Um mural em Santiago: “Necessitamos de uma Constituição que, ao contrário daquela que nos foi imposta a sangue, fogo e fraude pela ditadura, nasça na democracia, de maneira paritária” CREDITO: @PALOMARODRIGUEZ.CL_FOTO DE BASTIÁN CIFUENTES ARAYA (PERIODISTAFURIOSO)_2020
De volta para o futuro
A experiência radicalmente nova do Chile
Fernando de Barros e Silva | Edição 187, Abril 2022
De Santiago
Com a faixa presidencial cruzando seu peito, de terno azul e camisa branca, mas sem gravata, Gabriel Boric percorreu a Praça da Constituição sobre o tapete vermelho até a entrada do Palácio de La Moneda, a sede do governo chileno, no Centro de Santiago. Desviou algumas vezes do caminho para cumprimentar a multidão que se espremia dos dois lados, atrás de fileiras de cavaletes. Antes de se aproximar das pessoas, tirou a máscara do bolso do paletó e a ajustou no rosto. Fez selfies, recolheu mensagens de braços que se estendiam através das grades e se deteve para escutar o que lhe dizia uma ou outra pessoa no meio do tumulto. O uso da máscara, o gesto de acolhimento e a atenção ao que diz o outro, reunidos naquele momento, esboçam o perfil de um líder político que é exatamente o oposto do que se vê hoje no Brasil.
Depois de ser saudado pela guarda palaciana, acompanhar a execução do hino nacional e cumprir aquela etapa dos rituais da posse, Gabriel Boric quebrou o protocolo. Virando-se para a esquerda, saiu do tapete vermelho e caminhou até o extremo da praça, parando a poucos metros da estátua do ex-presidente Salvador Allende. Com um braço dobrado sobre a barriga e outro sobre as costas, curvou-se de maneira discreta diante da escultura em bronze de 3 metros de altura. O público exultou. Aos 36 anos, completados em 11 de fevereiro, exatamente um mês antes de sua posse, em 11 de março, Gabriel Boric Font já podia ingressar no Palácio de La Moneda como o presidente mais jovem da história do Chile.
A juventude em si mesma não quer dizer muita coisa. É a fase da vida que costuma ser associada ao inconformismo e à rebeldia, mas em termos políticos a energia que lhe é própria pode ser canalizada de muitas maneiras. No Brasil, por exemplo, as Jornadas de Junho de 2013 e seus desdobramentos, nos anos subsequentes, nas grandes manifestações populares pelo impeachment de Dilma Rousseff, resultaram na emergência de lideranças como os deputados Kim Kataguiri e Arthur do Val, o Mamãe Falei. Oriunda do Movimento Brasil Livre e congêneres, a institucionalização dos protestos – que haviam começado por grupos de esquerda contra o aumento da tarifa do transporte público – por aqui se fez pela direita, ancorada na retórica da antipolítica e em traços fascistoides. Acabou servindo como linha auxiliar da candidatura vitoriosa de 2018, que tinha (e tem) a ditadura militar como grande modelo e referência histórica.
(Modelo imperfeito, diga-se, porque teria deixado o serviço pela metade e seria preciso ainda matar “uns 30 mil”, incluindo na lista o então presidente Fernando Henrique Cardoso, conforme as declarações de Jair Bolsonaro em 1999. Modelar de verdade, na avaliação de Bolsonaro, foi a ditadura de Augusto Pinochet, a mais atroz da América Latina, que deixou mais de 3,2 mil desaparecidos ou assassinados, perto de 40 mil torturados e cerca de 200 mil exilados. “Pinochet fez o que tinha de ser feito”, comentou o então deputado Bolsonaro num programa de tevê, em 2015.)
O elogio ao ditador chileno não tem nada de casual. Depois da vitória do seu pai à Presidência, e ainda antes da posse, em dezembro de 2018, o deputado federal eleito Eduardo Bolsonaro esteve no Chile para reunir-se com a extrema direita local. Encontrou-se com José Antonio Kast, pinochetista ardoroso, que seria justamente o adversário derrotado por Gabriel Boric três anos depois, em dezembro de 2021. No primeiro turno, Kast ficou à frente de Boric por uma diferença apertada (27,9% a 25,8%). No segundo, acabou superado pelo candidato da Frente Ampla por 1 milhão de votos – diferença de quase doze pontos percentuais no pleito com a maior participação da última década desde que o voto facultativo foi implantado no Chile, em 2012. Boric recebeu 55,9% dos 8,4 milhões de votos válidos.
A esquerda que derrotou Kast em dezembro está longe de ser radical – no sentido de ser extremista –, mas é radicalmente nova. Se a expressão nova política tem alguma substância, não é para descrever o consórcio entre militares, políticos do Centrão, pastores evangélicos e gente com arma na mão que ela se aplica. Mas Boric é um fenômeno novo também no âmbito da esquerda. Mesmo antes de sua posse, esteve entre os primeiros a se manifestar quando a guerra eclodiu. Em seu perfil no Twitter, escreveu: “Do Chile, condenamos a invasão à Ucrânia, a violação de sua soberania e o uso ilegítimo da força.” Sua intransigência com governos autoritários também marcou o dia da sua posse. Convidou para a cerimônia a poeta e escritora nicaraguense Gioconda Belli, adversária do governo ditatorial de Daniel Ortega. “Este convite é muito importante para mim. Representa um gesto de estender a mão e reconhecer que quem está governando a Nicarágua hoje não nos representa”, disse Belli, na entrada da solenidade de transmissão do cargo. Além de Dilma Rousseff, que representava o PT, estava presente Anielle Franco, irmã da vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em 2018. Anielle foi ao Chile a convite de Boric.
