Se ao ler moldamos nossas ideias e aprendemos algo sobre a vida, então não deve espantar que a leitura tenha um impacto maior na juventude e, com o tempo, passe a desempenhar um papel menor dentro da miríade de possibilidades que ela própria abriu FOTO: CARNIVAL_ANDRÉ KERTÉSZ _PARIS, 1926 © ESTATE OF ANDRÉ KERTÉSZ_HIGHER PICTURES
Déficit de atenção
Por que a leitura tem se tornado uma atividade cada vez mais difícil
Geoff Dyer | Edição 128, Maio 2017
Será que eu me tornei um sintoma da minha época ou essa é uma indisposição que só diz respeito a mim?
Seja como for, tenho achado cada vez mais difícil ler. Neste ano li menos livros do que no ano passado; no ano passado, li menos que no ano anterior; no ano anterior, menos que no ano que vinha antes. Todo mundo conhece o fenômeno do bloqueio criativo, a angústia do escritor diante da página em branco – eu, porém, fui acometido por um bloqueio de leitor. Trata-se de um problema que se manifesta de forma gradativa, de diferentes maneiras, nas mais variadas circunstâncias. Numa viagem recente às Bahamas, por exemplo, eu decidi que devia fazer um esforço para deixar de lado a leitura porque, afinal, pode-se ler um livro em qualquer lugar, mas aquele talvez fosse um dos poucos momentos em que eu teria a oportunidade de ver um mar tão turquesa, uma areia tão rosada. De maneira um pouco grandiloquente e pomposa, batizei essa minha condição de síndrome de Mir, a estação espacial russa: um cosmonauta que passou por lá declarou não ter lido uma única página do livro que levara na bagagem porque se deu conta de que aproveitaria melhor o seu tempo livre se simplesmente olhasse pela janela.
Muitas vezes acontece de eu estar com preguiça de ler, preferindo ver tevê. Ocorre também, com mais frequência, que eu me sinta autoconsciente diante da página. Ler nunca me pareceu algo trabalhoso – ao contrário de escrever –, de modo que, quando sinto que deveria estar trabalhando, associo essa obrigação à escrita. Pelo menos em teoria, quando não estou escrevendo estou livre para ler, mas nessas horas sinto uma culpa vaga, e no fim das contas, em vez de escrever (trabalhar) ou ler (relaxar), acabo não fazendo nem uma coisa nem outra: fico zanzando à toa, reorganizando os livros. Ou seja, não faço nada. Até que tenho a oportunidade de viajar de trem, quando então, como um passageiro que usa esse meio de transporte para ir ao trabalho, e a cada curto trajeto diário consome Guerra e Paz em bocados de vinte minutos, mergulho num livro com a confiança de que enfim tenho a possibilidade de ler. Mais que depressa, porém, me vejo como Fernando Pessoa no Livro do Desassossego, dividido “inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisagem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro”.
Tenho uma montanha de livros em casa, livros que não li, e no entanto, contemplando apático as estantes, tudo o que penso é que não há nada para ler. Na esperança de chegar ao cerne da questão, prestes a embarcar num voo transatlântico, comprei – mas não consegui ir adiante – O Leitor, de Bernhard Schlink, e Uma História da Leitura, de Alberto Manguel. Desisti de lê-los e vasculhei ao redor em busca de qualquer coisa: revista de bordo, catálogo de free shop, procedimentos de emergência. O problema é que, ao mesmo tempo que me disponho a ler qualquer besteira desse tipo, sou um leitor ultrasseletivo. Estou sempre deixando de ler algo em nome de alguma outra coisa.
O custo de oportunidade de ler determinado livro é sempre alto demais. Alguns não valem nem um segundo de atenção, é claro. Chegar a essa conclusão em relação a best-sellers de aeroporto é mais do que normal, mas para mim tampouco faz sentido ler Jeanette Winterson,[1] por exemplo, ou Hanif Kureishi.[2] Na verdade, a maior parte do que é considerado ficção de qualidade mas usa fórmulas narrativas convencionais me parece uma perda de tempo. Estaria tudo certo se eu pudesse converter a relutância em ler algo escrito pelo jovem romancista inglês James Hawes numa renovada disposição para enfrentar Henry James, mas sou incapaz de ir além dos primeiros cinco parágrafos (isto é, quatro orações) de A Taça de Ouro.
