O destemido papa Francisco acaba de trazer à luz um texto inédito em que Pascal afirma: "Vocês têm tudo a ganhar não acreditando em Deus" ILUSTRAÇÃO: EMILIANO PONZI
Deus é burro?
Breve introdução ao novo livro de Blaise Pascal
Bernardo Carvalho | Edição 89, Fevereiro 2014
Graças mais uma vez ao papa Francisco, o argentino Jorge Mario Bergoglio – que já nos havia encantado com sua humildade, seu amor pelos pobres e sua solidariedade inesperada para com os milhares de homossexuais refugiados (e, também nos últimos anos, paradoxalmente perseguidos) sob o teto da Santa Igreja –, a história da filosofia ocidental acaba de sofrer uma de suas maiores reviravoltas, e um duro revés, com a revelação inesperada de um tesouro mantido em segredo por mais de três séculos nos calabouços do Vaticano. Em mais uma de suas recentes e surpreendentes piruetas, nosso querido Santo Padre, esse destemido defensor dos necessitados, acaba de trazer a público um texto inédito de Pascal, autor da máxima muito nossa conhecida, a saber: “Vocês não perdem nada acreditando em Deus; ao contrário, só têm a ganhar.” Ou alguma coisa assim.
A obra recém-descoberta não só nos revela um Pascal mais peremptório (e portanto mais burro), cuja imaginação prenunciadora e fantasiosa não conhecíamos, como também contradiz aquela máxima, afirmando precisamente o oposto, a saber: “Vocês têm tudo a ganhar não acreditando em Deus.”
A primeira palavra que nos vem à cabeça é, claro, “provocação”. É difícil evitar as especulações sobre o que o nosso Santo Padre, temente a Deus, teria a ganhar com a publicação desse documento. Como bom jesuíta que é, não seria de estranhar que estivesse investido da missão de acabar para sempre com a reputação do autor jansenista, agostiniano radical, revelando suas contradições e, como se não bastasse, por meio de uma obra que só podemos classificar de medíocre. Mas não vamos nos ater a anacronismos e mesquinharias marginais. Melhor será passar, ao final deste breve introito, à própria análise do texto, ao qual muito me orgulho de ter tido acesso em primeira mão, graças a contatos privilegiados que venho mantendo há anos com a Santa Sé.
O opúsculo em questão é uma parábola semelhante a nossas ficções científicas, uma distopia, como dizemos hoje. Pascal imagina um mundo obcecado por Deus, no qual Deus é desculpa para tudo. Como todos sabemos, nada podia ser mais estranho e repulsivo ao autor seiscentista. Por exemplo, imaginemos alguém que, em nome de Deus, pregasse a procriação, a multiplicação da espécie, ou seja, o sexo desprotegido num mundo com carência de recursos e ainda por cima sob ameaça de uma doença mortal, sexualmente transmissível. Percebam o paradoxo. Que espécie pode sobreviver assim? Deus é burro?
Pois, em seu texto inédito, Pascal imagina pior: um mundo de interesses pessoais, disfarçados de ações desinteressadas, em nome de Deus. Ocorre que o excesso de interesses pessoais, tão variados quanto pessoas há no mundo, acaba por confrontar a vontade divina com tantas contradições quanto interesses há na Terra, terminando por nos fazer concluir que ou existe Deus ou existem os homens, não dá para os dois coexistirem, muito menos coabitarem o mesmo corpo, como quis (ou quer) o cristianismo.
É verdade que Pascal já havia concebido esse cenário, tanto que pregava ser “melhor obedecer a Deus do que aos homens”, mas isso significava apenas que ele continuava acreditando num Deus superior às contradições, aos interesses e à razão humana. O que se infere a partir do livro recém-revelado é que Deus, sendo apenas uma projeção dos homens, não está imune a suas contradições e assim só pode existir como dogma. Uma nota que acompanha a obra explica que ela foi escrita depois de uma terceira conversão do autor, dessa vez ao ateísmo.
Ora, todos conhecemos os resultados da primeira e da segunda conversões (ou iluminações) do filósofo. E nada nos leva a inferir que o autor dos Pensamentos e das Cartas Provinciais pudesse terminar ateu. Muito pelo contrário. Na origem da segunda conversão, ele teria tido uma visão mística no meio da noite – visão que teria desencadeado a parte principal de sua obra, baseada na dúvida, ou melhor, numa certeza que não é certa em si, mas depende do absurdo da sua negação, só pode ser considerada uma certeza por ser absurda a sua negação; em outras palavras, uma certeza que não pode estar subjugada ao imperialismo da razão.