A nova política chilena foi construída na última década a partir da ocupação das ruas, mas principalmente sobre a aposta de que, a partir da força das ruas, era preciso ocupar os espaços institucionais e mudar o sistema político por dentro para chegar a algum lugar consequente. “É um caso único na América Latina e talvez no mundo. Não tem nada a ver com essa ideia do Que se vayan todos! Eles escolheram o caminho da política, mas fora dos parâmetros da esquerda tradicional. Tem gente até na Malásia, na Indonésia e na Tailândia falando comigo para entender melhor o que está se passando no Chile”, me disse Pedro Abramovay, diretor para América Latina da Open Society. A vitória de Gabriel Boric e a Assembleia Constituinte em curso, que deve resultar na aprovação (ou não) de uma nova Carta Magna para o Chile ainda neste ano, são o ponto de chegada deste processo.
O ponto de partida está nas revoltas que eclodiram de 2010 em diante – em sintonia com os levantes da Primavera Árabe, que sacudiram o Oriente Médio e o Norte da África exigindo democracia, e o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, com palavras de ordem contra o poder financeiro e acento anticapitalista.
Naquele ano de 2010, Sebastián Piñera havia chegado à Presidência pela primeira vez. O Chile voltava a ter, desde a saída de Pinochet vinte anos antes, um governo orgulhosamente de direita, rompendo com a era da Concertación, o nome da aliança liderada pelos democratas-cristãos e pelos socialistas, que viabilizou a transição para a democracia. Havia no país uma insatisfação acumulada ao longo das últimas décadas com os custos do ensino. Sob Pinochet, a educação se reduzira a um negócio privado, e os estudantes de tempos em tempos faziam protestos contra as mensalidades abusivas e a favor da escola pública. O maior desses protestos ocorrera em 2006 e ficara conhecido como a Revolução dos Pinguins, em alusão ao uniforme dos alunos. Quando Piñera assumiu, a insatisfação dos jovens explodiu novamente nas ruas, com mais intensidade.
Camila Vallejo pertencia ao Partido Comunista e era presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile quando os protestos começaram, em 2011. Tinha então 23 anos. Giorgio Jackson, um ano mais velho, presidia a Federação de Estudantes da Universidade Católica na mesma época. Os dois hoje estão entre os ministros mais importantes de Gabriel Boric. Vallejo ocupa a Secretaría General de Gobierno. É chamada também de vocera, mas está longe de ser apenas a portavoz. Com funções um pouco distintas, o equivalente no Brasil do cargo que ela exerce é ocupado hoje pelo general Luiz Eduardo Ramos, um dos mais assanhados bolsonaristas entre os militares. O contraste entre as duas figuras não poderia ser maior – e não estamos falando, evidentemente, do piercing que Vallejo tem no nariz. Jackson, por sua vez, é o responsável pela Secretaría General de la Presidencia, a nossa Casa Civil, hoje sob a batuta ligeira de Ciro Nogueira, o maestro do Centrão.
Depois de liderar as revoltas estudantis, Vallejo, Jackson e o próprio Boric (que sucedeu a Vallejo na presidência da Federação de Estudantes da Universidade do Chile em 2012) se elegeram deputados federais por dois mandatos consecutivos, em 2013 e 2017.
Pouco antes da primeira eleição do grupo, em setembro de 2013, a piauí publicou um perfil de Camila Vallejo. Giorgio Jackson já então rebatia a posição disseminada entre os estudantes de que seus líderes não deveriam enveredar pela política institucional. Disse Jackson na ocasião à jornalista argentina Josefina Licitra:
Alguns companheiros nos criticam por querermos entrar no Congresso, mas é lá que se trava a batalha. Mais de 90% dos parlamentares estão tentando a reeleição, não querem sair de lá. E me diga: quem é que vai querer sair por conta própria? Nós é que temos que tirá-los. Fomos nós que os colocamos lá, e isso não foi um presente. Quando o governo diz que é impossível oferecer educação gratuita no Chile porque não há dinheiro para isso, respondemos: Como não? Somos um país com renda de 20 mil dólares per capita, só é questão de fazer uma reforma tributária, porque essa média de 20 mil dólares só é alcançada por menos de 10% da população do Chile. E mais: só 1% da população chilena acumula 30% da renda nacional. Então, claro, quando falam em média, escondem essa desigualdade e dizem que no Chile estamos super bem, mas o que ninguém diz é que 50% dos chilenos ganham menos de 500 dólares por mês.
A reforma tributária é justamente a prioridade do novo governo, a sua primeira batalha no Congresso. Boric faz questão de falar em “pacto tributário” quando alguém chega com a palavra “reforma”. Numa entrevista, agradeceu à repórter da BBC quando ela frisou na pergunta que pacto significa “um acordo com todos os setores políticos”. “É bom que você perceba isso, porque é ao que aspiramos”, disse Boric. Em seu discurso de posse, pronunciado no balcão do La Moneda diante da praça lotada, foi enfático: “Quando não há distribuição da riqueza, quando a riqueza se concentra nas mãos de uns poucos, a paz é muito difícil.”
A verdade é que o “pacto” almejado por Boric parece uma realidade distante. O governo, por ora, não tem os votos necessários para aprovar sua reforma tributária no Congresso. Boric tem minoria nas duas casas do Legislativo. Está consciente do que isso pode representar. À BBC, disse: “O grande risco para nosso governo é não conseguir ampliar nossa base social de apoio para além das fronteiras atuais. Se ficarmos apenas com o que somos hoje, não conseguiremos fazer as transformações que queremos.”
