Melhor do que boliche e nado sincronizado, e os mesmos riscos da patinação no gelo FOTO: LIBRARY OF CONGRESS_PRINTS & PHOTOGRAPHS DIVISION [BIBLIOTECA DO CONGRESSO AMERICANO_DIVISÃO DE FOTOGRAFIA]_LC-B2-2371-13
Damas, ao ringue!
Cai a última trincheira masculina do olimpismo
Dorrit Harazim | Edição 36, Setembro 2009
Depois do esfarelamento do Muro de Berlim, em 1989, foi também na capital alemã, no mês passado, que veio abaixo outra barreira aparentemente inamovível. Reunidos na capital da Alemanha em 13 de agosto, os quinze integrantes da comissão executiva do Comitê Olímpico Internacional, o COI, aprovaram em votação secreta a inclusão do boxe feminino entre os esportes olímpicos. Das 26 modalidades que compõem o cardápio dos Jogos, o boxe era o único que permanecia blindado à participação feminina. Agora, já a partir de 2012, em Londres, moças estarão trocando socos.
O anacronismo machista, por andar na contramão do discurso oficial do COI, vinha embrulhado em arrazoados de natureza cultural e pseudomédica: o boxe feminino, assim como a maratona antes de 1984, poderia ser excessivamente lesivo para a saúde de damas e demoiselles.
Na opinião do inglês Mike Loosemore, da comissão médica da Federação Britânica de Boxe, é tolice supor que o esporte, na versão feminina, é mais perigoso do que quando praticado por homens. “É claro que se uma atleta entrar no ringue quando estiver grávida de mais de três meses haverá risco para o feto, assim como em qualquer outro esporte que envolva contato físico”, disse. Por isso, a Confederação Brasileira de Boxe, no artigo 138 de seu regulamento, exige que toda boxeadora forneça atestado negativo de gravidez antes de cada competição. A modalidade tem o mesmo índice de lesões na cabeça do que a patinação no gelo.
Último esporte a não ter embaralhado a diferença entre amador e profissional, o boxe olímpico não deve ser confundido com a modalidade milionária que imortalizou Muhammad Ali ou Mike Tyson. Não apenas pelas regras, que têm suas diferenças – a começar pelo capacete, obrigatório para os amadores. Os homens também são obrigados a usar protetor genital, permitindo-se uma faixa adicional para sustentá-lo, e as boxeadoras, que lutarão de camisetas de manga curta e elástico para prender o cabelo, poderão, opcionalmente, usar protetor de seios. No último campeonato mundial feminino, realizado na China no ano passado, nenhuma das 250 boxeadoras de 52 países sofreu qualquer lesão.
“O boxe amador mira mais na vitória por pontos, enquanto a versão profissional visa nocautear o adversário”, lembra o doutor Loosemore. De fato, no ringue olímpico muita coisa mudou desde que os romanos imprimiram uma dimensão gladiatória ao esporte – naqueles tempos os atletas usavam luvas turbinadas com pregos ou recheadas de chumbo, fazendo com que as lutas terminassem em morte. Hoje, o boxe amador mais se assemelha a um duelo de esgrima, no qual o atleta tem uma espada nas mãos, mas nem por isso pode furar o adversário. Os movimentos podem até ser de quem vai perfurar o outro, mas o que se almeja é chegar à vitória marcando mais pontos.
Os combates na classe Adulto Feminino são realizados em quatro assaltos de dois minutos, com um minuto de intervalo, enquanto a versão masculina tem o formato 3 x 3 x 1. “Certamente há homens que imaginam que vamos subir no ringue e começar a nos arranhar e morder”, diverte-se a loiríssima norueguesa Ingrid Egner, vice-campeã mundial de boxe amador que, quando não está treinando ou competindo, conclui seu doutorado em biologia molecular na Universidade de Oslo.
O COI ainda não definiu como serão alocadas as doze vagas para cada uma das três categorias femininas (mosca, leve e médio), mas não será surpresa se quatro vagas forem reservadas para a Europa, três para as Américas , três para a Ásia e as restantes para a Oceania e África. Para sorte de quem vai disputar uma vaga nas Américas, a maior potência continental da modalidade – Cuba – decidiu permanecer de fora do ringue de saias. Por uma dessas idiossincrasias do regime castrista, o país que no boxe masculino arrebanhou a colossal soma de trinta medalhas de ouro, vinte de prata e catorze de bronze desde 1968 (quase o triplo de ouros conquistados por brasileiros em todos os esportes desde a longínqua edição de 1920) ainda não considera o esporte adequado para mulheres.
Na votação de Berlim também foi aberto o caminho para a aprovação de dois novos esportes (golfe e rúgbi de sete jogadores) e a eliminação das candidaturas de outros cinco (beisebol, softbol, caratê, squash e patinação sobre rodas). A decisão final precisará ser ratificada por maioria simples pelos 106 membros da Assembléia Geral do COI, no próximo 2 de outubro, em Copenhague, Dinamarca, quando também será escolhida a sede dos Jogos de 2016 (que têm o Rio de Janeiro como favorito).
Numa defesa tortuosa das esquisitices do olimpismo, o presidente do COI, Jacques Rogge, assegura que “o rúgbi é universal, e traz para os Jogos o lado espetacular do esporte. Trata-se de um jogo no qual se vêem muitos pontos [Rogge não é propriamente um fanático do futebol], revezes e viradas”. Ele mesmo jogou o rúgbi clássico (quinze jogadores em cada time) pelo campeonato belga e deve achar eletrizante o formato mais enxuto, e portanto mais televisivo, de sete jogadores por equipe. “Pela sua característica universal, muitos países terão a chance de conquistar medalhas neste esporte”, arriscou.
Quanto ao golfe, que já foi esporte olímpico nos Jogos de Paris (1900) e St. Louis (1904) antes de ser nocauteado, o atrativo maior seria da mesma natureza que o trazido pelo tênis: o aporte de nomes milionários do circuito profissional, como o de Tiger Woods, para inflar o evento de supercelebridades. Juntos, o golfe e o rúgbi de 7 acrescentariam 204 atletas mulheres aos Jogos, o que é uma das metas do movimento.
Só que outra meta, inúmeras vezes reiterada pelo COI, é a de limitar o número de atletas a 10 500 por edição. Como o gigantismo é uma dor de cabeça permanente, ficou estabelecido que, para a incorporação de uma nova categoria, ou de um esporte novo, outros precisarão ser eliminados. Assim, para dar espaço às 36 boxeadoras que estrearão em 2012, uma das categorias masculinas deverá ser decapitada.
Para efeitos de marketing, o COI se orgulha de tocar essa dança de cadeiras olímpicas baseado no critério da universalidade de cada esporte. “Mas na prática”, sustenta o autor dos melhores compêndios sobre os Jogos, o americano David Wallechinsky, são outros os fatores determinantes: o quanto o esporte é televisivo e qual o peso político de seus proponentes dentro da organização. Se universalidade fosse mesmo decisiva, por que permanecem no calendário olímpico a canoagem, o nado sincronizado, o tiro ao alvo e as provas equestres? Nesse critério, o boliche e a sinuca deveriam integrar a família olímpica há tempos.
Nem o futebol escaparia do confronto com a universalidade: os únicos esportes que já produziram medalhistas de todos os continentes nas 29 edições dos Jogos modernos são o atletismo, o boxe e a natação.
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