhos recentes da direita xenófoba também vieram das classes média e alta do país.
Escrevi que não havia nostalgia na minha descrição daqueles anos em Londres, antes que os conservadores tomassem o poder, mas não é verdade. Eu gostava da atmosfera instável da cidade – era possível viver frugalmente e dignamente nela, sem grandes arroubos de gastança, mas também sem contar o dinheiro a todo momento; e alguma coisa nova acontecia todos os dias. Ainda romantizo a cidade, um pouco como fazia com a Seleção Brasileira quando vivia no hemisfério Norte. Mas agora sou adulto, e sei que encontrarei um lugar diferente quando voltar.
Não sou ingênuo – não ignoro a sorte de ter tido um emprego lá; tinha consciência da distância imensa entre a minha vida e a dos faxineiros brasileiros que haviam imigrado em condições piores (as nossas conversas tão amenas e informais no escritório devem ter parecido estranhas para os outros funcionários). Sei, também, que a distância entre as elites desses centros financeiros do mundo e as classes baixas cumpriu seu papel no refluxo populista (essa tensão, citada por tantos analistas como novidade, foi constatada por Rousseau há muito tempo – ele também, como Naipaul, uma espécie de intelectual deslocado, fermentando a cevada do Iluminismo para depois jogar água na cerveja; oscilando sempre entre a sedução do prestígio intelectual que lhe davam e os seus ressentimentos de origem).
O problema dessas abstrações, desses grandes argumentos, é que não deixam espaço para a subjetividade da experiência pessoal, talvez a única razão para escrever um ensaio. Foi a primeira cidade onde senti que certa confusão geográfica de berço era comum, quase um clichê – o que, paradoxalmente, criava comunidades genuínas de deslocados. Certo Natal, eu e mais seis amigos decidimos não voltar para os nossos países e cidades (se é que tínhamos países ou cidades), e nos juntamos para fazer um Natal sem família, sem passado. Suponho que isso também seja uma espécie de utopia.
Quando penso naqueles anos, não tenho raiva dos tabloides racistas, ou dos skinheads que eu às vezes via, meio disfarçados na multidão de Camden, como relíquias sombrias do fim dos anos 70 – muitos deles solitários, alguns com os braços impressionantemente finos e uma palidez estranha, como se estivessem malnutridos. Penso mais nas pessoas furtivas e silenciosas do meu escritório, antes alegres e convictas, depois se recolhendo, pouco a pouco, falando cada vez mais baixinho, até a voz sumir.
[1] Em 2014, Griffin se desentendeu com Adam Walker, atual presidente do BNP, e foi expulso do partido.
[2] Anthony Trollope, Charles Kingsley e James Anthony Froude foram intelectuais da era vitoriana que, entre outras obras, escreveram narrativas e relatos de viagem.
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