O nó a ser desatado no Congresso é apenas parte do problema. O governo não esconde que o êxito de seu programa depende em boa medida da nova Constituição. Jackson, o principal articulador político de Boric, é muito claro a esse respeito: “Boa parte das reformas que defendemos tem como obstáculo a atual Constituição. Ter uma nova Carta é uma condição sine qua non para levar essas agendas adiante.”
A Constituição em vigência é uma herança de Augusto Pinochet. Foi promulgada em 1980, depois de um plebiscito manipulado pelo ditador, com dois objetivos simultâneos. Um era dar legitimidade ao experimento ultraliberal então em curso (um dos Chicago Boys que atuaram no país nessa época foi Paulo Guedes, que deu aula na Universidade do Chile, então sob intervenção militar). O outro era criar ferramentas institucionais para impedir que a esquerda pudesse retornar ao poder. A democracia, no dia em que voltasse ao país, deveria ser uma “democracia controlada”. O fantasma de Allende e da Unidade Popular assombrava o facínora.
O país foi privatizado (educação, saúde e previdência passaram a ser geridas pela lógica mercantil), direitos trabalhistas foram garroteados, criaram-se os chamados enclaves autoritários, apenas em parte banidos (a figura do senador vitalício, criada para dar uma cadeira a Pinochet no parlamento, está entre os entulhos eliminados).
O golpe de Estado chileno completa meio século em setembro de 2023. Pinochet permaneceu no poder por dezessete anos – de 1973 a 1990. Depois dele, e antes de Gabriel Boric, o país elegeu cinco presidentes diferentes em sete ocasiões – Patricio Aylwin (1990-94), Eduardo Frei (1994-2000), Ricardo Lagos (2000-06), Michelle Bachelet (2006-10 e 2014-18) e Sebastián Piñera (2010-14 e 2018-22). Nenhum dos antecessores de Boric teve energia, vontade ou força para enterrar a Constituição forjada na ditadura. Bachelet, em seu segundo mandato, tinha esse propósito. Mas fracassou.
Essa dificuldade de enterrar as ditaduras depois que elas são oficialmente extintas é recorrente na América Latina. A ascensão de um tipo como Bolsonaro e tudo o que ele remove das profundezas do inferno do país, trazendo à tona o pior de nós, ou aquilo que não fomos capazes de superar como sociedade, é algo que um brasileiro (ou este brasileiro) não consegue tirar da cabeça enquanto se depara com a beleza e as incertezas do momento político chileno.
Por estranho que pareça, a eleição de Gabriel Boric e a Constituição em gestação ainda fazem parte do que o escritor e dramaturgo Ariel Dorfman chamou de “o longo adeus a Pinochet”. O título original do livro, lançado há vinte anos, é Más Allá del Miedo: El Largo Adiós a Pinochet. Dorfman, um argentino naturalizado chileno que participou do governo Allende, escreve sob o impacto do período que vai de 1998 a 2001, desde o instante em que Pinochet é detido em Londres, acusado de cometer crime contra a humanidade, até o momento em que a Justiça chilena declara a insanidade mental do ditador. O livro, no entanto, vai além desse capítulo da história chilena, misturando, de uma perspectiva muito pessoal e com prosa de escritor, memórias íntimas, registros jornalísticos e reconstituição histórica.
Logo nas primeiras páginas, Dorfman descreve o momento em que retornou, depois de quase vinte anos, ao Estádio Nacional do Chile, em Santiago, que a ditadura havia transformado, nos dias seguintes ao golpe, num “campo de concentração gigantesco”. Ali foram presos e interrogados milhares de dissidentes do regime, muitos deles torturados e executados. Dorfman tinha voltado ao Chile em 1983, depois de dez anos de exílio, mas só quando Pinochet deixou o poder teve coragem de pisar de novo no Estádio Nacional, “espaço onde havia presenciado tantos eventos nos tempos democráticos de antes, onde eu mesmo havia participado de competições atléticas estudantis”.
Eu cito:
Em 12 de março de 1990, o dia seguinte àquele em que Pinochet entregou a Presidência a Patricio Aylwin, o povo do Chile perpetrou o ato de exorcismo. Tendo a Cordilheira dos Andes como muda testemunha, 70 mil manifestantes se reuniram no estádio para ouvir as palavras do novo presidente democrático em seu primeiro encontro com a terra renascente, e Aylwin não nos frustrou. Em seu discurso referiuse aos horrores cometidos naquele campo e naqueles vestiários e jurou que “nunca mais” algo parecido tornaria a acontecer. Para a limpeza dos demônios do estádio, mais crucial do que suas palavras foi o ato comunitário de luto que as precedeu.
Setenta mil homens e mulheres calaram-se de súbito ao ouvir as variações em torno de uma canção de Victor Jara, o cantor assassinado cinco dias depois do golpe, tocadas no gramado tão verde por um pianista solitário. Ao concluir-se a melodia, surgiu um grupo de mulheres de saia preta e blusa branca, cada uma com um cartaz mostrando a foto de seu desaparecido. E então uma dessas mulheres – uma esposa? filha? mãe? – começou a dançar uma cueca, nossa dança nacional; ia dançando a sua imensa solidão, ia dançando a ausência de seu par. Fez-se um instante de silêncio atônito, e logo a multidão começou, de início tímida e depois mais segura, a bater palmas junto com a música, o ritmo selvagem e terno acompanhando essa tristeza, indicando que também estávamos dançando com os desaparecidos da história, com nossos amores mortos – assim, era assim que iríamos resgatá-los da invisibilidade a que Pinochet os havia relegado.
