Enquanto Deus e o Diabo estreava, anunciando, segundo Glauber, "liberdade ampla e levante", Jango fazia o Comício das Reformas na Central do Brasil e jornais apoiavam a Marcha da Família ILUSTRAÇÃO: PEDRO ZOLLI_ESTÚDIO ONZE / FOTO RONALDO THEOBALD/CPDOC JB
Deus e o Diabo – Ano I
Glauber Rocha no turbilhão de 1964
Eduardo Escorel | Edição 90, Março 2014
Em nova, e prodigiosa, demonstração de resistência, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, será exibido na quarta-feira (18/5) na seção Cannes Classics do 75º Festival, 58 anos depois da estreia do filme no mesmo evento em maio de 1964. A nova versão digital, restaurada em 4K (4.000 pixels de definição da imagem), é a mais próxima possível, no estágio atual da tecnologia, de cópias em película feitas a partir do negativo original 35mm. A obra-prima imperfeita de Glauber ganha, dessa maneira, nova sobrevida e reitera a importância da preservação adequada do nosso patrimônio audiovisual, em especial neste momento auspicioso em que a Cinemateca Brasileira retoma suas atividades.
O filme de Glauber foi tema do artigo abaixo, publicado na edição 90 da piauí, em março de 2014. Até agora restrito aos assinantes, o texto passa a ser de acesso livre. (EE)
Foi uma sessão triunfal. Começou depois da meia-noite e, pouco antes de terminar, quando o coro entoou O sertão vai virar mar/ e o mar virar sertão, irromperam aplausos entusiasmados, pontuados por gritos de “gênio, gênio!”. O abalo sísmico continuou madrugada adentro e perdura até hoje, retido na memória.
Quem assistiu à primeira exibição de Deus e o Diabo na Terra do Sol, só para convidados, em 17 de março de 1964, acreditou ter testemunhado uma revelação prodigiosa. O filme conta a saga do vaqueiro Manuel e de sua mulher Rosa, que, em fuga pelo sertão, primeiro aderem aos seguidores do beato Sebastião, depois aos cangaceiros liderados por Corisco, sempre perseguidos pelo justiceiro Antônio das Mortes, do qual fogem, no final, correndo em direção ao mar.
A ária da Bachianas Brasileiras nº 2, de Villa-Lobos, logo na abertura, acompanhando o plano aéreo do sertão; a figura de Antônio das Mortes e seu inusitado capote, dizendo que “um dia vai ter uma guerra maior neste sertão, uma guerra grande, sem a cegueira de Deus e do Diabo”; a câmera girando em volta de Corisco e Rosa, ao som da cantilena da Bachianas Brasileiras nº 5; os rodopios do cangaceiro, depois de dizer que “homem, nessa terra, só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino” – as cenas e os personagens do filme escrito e dirigido por Glauber Rocha arrebataram a plateia. O êxtase se repetiria dois dias depois, quando Deus e o Diabo foi exibido outra vez, no antigo cinema Ópera, no Rio de Janeiro, para atender aos insistentes pedidos suscitados pelo impacto da sessão anterior.
Passados cinquenta anos, essa reminiscência seria fiel aos fatos ou mera idealização? Os registros da época indicam que não se trata de uma fantasia pessoal. No dia seguinte à primeira pré-estreia, uma nota na coluna assinada por Carlos Swann, n’O Globo, dizia que a apresentação do filme foi emocionante: “Todas as pessoas presentes prorromperam em aplausos ao final da sessão e houve quem chorasse comovido pelo impacto e beleza da obra de Glauber Rocha, que pode ser comparada às melhores realizações do cinema mundial em nossos tempos.” O choro soa inverossímil, e a comparação, algo exagerada.