O estranho nesse bloqueio é que aos 20 anos eu imaginava que quando chegasse à meia-idade eu poderia afinal me dedicar aos livros que não tinha paciência de ler quando jovem. Mas agora, aos 41, não tenho sequer a paciência de ler os livros que eu lia quando tinha 20. Naquela idade, eu atravessava com afinco as obras, na crença de que cada volume me deixaria um pouco mais perto da graça e da luz. Li Guerra e Paz, Anna Kariênina, Ulysses, Moby Dick. Consegui terminar O Idiota, ainda que tenha odiado cada página do livro. Não li Os Irmãos Karamazov: melhor deixar para quando for mais velho, pensei – e agora que sou mais velho, eu gostaria de poder ter lido esse Dostoiévski quando era mais jovem, quando ainda tinha a força de vontade necessária para encará-lo.
Mesmo neste estágio tardio de evolução do meu bloqueio, porém, alguns livros ainda conseguem atravessar a barreira e acabam sendo lidos. É verdade que eu tive muita dificuldade para entender o que estava acontecendo na primeira parte de Vasto Mar de Sargaços, de Jean Rhys, por exemplo; normalmente eu o teria abandonado, mas já que era curto e o final estava logo ali, não muito distante das primeiras páginas de leitura, fui até o fim e pude me dar conta de que aquela era de fato a obra-prima que todos haviam proclamado. Levando em conta que minha fé no cânone permanece relativamente intacta, por que então não consigo fazer a mesma coisa quando se trata de cobrir uma distância maior?
De certa forma eu me tornei, se não uma criança desatenta, ao menos um desses adultos que sabem um pouco de tudo, sempre superficialmente, e são incapazes de se concentrar em qualquer coisa que não ofereça gratificação imediata. Sucumbi ao que George Steiner, no ensaio “O leitor incomum”, chama de “a quase dislexia dos atuais hábitos de leitura”. (Minha dificuldade de ler acabou servindo, a princípio, como uma espécie de prova de que eu era um intelectual. Além de ter me tornado ultrasseletivo na escolha das leituras, passei a não conseguir ler se não tivesse um lápis na mão. Ora, um “intelectual”, segundo a definição de Steiner, é “um ser humano que tem um lápis na mão ao ler um livro”.) É nesse sentido que eu manifesto os sintomas do “destino da leitura na era digital”. A frase, do americano Sven Birkerts, é o subtítulo – e tudo que eu consegui ler – de seu livro Gutenberg Elegies.
Contemplo assim, com melancolia, minha vida pregressa de leitor obsessivo, minha fase Bernhard, minha fase Brodsky, minha fase Camus, minha fase DeLillo… Penso naqueles momentos sublimes de solidão à luz de um abajur, em que, segundo a frase de Wallace Stevens, “o leitor se converte no livro”. Uma experiência desse tipo ainda me é possível, mas, quando acontece, é um pouco como o sexo ocasional entre cônjuges há muito tempo juntos: acaba servindo para me lembrar de como as coisas mudaram, e de quanto agora é raro eu ser tomado por uma paixão que em outros tempos era rotina. Perdendo-me em Desonra, o livro de J. M. Coetzee premiado com o Booker, eu me lembro de quando costumava passar de um livro a outro numa extasiada travessia entre mundos imaginados. Se vejo as fotos que André Kertész fez de leitores absorvidos pela leitura – mesmo quando aparecem, nas imagens, em lugares e posições incômodas –, me pego sonhando acordado e me lembrando do passado.