Li essa passagem no avião, a caminho de Santiago, na noite de 10 de março, véspera da posse de Gabriel Boric. Três dias depois, na manhã de domingo, dia 13, o presidente e todos os ministros recém-empossados participaram do ato de encerramento do Cambio de Mando Ciudadano, como o governo chamou a cerimônia de posse. Tratava-se de um espetáculo cultural em La Pintana, uma região pobre a cinquenta minutos de carro do Centro de Santiago. O local foi escolhido por ter entre seus habitantes a maior concentração de indígenas mapuches no entorno da capital. Calcula-se que os mapuches sejam cerca de 10% da população do país. Originários da região de Araucanía, 720 km ao Sul de Santiago, eles têm uma história de resistência aos invasores que remonta à chegada dos espanhóis ao continente. Depois da independência chilena e do avanço do impulso nacionalista, no início do século XIX, os conflitos se acentuaram. Arrancados de suas terras por interesses econômicos ou em nome da unidade territorial, foram ao longo das décadas se espalhando pelas zonas urbanas, sempre em condições precárias. A contrarreforma agrária promovida pela ditadura de Pinochet em benefício de madeireiros e grandes grupos corporativos agravou ainda mais as condições de vida dos mapuches. A partir dos anos 1990, com a redemocratização do país, eles voltaram a se reorganizar. De maneira muito resumida, reivindicam a posse de territórios ancestrais e o reconhecimento constitucional de seus direitos como povo indígena. A pauta mapuche está no centro da luta política do Chile atual.
Em seu discurso de posse, na antevéspera do evento festivo em La Pintana, Boric havia saído em defesa dos povos originários: “Alguns falam em conflito mapuche. Não, senhor, não é conflito mapuche. É o conflito entre o Estado chileno e um povo que tem o direito de existir. A solução não é, nem será, a violência. Trabalharemos incansavelmente para reconstruir a confiança depois de tantas décadas de abusos e de despojos. O reconhecimento da existência de um povo, com tudo que isso implica, será nosso objetivo. E o caminho será o diálogo, a paz, o direito e a empatia com todas as vítimas. Cultivemos a reciprocidade. Não nos vejamos como inimigos.”
Fazia calor, o dia estava ensolarado e o clima era de festa no Parque Mapuhue, em La Pintana. Um imenso toldo com as cores do arco-íris, símbolo dos movimentos LGBTQIA+, protegia centenas de convidados dispostos em cadeiras de plástico diante do palco montado no centro do parque. Sentados na primeira fila, Boric e sua namorada Irina Karamanos acompanhavam as apresentações que se sucediam. Impedida de entrar, em razão de cuidados com a pandemia, uma pequena multidão assistia aos shows por telão do lado de fora.
Durante mais de duas horas, houve um pouco de tudo para celebrar as minorias e a diversidade: um poeta mapuche recitou seus poemas em espanhol e mapudungun (o idioma mapuche), duas adolescentes rappers, também mapuches, deram o seu recado, a Orquestra Juvenil Municipal de La Pintana se apresentou, Violeta Parra foi homenageada por cantores e cantoras, repentistas executaram a sua paya (nome do repente no Chile). A certa altura, durante a apresentação de um grupo de música folclórica, Boric foi convidado a se levantar para dançar. E dançou, sorridente e desajeitado, movimentando um lenço com uma das mãos, durante alguns minutos. O ritmo que ele dançava, eu soube depois, era a cueca. Em circunstâncias tão distintas, mais de três décadas depois, aquela cena também era uma espécie de exorcismo do passado, como o vivido por Ariel Dorfman no Estádio Nacional.
O que ficou registrado daquele domingo, no entanto, foi um trecho do discurso de Boric. Na véspera, em seu primeiro dia de mandato, o presidente participara de um ato ecumênico na Catedral Metropolitana de Santiago, uma “oração pelo povo do Chile” envolvendo vários credos. Na saída, não falou com a imprensa que o aguardava do lado de fora. No dia seguinte, quando subiu ao palco no Parque Mapuhue, as razões de seu silêncio ficaram mais claras.
“Permitam-me dizer algo impróprio”, disse o presidente, fazendo a seguir uma crítica à presença do arcebispo emérito de Santiago, cardeal Ricardo Ezzati, no evento do dia anterior. “Me incomodou ver o senhor Ezzati, ver as pessoas que agiram como acobertadoras de graves crimes contra as crianças”, disse Boric, numa alusão ao escândalo que veio à luz em 2018, quando o arcebispo foi acusado de esconder inúmeros casos de abusos de menores praticados durante décadas por membros da Igreja Católica chilena. A plateia reagiu gritando em coro “Boric, amigo, o povo está contigo!”