No comentário menos idílico de Fernando Ferreira, também n’O Globo, o crítico reclamava, irritado, de “uma água impertinente, constante e ameaçadora que caía do teto do cinema Ópera”, e descrevia “o falso ambiente de uma pré-estreia regada a aplausos intrometidos”, que também chama de “servis”. Apesar disso, cedeu aos encantos de Deus e o Diabo e concluiu dizendo que “é o filme mais importante do cinema brasileiro que conhecemos. Mas não é só isso: é também um documento importante da cinematografia moderna em todo o mundo, e uma impressionante revelação do talento de um realizador”.
Desde os 19 anos, Glauber Rocha já se destacava por sua presença e a virulência de seu verbo. Em Salvador, depois no Rio de Janeiro e em São Paulo, atuou como crítico de cinema e agitador de ideias, revelando vocação precoce de liderança e talento para cultivar relações pessoais, fazer amizades e acumular desafetos. Reconhecido como cineasta graças a Deus e o Diabo na Terra do Sol, ganhou ímpeto para desbravar seu caminho em festivais internacionais, cinemas de arte e televisões europeias. (Barravento, primeiro filme de Glauber, embora concluído em 1961, só foi exibido no Brasil em 1964, depois do lançamento de Deus e o Diabo.)
Na semana anterior às pré-estreias, o Departamento Cultural do Itamaraty havia selecionado o filme, por unanimidade, para participar da competição oficial do Festival de Cannes, que teria início no final de abril. A notícia também foi publicada na coluna de Carlos Swann, em 14 de março – aniversário de 25 anos de Glauber. Na véspera, o filme fora exibido de manhã, em sessão fechada, para alguns integrantes da equipe e críticos, no desaparecido cinema Vitória, no Centro da cidade.
Nessa mesma sexta-feira, 13 de março, a manchete da edição matutina do Última Hora, em caixa alta no topo da primeira página, foi: EXÉRCITO GARANTE POVO NO COMÍCIO DA REFORMA – HOJE ÀS 17:30 NA CENTRAL. No discurso de encerramento do comício, além de defender a necessidade de reformar a Constituição e fazer a reforma agrária, o então presidente da República, João Goulart, anunciou a estatização de todas as refinarias de petróleo e proclamou que “o caminho das reformas é o caminho do progresso e da paz social”. Reformar, Jango disse, “é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada, inteiramente superada pela realidade dos momentos em que vivemos”.
Na tela, Deus e o Diabo; na praça, o Comício das Reformas. A retórica do filme, mais radical; a do presidente da República, de viés reformista. “Mais fortes são os poderes do povo”, grita Corisco no filme, logo antes de morrer. Jango encerrou seu discurso ombreando governo e povo: “Hoje, com o alto testemunho da Nação e com a solidariedade do povo, reunido na praça que só ao povo pertence, o governo, que é também o povo e que também só ao povo pertence, reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira.”
A escolha do filme para participar da mostra competitiva do Festival de Cannes, da qual Vidas Secas (1963) também viria a participar a convite da direção do evento, abriu espaço na imprensa para Glauber Rocha. Em entrevista ao Jornal do Brasil, ele demonstrou ter os pés no chão: “Ir a Cannes é colaborar com a futilidade de Cannes. Este é um festival esnobe, festival de grã-fino, festival onde as grandes obras do cinema são sempre preteridas. Se Deus e o Diabo ganhar qualquer prêmio em Cannes, podem ficar certos de que não terei orgulho do prêmio.”
Um dos primeiros a escrever sobre Deus e o Diabo, no sábado seguinte às duas sessões inaugurais, foi o crítico Ely Azeredo, que desde o ano anterior atacava Glauber na Tribuna da Imprensa. A animosidade nascera em reação ao livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, publicado pelo cineasta em 1963. Depois de ter visto o filme, Azeredo voltou à carga, fazendo críticas ao caráter do diretor, mas declarando, ao mesmo tempo, que ele era “genial”. Quanto ao filme em si, considerou que “não tem a admirável coesão e o impacto realista” de Vidas Secas, “mas em pequeno e em longo prazo deve afirmar-se mais importante, mais tirador de chapéus para a revelação brasileira [sic] e, inclusive pelos possíveis excessos e defeitos, mais ‘sensação de festival’”.