Lembro-me, em particular, de duas coisas que li na revista The Hungry Mind Review. Os editores haviam perguntado a diversos escritores qual seria o único livro do século XX que eles levariam consigo ao século seguinte. O ensaísta Gerald Early, refletindo sobre o modo como foi deixando de lado o interesse pela ficção, se perguntava se não “é assim que a gente acaba, aos poucos, perdendo a capacidade de ler ou o interesse na leitura”. Ele dizia que essa experiência, por sua vez, talvez fizesse parte de um processo ainda maior, por meio do qual a pessoa perde “de modo lento mas inexorável a capacidade de se sentir ligada de maneira profunda a qualquer coisa que seja”. Respondendo à pergunta da revista, Sven Birkerts escolheu As Elegias de Duíno, de Rilke, porque “é ali que encontramos a destilação mais potente possível da interioridade subjetiva, nosso atributo mais ameaçado”. Seria essa falta de “interioridade subjetiva” a doença de que eu padecia? A doença cujo sintoma é a minha capacidade cada vez menor – e também a de Early – para ler?
Talvez não. No livro And Our Faces, My Heart, Brief as Photos [E os Nossos Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias], o crítico John Berger levantou a hipótese de que a incapacidade de lembrar pudesse ser, ela própria, uma lembrança (a de ser um bebê sem memória dentro do útero). Do mesmo modo, minha declinante capacidade de ler é o resultado de eu ter lido bastante. Se ler intensifica as reações do sujeito, molda a sua ideia do mundo, lhe dá uma percepção do propósito da vida, então não será surpreendente se, com o tempo, a leitura vier a desempenhar um papel proporcionalmente menor no contexto da miríade de possibilidades que ela própria abriu. Quanto mais tivermos absorvido suas lições, com menos frequência teremos de recorrer ao manual de instruções.
Depois de um certo ponto, a interioridade subjetiva passa a ser autogerada, em vez de ser produzida pelas leituras. Claro que sempre há mais a aprender, mais a ler, mas se é verdade que, quando adolescente, cada novo livro representava um acréscimo quase avassalador ao que eu sabia e sentia, hoje cada novo livro representa um incremento marginal à soma dos meus conhecimentos.
Quando eu tinha 18 anos, em Cheltenham, Inglaterra, prestes a ir estudar inglês em Oxford, minha experiência de mundo era radicalmente circunscrita. Nunca tinha viajado para fora do país. Com exceção dos professores, era raro encontrar alguém que não viesse do mesmo meio operário, alheio às leituras, da minha família. Por outro lado, eu fervilhava com os vastos mundos imaginários de Shakespeare, Wordsworth, Dickens, Lawrence. Uma vida devotada ao estudo da literatura parecia o destino mais elevado possível. Não mais. Ler, algo que me deu uma vida, é hoje apenas parte dessa vida, e no momento uma parte bastante pequena.
Os livros foram decisivos para que eu me tornasse o que sou. Essa ideia, formulada de maneira não de todo elegante – “como alguém se torna o que é” –, aparece no subtítulo de Ecce Homo, de Nietzsche. É nessa obra que o pensador alemão pronuncia, de maneira definitiva, a frase com que qualquer pessoa que tenha aprendido alguma coisa nos livros – nos dele, pelo menos – haverá de concordar: “De manhãzinha, quando o sol se levanta e uma pessoa se encontra plena do frescor e da alvorada de suas forças, abrir um livro e começar a ler – eis algo que eu chamaria de doentio!”
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[1] Escritora britânica, nascida em 1959, tornou-se conhecida em meados dos anos 80 com o livro Oranges Are Not The Only Fruit [Laranjas Não São a Única Fruta]. Ganhou duas vezes o prêmio literário Lamb-da, dedicado a obras que exploram temas LGBT.
[2] Escritor, dramaturgo e roteirista britânico de origem paquistanesa, nascido em 1954. Ficou conhecido, em meados dos anos 80, pelo roteiro do filme Minha Adorável Lavanderia, que se passa em Londres e tem como personagem principal um jovem de origem paquistanesa.
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