Quem anda pelas ruas de Santiago pode observar as marcas do estallido social que fez o Chile estremecer em 2019. Espalhadas em vários pontos da cidade, as pichações são quase onipresentes na região central. Da Praça Baquedano, ponto de concentração dos manifestantes, até o Palácio de La Moneda, sede do governo, percorre-se pouco mais de 2 km pela Avenida Libertador General Bernardo O’Higgins, conhecida como La Alameda. Não há um único metro em que não se veja – nos muros, nas paredes, nos pontos de ônibus, no meio-fio, nos canteiros, nos pedestais ou no corpo de estátuas dispostas pelo caminho – um recado dos revoltosos. Eis alguns deles:
CONTRA EL PATRIARCADO Y EL CAPITAL; ME CAGO EN LA POLICÍA; ABORTO LIBRE!; FUEGO AL FEMINICIDA; LIBERTAD A LXS PRESXS DE LA REVUELTA; HASTA VENCER!; NOS CUIDAMOS ENTRE TODAS; UNIFICANDO NUESTROS PODERES DESDE LA CALLE; CAPITALISMO NOS LLEVA A LA EXTINCIÓN; DESTRUIRLO ES UNA CUESTIÓN DE SUPERVIVENCIA; LUCHA NOS HARÁ LIBRES; NUNCA HABRÁ PAZ; PIÑERA A$E$INO; VAMOS POR LA VIDA QUE NOS DEBEN; PRESXS A LA CALLE; NO ESTÁN SOLOS; FUEGO AL CAPITAL; ABAJO LO BINARIO; CUPO LABORAL TRANS; FUERA EL ESTADO $HILENO; NO TE DUERMAS; LOS PRESOS NO TIENEN LA CULPA; SIN JUSTICIA NO HABRÁ PAZ; LESBIANAS; SOMOS LUZ!; LIBERACIÓN ANIMAL; LUCHAR HASTA VENCER; NI PERDÓN NI OLVIDO; QUIERO SALIR SIN MIEDO; CUANDO LA INJUSTICIA SE HACE LA REBELDÍA ES OBLIGACIÓN; NO ERA PAZ ERA SILENCIO.
Nesse museu a céu aberto que testemunha o que foi o levante social de 2019 alguns traços chamam a atenção. Talvez possam ser resumidos pela primeira das pichações: “Contra o patriarcado e o capital.” Vocaliza-se a revolta, mais do que se anuncia uma nova ordem; o mal-estar e o grito contra o status quo capitalista prevalecem sobre qualquer imagem da utopia – a palavra socialismo está praticamente ausente dos muros. Ao mesmo tempo, o inimigo a ser combatido não é “a burguesia”, mas “o patriarcado”. A dominação de classe e a dominação dos homens – em uma palavra, a civilização do machismo – são uma coisa só. A luta contra as injustiças sociais e a luta contra a opressão de gênero se confundem na constelação de palavras de ordem do estallido.
A exemplo de outras grandes revoltas populares, o levante chileno também começou de forma localizada. Eis a cena inicial: às duas da tarde de 7 de outubro, uma segunda-feira, um grupo de estudantes secundaristas pulou as catracas do metrô da estação Universidad de Chile. Foi a forma que encontraram para protestar contra o aumento da tarifa, que entrara em vigência na véspera. Uma semana depois, no dia 14, a prática ainda estava restrita aos secundaristas, mas já havia se espalhado por Santiago. Em ações coordenadas pelas redes sociais, centenas de estudantes saltaram as catracas em várias estações ao mesmo tempo. Foi quando se começou a ouvir também as primeiras palavras de ordem, repetidas em coro: Evadir, no pagar, otra forma de luchar.
No livro La Revuelta: Las Semanas de Octubre que Estremecieron Chile, lançado no final do ano passado, os jornalistas Laura Landaeta e Víctor Herrero contam como o presidente Sebastián Piñera foi surpreendido pelos acontecimentos. No dia 16 de outubro, mesmo com os protestos se espalhando, Piñera se gabava da situação do país durante uma entrevista que concedeu a dois jornalistas do Financial Times no La Moneda. “Vejam a América Latina”, disse o presidente, exibindo alguns gráficos aos entrevistadores. “Argentina e Paraguai estão em recessão, México e Brasil estão estagnados, Peru e Equador estão em profunda crise política.” O arremate do raciocínio entraria para a história: “Nesse contexto, o Chile parece um oásis. Temos uma democracia estável, a economia está crescendo, estamos criando postos de trabalho, elevando os salários e mantendo ao mesmo tempo o equilíbrio macroeconômico.”
Dois dias depois, o oásis pegou fogo. Os relatos do que se passou na sexta-feira, 18 de outubro, renderiam um Ulysses, de James Joyce. Com a escalada dos protestos em vários pontos da cidade, começaram a circular ainda pela manhã imagens da repressão dos Carabineiros, a violenta polícia do país, contra os manifestantes. Ao mesmo tempo em que cenas de espancamento ou uso desmedido da força por parte dos policiais viralizavam nas redes sociais, disseminando um sentimento de revolta na população, Piñera, seus ministros e a classe política de modo geral tratavam de repudiar os protestos, qualificando-os como atos de delinquentes e baderneiros. Mesmo na oposição, lideranças do Partido Socialista e da Democracia Cristã endossaram a retórica do governo, condenando as manifestações.
Na contramão do discurso hegemônico que reverberava nos canais da imprensa, um deputado da Frente Ampla tuitou: “Como Frente Ampla, solicitamos ao governo e ao presidente Sebastián Piñera que reverta já o aumento da passagem, e que não criminalize o protesto social. Os que pularam as catracas não são delinquentes, são estudantes e famílias cansadas de abusos. Diálogo agora, chega de repressão.” O deputado era Gabriel Boric.
No final daquela tarde, o governo determinou o fechamento de todas as 136 estações de metrô de Santiago, por onde passam 2,5 milhões de pessoas diariamente. Instalou-se o caos na cidade. Barricadas nas ruas e focos de incêndio se multiplicaram, houve saques a supermercados. Às oito da noite, panelaços ecoaram por Santiago de forma espontânea, protesto que se repetiria todos os dias ao longo de várias semanas. Passava da meia-noite quando Piñera entrou ao vivo em cadeia nacional de rádio e tevê para anunciar que estava decretado o estado de emergência em grande parte da Região Metropolitana de Santiago. Anunciou também que o governo iria lançar mão da Lei de Segurança Interna do Estado (equivalente à Lei de Segurança Nacional no Brasil) para enquadrar os autores dos “gravíssimos atos de delinquência”. Na manhã de sábado começaram a pipocar manifestações em diversas cidades do Chile. O terremoto social estava instalado no país.