O mês de março ainda não terminara quando foi realizado um debate sobre Deus e o Diabo, transcrito no primeiro livro dedicado ao filme, organizado pelo jornalista e cineasta Alex Viany, editado no ano seguinte. Muito embora o lançamento comercial só estivesse previsto para depois do Festival de Cannes, que terminaria em maio, os debates na época eram de lei, e, nesse caso específico, decorrência natural da repercussão das pré-estreias.
Alex Viany abriu o encontro dizendo que era um filme “surpreendente, tão acima de tudo o que se poderia esperar”; “uma explosão inesperada”; “uma fita revolucionária, ideológica e cinematograficamente”. O crítico Ronald Monteiro divergiu, declarando não ter encontrado “consistência nas personagens” e achado o filme “muito confuso”. Teria gostado que “fosse mais compreensível”, mesmo reconhecendo que “tem um ritmo muito movimentado e uma narrativa muito moderna”. A essas restrições, somaram-se “severas críticas”, feitas pela escritora Beatriz Bandeira, à “autenticidade das caracterizações, à fala dos personagens, ao uso da música”. “Deus e o Diabo na Terra do Sol dificilmente será compreendido pelas plateias normais, pelas grandes massas”, disse ela.
Em resposta, Glauber Rocha acatou “algumas observações”, mas defendeu a “autenticidade” de todos os personagens, cujas variações pertenceriam “a uma tradição literária do Nordeste”. No caso de Corisco, disse que iria “provar” sua autenticidade revelando a origem do nome do personagem – “se chamava Corisco porque ninguém acertava nele: andava rodando mesmo”. Para Glauber, Villa-Lobos era “um autor que filtrou de forma erudita uma temática popular brasileira” e todas as Bachianas usadas eram “de fundo sertanejo”.
Além de Alex Viany, Deus e o Diabo teve outros defensores aguerridos no debate, entre eles o cineasta Leon Hirszman. Segundo Hirszman, “havia o perigo de que ficássemos simplesmente atados ao realismo crítico, procurando fazer filmes realistas. Deus e o Diabo dá um salto, em relação a esse problema. […] O cinema brasileiro sai de um tom menor realista para um cinema épico”. Para ele, seria “o primeiro filme de autor do Brasil” que conseguiu “refletir e interpretar a realidade brasileira”.
O próprio Glauber falou nessa tarde, com objetividade e lucidez. Foi didático ao expor que o filme era uma fábula com uma lição de moral. Nas suas intervenções, disse que a narrativa, violenta e elíptica, era baseada na forma do cancioneiro popular que transforma em lenda a realidade do Nordeste. Mesmo sem ser realista, nada da história foi inventado, afirmou. Os fatos aconteceram e lhe foram contados. O beato e o cangaceiro são rebeldes – o primeiro, um rebelde metafísico; o segundo, anarquista. Antônio das Mortes, personagem derivado do western, em particular de John Ford, queria precipitar a guerra, “acabando com aquelas alienações e com ele próprio, vítima de tudo aquilo”. O mar é a obsessão do sertanejo, mas no filme o personagem não chega lá. Quem chega é o narrador, “mostrando o mar como uma abertura de tudo o que aquilo pode significar, inclusive de explosão revolucionária propriamente dita. Assim, o mar tem uma significação de liberdade ampla e de levante”.
Em síntese, era essa a visão de Glauber Rocha antes da avalanche exegética que nos meses seguintes envolveria Deus e o Diabo. No mesmo dia do debate, 24 de março de 1964, a primeira página de O Globo informava: A MULHER CARIOCA PREPARA A “MARCHA DA FAMÍLIA”: NO DIA 2, DA CANDELÁRIA À ESPLANADA.