Para Pascal, nada é em si, mas em oposição. Não há bem sem mal, nem verdadeiro sem falso. A verdade, na verdade, só é verdade porque o seu contrário é falso – e não porque ela seja verdadeira. Assim como Deus só existe porque não aparece. O que é a verdade, para Pascal, senão o absurdo da sua negação? Isso é história. Entretanto, o texto recém-descoberto quer nos fazer crer que, em seus últimos dias, o filósofo teria tido uma terceira iluminação, capaz de convertê-lo a uma certeza que já não se diferencia do dogma. Ora, essa certeza é mais fácil de combater do que a dúvida. A revelação desse opúsculo desconhecido de Pascal extirpa a potência da dúvida, na verdade uma ameaça a qualquer igreja, reduzindo o filósofo a uma certeza frágil, a uma crença fácil de ser derrubada, por se igualar aos dogmas de qualquer igreja.
O mundo que Pascal viu em sua terceira e última iluminação é um mundo no qual os indivíduos (às vezes divididos em dezenas de pseudônimos) gritam ao mesmo tempo para impor suas vozes e suas opiniões no espaço público. E, para que isso seja possível, Pascal, nostálgico das suas façanhas de jovem inventor, imagina uma máquina de se expressar que leva os homens a tornar tudo imediatamente público, a começar por suas vidas íntimas, seus sentimentos e pensamentos menos elaborados. Os sentimentos mais egoístas, que antes só eram expressos na esfera privada, porque manifestá-los em público significava comprometer-se (uma vez que esses sentimentos também expõem uma burrice e uma truculência que já não disfarçam o objetivo de destruir tudo o que não estiver a seu serviço e a seu favor), passam a ser proferidos simultaneamente, com orgulho e empáfia, em alto e bom som. A vergonha e o pudor moral foram banidos desse mundo e não fazem mais nenhum sentido na distopia imaginada pelo filósofo. E, como em princípio cada um desses indivíduos, além de exprimir seu interesse incompatível com os interesses dos demais, também fala em nome de Deus e o define de um modo incompatível com os demais, sendo o que todos dizem, ao mesmo tempo, acreditar num único e mesmo Deus absoluto, como hoje dizemos da democracia, fica clara, a um só tempo, não apenas a exigência de uma igreja unificadora de sentido, mas que esse Deus simplesmente não existe nem poderia existir. Nunca.
Ou seja, escrito por linhas tortas, o texto é a uma só vez uma denúncia da igreja como instituição autoritária e normalizadora e também um desafio à fé. Agora, o mais interessante, que nos faz suspeitar da autenticidade da autoria da obra e da possível má-fé dessa mesma igreja, a defender seus interesses por denegação, é que todas as vozes que aparecem no texto, as vozes “incompatíveis” dos indivíduos, são, no final das contas, apesar da aparente dissonância, idênticas. A máquina de se expressar faz com que todos acabem dizendo exatamente as mesmas coisas, de modo que a parábola babélica aqui não funciona. O argumento capenga, mal reciclado, cai por terra, mostrando um autor intelectualmente débil, muito aquém da genialidade pascalina. Uma análise mais atenta nos levará mesmo a pensar na possibilidade de uma impostura – a saber, que estejamos tratando de uma obra apócrifa, cujo autor talvez não seja outro – e aqui lamento decepcioná-los – senão o próprio Jorge Mario Bergoglio. É, o Santo Padre em pessoa, ou algum de seus ghost-writers portenhos.
A corroborar nossa tese está o fato de que nosso querido papa vem do país de outro grande fingidor, seu homônimo, Jorge (Luis Borges), tendo sido exposto desde a mais tenra infância (assim como seus ghost-writers), nem que fosse apenas por viver na mesma cidade, beber da mesma água e comer da mesma carne (aliás, considerada a melhor do mundo), a uma literatura que exalta o heroísmo e a traição como duas faces da mesma moeda. Uma literatura para a qual até a impostura pode ser original. É o que deve ter pensado com certo desembaraço o nosso Francisco ao ter a nem tão brilhante ideia de, inspirado na democracia da internet, tentar reduzir a inteligência pascalina a um maniqueísmo primário, por meio de um pastiche grosseiro, incongruente com o estilo e a reputação do filósofo, supondo que ninguém fosse perceber, que fôssemos tão burros quanto os personagens dessa parábola, que já não pensam, porque apenas se expressam.
Bergoglio não deixou passar nem um ano de sua posse como primeiro papa jesuíta para acertar uma querela teológica anacrônica de mais de 300 anos e, ao que parece, vingar-se em nome de seus antepassados. O que nos leva a concluir, muito a contragosto e a despeito das aparências, que nosso querido Francisco, além de bondade, traz muito rancor no coração.
Isto posto, passemos à obra.