O saldo dos meses de estallido é brutal. Trinta e três pessoas morreram, sendo 22 delas em Santiago. Algumas das vítimas morreram carbonizadas ou atropeladas. Até hoje há controvérsia sobre a responsabilidade da polícia em alguns casos. Mais de 25 mil pessoas foram detidas, e cerca de mil disseram ter sido torturadas. Estima-se que 3,4 mil manifestantes ficaram feridos, dos quais pelo menos 347 sofreram traumas oculares. Cinco pessoas ficaram totalmente cegas. Quase todos os casos foram registrados entre outubro e novembro. Há ainda hoje 77 pessoas presas.
Foi também no decorrer dos protestos que ganhou corpo a demanda tantas vezes frustrada por uma nova Constituição. A insatisfação difusa das ruas encontrou na Carta feita pela ditadura e com forte tônica liberal um bom inimigo a ser combatido. No dia 15 de novembro, depois de semanas de crise aguda e muita negociação, o governo aceitou assinar o Acuerdo por la Paz y la Nueva Constitución. Gabriel Boric, que havia participado intensamente das conversas, subscreveu o documento. Mais de setenta militantes da Convergência Social, o seu partido dentro da Frente Ampla, se desligaram da legenda em protesto. Para muitos manifestantes o acordo era uma capitulação.
Em outubro de 2020, um ano depois da convulsão, os chilenos decidiram em plebiscito que, sim, queriam uma nova Constituição para o país. Foi uma aprovação enfática, de quase 80% dos eleitores. Em maio de 2021, foram eleitos os membros da Assembleia Constituinte, com a finalidade exclusiva de entregar uma nova Carta Magna ao país. Eles começaram a trabalhar em julho do ano passado e tem até 4 de julho deste ano para apresentar o texto final. É um prazo muito espremido para uma tarefa tão complexa. Mas o problema não termina aí. Para que seja efetivamente adotada, enterrando a Constituição de Pinochet, a nova Carta precisa ser aprovada em plebiscito pelo povo chileno. O “plebiscito de saída”, como é chamado, deverá ocorrer em setembro, mas ainda não tem data definida. Muitos constituintes defendem que a votação seja marcada no dia 11 de setembro, exatamente 49 anos depois do golpe de Estado que matou Salvador Allende. O longo adeus a Pinochet chegaria então a um final feliz.
Existe, é claro, a possibilidade de a nova Constituição ser rejeitada pelos chilenos. Seria a ruína para o governo Boric. Um governo que na realidade teve início antes de ser eleito, que nasceu do estallido e do processo constituinte que lhe sucedeu. E que corre o risco de acabar em poucos meses se a mudança constitucional naufragar. Hoje essa é uma hipótese considerada muito improvável por quase todo mundo. Um dos constituintes usou a imagem do rio que deságua no mar para descrever a inevitabilidade do processo, como se esse desfecho tivesse a força das leis naturais. A extrema direita, no entanto, não pensa assim. José Antonio Kast e seus seguidores trabalham diuturnamente pelo rechazo. Só em setembro saberemos se o barco da reação terá mesmo sucumbido à força da correnteza.
Boric tem plena consciência do que está em jogo. Dedicou ao assunto um trecho importante de seu discurso de posse:
Neste primeiro ano de governo também nos colocamos como tarefa acompanhar de maneira entusiasmada nosso processo constituinte pelo qual tanto lutamos. Vamos apoiar decididamente o trabalho da Constituinte. Necessitamos de uma Constituição que nos una, uma Constituição que, ao contrário daquela que nos foi imposta a sangue, fogo e fraude pela ditadura, nasça na democracia, de maneira paritária, com a participação dos povos indígenas. Uma Constituição que seja para o presente e para o futuro. Uma Constituição que seja para todos, e não para uns poucos.
E a seguir fez um apelo:
Os convido para que nos escutemos de boa-fé. Sem caricaturas. Sem caricaturas. Vamos nos levar a sério. Digo isso para nós do governo também. Nos escutemos de boa-fé, para que o plebiscito de saída seja um ponto de encontro, e não de divisão, e possamos aqui, junto com o povo, firmar pela primeira vez na história do Chile uma Constituição democrática, paritária, com participação de todos e todas.
Há grande discrepância entre o perfil da Constituinte e o perfil do Congresso chileno. A começar pela correlação de forças – as esquerdas predominam com larga margem na Constituinte. “Foi como se o éthos do estallido tivesse invadido a urna”, diz a historiadora Joana Salém Vasconcelos, autora de uma tese de doutorado sobre a questão agrária no Chile. “A direita tinha muitos candidatos concorrendo à Constituinte. Eles simplesmente não foram votados”, completou.
Em meados de 2021, pouco antes de os constituintes iniciarem seu trabalho, Salém Vasconcelos escreveu em parceria com o historiador Luan Aiuá Fernandes o texto As Ruas Foram Eleitas, e Agora?. Nele, argumentam que a composição da Constituinte revelava “não somente a ânsia por enterrar de vez a Constituição de 1980, mas também uma evidente insatisfação com as organizações partidárias, principalmente as que haviam governado o Chile nas três últimas décadas”.