É possível supor que, após o debate, Glauber estivesse confiante ao embarcar para a França, onde iria preparar a cópia legendada a ser exibida em Cannes. A boa acolhida superara as restrições ao filme. Em uma de suas intervenções, ele demonstrara bom senso e lucidez premonitórios: “A supervalorização do filme em termos individuais é uma coisa nociva para mim e para o cinema brasileiro. Não sou nenhum iluminado, não.” Cedendo, porém, à grandiloquência, afirmou que “o cinema brasileiro vai ser, dentro de pouco tempo, um dos cinemas mais importantes do mundo. Vai ser mesmo, porque as condições culturais e políticas do Brasil e a feliz coincidência histórica com um nível de consciência […] que o pessoal do Cinema Novo tem constituem a chamada coincidência histórica inevitável”.
Reagindo à previsão hiperbólica de Glauber, um pequeno texto sem assinatura, mas com indícios evidentes de ter sido escrito pelo respeitado crítico Antonio Moniz Vianna, foi publicado no Correio da Manhã no dia 26 de março. Insidioso, elogiava Deus e o Diabo, mas procurava diferenciar Glauber do Cinema Novo: “Glauber Rocha misturava-se, enquanto inédito, com a turma da aventura cinemanovista, essa aventura sem rumo, sem talento e sem decência. Deus e o Diabo na Terra do Sol ergue-se naquele deserto, em absoluta exceção, como um ponto luminoso ou uma torre – e já não é ‘cinema novo’, antes retoma a linha histórica iniciada por O Cangaceiro. […] O filme de Glauber Rocha, altivo ante as influências que recebeu e filtrou, constitui obra pessoal e de uma força por vezes extraordinária.”
Nos dias que se seguiram à viagem de Glauber à França, os acontecimentos políticos se precipitaram no Brasil. Apesar dos sinais de que estava para acontecer algo grave, alguns jovens ingênuos foram colhidos de surpresa ao constatar que a profecia atribuída a Antônio Conselheiro – “O sertão vai virar mar e o mar virar sertão” – não se realizara.
Na sexta-feira da Paixão, 27 de março, a primeira página do jornal Última Hora foi tomada por manchetes e notícias sobre a sublevação dos marinheiros: TENSÃO NO PAÍS COM A CRISE NA MARINHA – “3 000 marujos sublevados desacatam ordem de prisão”; outra manchete – REVOLTA DE 1910 PRESENTE EM 64 – era acompanhada por uma fotografia de João Cândido, chefe da Revolta da Chibata, ao lado do presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, José Anselmo. E no dia 31 de março, a manchete do jornal Última Hora foi: 10 000 SARGENTOS ACLAMARAM O PRESIDENTE NO AUTOMÓVEL CLUBE – JANGO: EU NÃO PERMITIREI A DESORDEM EM NOME DA ORDEM.
Em Paris havia uma semana, Glauber Rocha não testemunhou as ilusões perdidas nos primeiros dias de abril: a comemoração de jovens de lenço azul no pescoço, com metade do corpo para fora dos carros, a caminho do Palácio Guanabara, onde o governador Carlos Lacerda se entrincheirara; a chuva de papel picado jogado das janelas; o incêndio da sede da União Nacional de Estudantes, a coluna de fumaça negra, visível de longe, dissolvendo-se no céu; a procissão da Marcha da Vitória, ou Marcha da Família, com Deus pela Liberdade, na qual a multidão (de 800 mil pessoas, segundo uma manchete da época) festejou na avenida Rio Branco, no Centro do Rio.
Uma carta coletiva de 13 de abril, escrita por um grupo de amigos (reproduzida depois em Cartas ao Mundo, lançado em 1997), deu notícia a Glauber do “golpe militar que é apelidado pela imprensa reacionária de ‘revolução’ e a instauração de uma ditadura militar, apresentada como salvação da ‘democracia’”. Um dos autores comentava ter recebido notícia “que vocês estavam apavorados aí [em Paris], sem entender nada. Não se preocupe com isso, porque aqui ninguém entendeu também”. Através de Walter Lima Jr., um dos assistentes de direção de Deus e o Diabo, em carta do dia 19, Glauber soube que o editor “Ênio Silveira teve cassados os direitos políticos por dez anos. Está escondido. Cony escreveu meia dúzia de artigos metendo o pau no Exército. Foi ameaçado e mudou de endereço”.