De fato, das 155 cadeiras da Constituinte, o bloco da direita ficou com apenas 37 (24%). Bem abaixo do almejado um terço que lhes daria o poder de veto, já que o texto, em todas as suas etapas, precisa ser aprovado por dois terços dos constituintes. O bloco do centro, que reuniu as chamadas “organizações partidárias” que governaram o Chile nos últimos trinta anos, se saiu ainda pior – 25 cadeiras (16%). Um fiasco gigantesco quando se pensa que ali estão, entre outros, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, os grandes artífices da Concertación. Já o bloco de esquerda, reunindo a Frente Ampla de Boric e o Partido Comunista de Camila Vallejo, mais os candidatos independentes, todos gauches, mas sem vínculo partidário, somaram 76 vagas, ou 49% dos constituintes. A eles se juntam os 17 representantes dos povos originários (11%), incorporados ao processo por uma lei criada para contemplar as pressões das ruas.
A esse respeito, Salém Vasconcelos e Aiuá Fernandes escrevem em seu artigo:
Entre os constituintes dos povos originários, uma das vitórias mais representativas foi a da líder mapuche Francisca Linconao, a mais votada desse grupo. Ela chegou a ser presa e julgada diversas vezes entre 2013 e 2017, acusada de terrorista por liderar a luta contra a usurpação das terras indígenas na Araucanía e a destruição de bosques nativos por grandes corporações da madeira. Agora, a machi [sinônimo de xamã] é uma das representantes indígenas a escrever a nova Constituição, abrindo caminhos para a criação de um Estado plurinacional e fazendo jus às bandeiras massivamente erguidas no estallido social.
Somadas, as esquerdas e os povos indígenas controlam 60% da Constituinte, um número muito próximo dos dois terços necessários para aprovar suas propostas. A negociação se faz, evidentemente, com as forças do centro, minoritárias, mas decisivas.
Isso, porém, não é tudo. Também ficou definido por lei que a Convenção deveria ser composta com paridade de gênero. Ou seja, há 77 mulheres e 77 homens trabalhando no projeto do novo ordenamento legal do país (um homem desistiu e a vaga não foi preenchida). Pense, por comparação, no Brasil. Pense no governo Bolsonaro. No governo Michel Temer. Pense na esquerda do país e na dificuldade que têm as mulheres para ocupar espaços políticos dentro dos partidos supostamente progressistas. O que se vê na Constituinte chilena é uma espécie de revolução.
“É impressionante ver um espaço político com tantas mulheres e pessoas tão jovens. Tão diferente de tudo que já vi no Brasil”, relatou a professora de direito constitucional Ester Gammardella Rizzi, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP Leste, num dos textos que vêm publicando sobre o Chile no site Consultor Jurídico. Rizzi passou duas semanas de fevereiro em Santiago para acompanhar o trabalho da Constituinte, que se desenrola no palácio do antigo Congresso Nacional chileno, desativado com o golpe em 1973. “Na hora do almoço, muitos constituintes se sentam no gramado, em grupos, para comer a refeição que levaram de casa. Tem um clima universitário, não tem nada a ver com a imagem convencional da política”, me disse Rizzi. Ao mesmo tempo, completou, “quando estão nas comissões ou entram no plenário são extremamente sérios, concentrados, quase solenes. Parecem incorporar a ideia de que estão escrevendo a história do país”. A ida ao Chile reforçou uma convicção polêmica que Ester Rizzi já vinha alimentando: “A Assembleia Constituinte é mais importante do que o governo Gabriel Boric.”
As coisas na verdade parecem muito imbricadas. Dos 24 ministérios do governo, 14 são comandados por mulheres. “O clamor feminista e sua luta por igualdade”, mencionado por Boric no discurso de posse, está no centro das atenções da atual gestão. Não se trata apenas de cumprir cotas de participação feminina. Nem mesmo de “esbanjar” nas cotas, fazendo com que as mulheres estejam em maioria numérica nos cargos de primeiro escalão. A lógica aqui é outra. O feminismo não é um assunto das ministras, é parte essencial da identidade e do projeto político do novo governo.
A médica Izkia Siches é a primeira mulher a ocupar o cargo de ministra do Interior e da Segurança Pública. Além de estar no topo da cadeia de comando das forças policiais, a começar pelos Carabineiros, Siches na prática é também a vice-presidente (não existe eleição de vice no Chile). Em sua conta no Twitter, ela se define como “feminista”. A ministra da Defesa, a quem as Forças Armadas estão subordinadas, também é mulher. Não qualquer mulher, mas Maya Fernández Allende, uma das netas de Salvador Allende. Ou seja, o braço armado do Estado chileno está submetido a duas mulheres. Maya Allende também se apresenta no Twitter como “feminista”. Assim como Camila Vallejo, que no dia da posse disse ter “orgulho de fazer parte de um governo feminista”.
O jornal El Mercurio, veículo conservador de grande circulação no Chile, perguntou à ministra da Mulher e da Equidade de Gênero, Antonia Orellana, no último dia 20 de março: “Está de acordo com a aprovação do aborto livre pela Constituinte?” A resposta: “Mas é claro. Estou de acordo com que a Constituição consagre direitos sexuais e reprodutivos, como o aborto.” A legalização do aborto foi aprovada recentemente numa das comissões da Constituinte, mas ainda depende da votação final.
No Oito de Março, Dia Internacional da Mulher, a namorada de Boric, Irina Karamanos, publicou em seu Twitter uma imagem da passeata de mulheres que tomou conta da Avenida Bernardo O’Higgins, La Alameda, no Centro de Santiago. Na foto ela aparece de máscara segurando, ao lado de outras mulheres também de máscara, uma imensa faixa com uma frase da chilena Julieta Kirkwood, precursora dos estudos de gênero. Dizia o seguinte: Democracia en el país, en la casa y en la cama. As companheiras de Karamanos que estavam na marcha eram 7 das 14 futuras ministras do governo Boric: Izkia Siches (Interior), Camila Vallejo (Vocera), Maya Allende (Defesa), Antonia Orellana (Mulher e Equidade de Gênero), Jeannette Jara (Trabalho e Previdência Social), Julieta Brodsky (Cultura) e María Begoña Yarza (Saúde). Todas seriam empossadas três dias depois.
(Ao ver a imagem tuitada por Karamanos, no dia em que cheguei a Santiago, quem me veio à cabeça não foi Michelle Bolsonaro. Nem Damares Alves. Pensei sem querer, mas de maneira irreprimível, em Augusto Aras, o procurador-geral da República, afinado também nos momentos festivos com o espírito do governo que deveria investigar. Num evento comemorativo do Oito de Março promovido pelo Ministério Público, Aras declarou o seguinte: “É um dia de homenagem à mulher. À mulher no sentido mais profundo da sua individualidade, da sua intimidade. À mulher que tem o prazer de escolher a cor da unha que vai pintar. À mulher que tem o prazer de escolher o sapato que vai calçar.” E então voltei a espiar a faixa das chilenas: “Democracia no país, em casa e na cama.” Fim do parêntese.)
Karamanos também se tornaria oficialmente a primeira-dama do Chile no dia 11 de março. Disse algumas vezes que considera a expressão “classista (primeira) e machista (dama)”. Depois de muito pensar, decidiu aceitar a função, mas à sua maneira. “Assumir o cargo de primeira-dama não quer dizer legitimá-lo. Se simplesmente o rejeitarmos, isso também não eliminaria o problema. É preciso redesenhá-lo, para assumir um lugar diferente daquele do espectro conservador, que vê a mulher em um papel de caridade, de acompanhante, sob a ideia heterossexual de vínculo com o presidente”, disse ao jornal El Mercurio.
Antropóloga e cientista social formada em Heidelberg, na Alemanha, Karamanos também estudou diversidade linguística num curso à distância da Universidade Autônoma de Barcelona. Tem 32 anos e milita na Convergência Social, o partido de Boric. Além de espanhol e alemão, fala inglês, grego, indonésio e está estudando kawésqar, um idioma indígena pouquíssimo conhecido do Sul do Chile.
“Com Gabriel eu compartilho um projeto político, a curiosidade, sempre conversamos longamente, mas também compartilhamos muita alegria interna. A imaginação é algo que é acionado quando estamos juntos”, disse Karamanos na mesma entrevista. Dificilmente o Chile encontraria um casal tão sintonizado com o espírito do estallido.
O discurso de Boric no La Moneda já ia avançado quando ele mencionou os eventos de outubro de 2019: “Viemos das mobilizações. Hoje estamos aqui, mas não nos esqueçamos de onde viemos. Vamos devagar porque vamos longe. […] É fundamental que vocês façam parte deste processo”, disse diante da multidão. A ideia de que governar é um processo reaparece a todo momento em sua fala. Ela vem junto com a sua obsessão de que é preciso escutar, dialogar, construir juntos:
Não podemos fazer isso sozinhos. Aqui, deste lugar, quero fazer a todas e a todos um chamado. Que nos acompanhem nesta tarefa. Caminhemos juntos na rota da esperança e vamos todos construir a mudança para um país que seja digno e justo. Dignidade, que palavra mais linda. Vamos construir isso passo a passo, com a sabedoria de quem sabe que as mudanças que permanecem são as que se sustentam em conhecimento acumulado e são respaldadas por grandes maiorias.
Na boca de outro político essas palavras soariam apenas demagógicas. Não é a sensação que Boric transmite:
Quero que saibam que, como presidente do Chile, eu e nossos ministros vamos explicar, vamos falar com vocês para lhes contar o porquê das nossas decisões. Para que sejam parte das soluções. E isso também requer mudar de alguma forma a relação que se tem com as autoridades. As autoridades não podem ser inalcançáveis. Queremos os ministros na rua, em contato com o povo.
E prosseguiu:
Escutar. Não ficar escondido. E para isso é importante que também haja reciprocidade. E a que me refiro com isso? Que a relação com as autoridades não seja uma relação de consumidores, que nós trabalhemos juntos, que sejamos cidadãos. Que este seja o governo do povo e vocês o percebam como o seu governo, de todas e todos os chilenos e chilenas.
No final, reconheceu a excepcionalidade do momento histórico:
O mundo está nos observando. E estou seguro de que também vê com cumplicidade o que está acontecendo no Chile. Temos uma oportunidade de contribuir humildemente na construção de uma sociedade mais justa.[…] Como prognosticou há quase cinquenta anos Salvador Allende, estamos de novo, compatriotas, abrindo as grandes alamedas por onde vai passar o homem livre, o homem e a mulher livre. Para construir uma sociedade melhor. Seguimos. Viva o Chile!
Karamanos então surge na sacada e se põe ao lado de Boric, esticando um dos braços para o alto com o punho cerrado. Eles sorriem, ela comenta algo perto do ouvido dele, eles se beijam, seguem sorridentes, visivelmente emocionados. Passam alguns segundos observando em silêncio as pessoas na praça, que gritam em coro “Boric, amigo, o povo está contigo”. Gabriel Boric então cruza as mãos sobre o peito, como se abraçasse a multidão, e curva levemente o corpo, reproduzindo o gesto que havia feito diante da estátua de Allende. É sua última imagem antes de desaparecer no interior do palácio.
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