As duas cartas aconselhavam Glauber Rocha a ficar em silêncio: “Não dê entrevistas erradas”; “Fique quieto e não assine manifestos”; “Abstenha-se de prestar muitas declarações sobre o problema brasileiro”; “Mantenha a cabeça fria” – recomendações que Glauber procurou seguir para assegurar a participação de seu filme em Cannes e garantir a possibilidade de voltar ao Brasil.
Dadas as circunstâncias, a cautela era justificada. Políticos tinham sido cassados pelo Ato Institucional nº 1, jornais foram invadidos, intelectuais estavam sendo perseguidos e prisões ocorreram em várias cidades do país. Em Pernambuco, as filmagens de Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, tinham sido interrompidas e o equipamento de filmagem fora apreendido pelo Exército. Quanto a Deus e o Diabo, o filme estava em situação anômala – fora escolhido pelo governo deposto para participar do Festival de Cannes, mas não correspondia à imagem do Brasil que o novo regime tentaria propagar. O temor de que viesse a enfrentar dificuldades para ser exibido tinha razão de ser.
O primeiro certificado de censura do filme é datado de 6 de abril, apenas dois dias úteis depois do golpe, sendo provável, portanto, que tenha sido encaminhado à censura ainda no final de março e que a liberação, autorizando o envio legal da cópia para a França e o lançamento comercial no Rio, não tenha levado em conta possíveis implicações decorrentes da mudança do regime.
No ambiente de caça às bruxas recém-instalado, porém, não tardou a ser feita uma denúncia de que Deus e o Diabo na Terra do Sol “atentava contra o sistema”, o que levou o Ministério da Justiça a submeter a obra à nova avaliação. Segundo depoimento do produtor Jarbas Barbosa, uma cópia de Deus e o Diabo foi apreendida pela Polícia Federal, por ordem do então coronel João Baptista de Figueiredo, futuro chefe da agência do Serviço Nacional de Informações, o SNI, no Rio de Janeiro. (Embora a instituição só tenha sido criada formalmente dois meses depois, em junho de 1964, o núcleo de militares e civis que deu origem ao SNI, chefiado pelo general da reserva Golbery do Couto e Silva, já funcionava no Rio.) Para decidir se o filme seria ou não proibido, formou-se uma comissão integrada por cinco militares e civis, presidida pelo general Octávio Alves Velho, recém-nomeado diretor da Agência Nacional, criada na década de 30.
Conforme depoimento do antropólogo Gilberto Velho, ele e seu irmão Otávio, filhos do general Velho, assistiram com um pequeno grupo de amigas e amigos à sessão que decidiria a sorte de Deus e o Diabo. No final da projeção, ouviram integrantes da comissão dizer que o filme “tinha que ser queimado imediatamente, destruído”. Prevaleceu, porém, a posição firme do general Velho em defesa da obra, que assim, por três votos a dois, escapou ilesa do seu primeiro embate com a ditadura.
As peripécias da liberação, porém, continuaram. Ao receber a informação de que o filme estava liberado, Jarbas Barbosa foi ao Serviço de Censura para obter o certificado, sendo informado de que a ordem, até então apenas verbal, precisava ser mandada por escrito. Procurou mais uma vez o coronel Figueiredo, e dele ouviu que “se mandaram apreender pelo telefone, poderiam liberar pelo telefone”. No Ministério da Justiça, um dos integrantes da comissão alegou que não poderiam “dar documento nenhum para liberar porque não existiu documento nenhum para prender o filme, foi por telefone”. A solução que o coronel Figueiredo propôs foi que o produtor convidasse o chefe da Censura para jantar no Clube Militar, naquela noite, para ouvir dele e do representante do Ministério da Justiça que o filme estava liberado. Assim foi feito: Deus e o Diabo na Terra do Sol obteve o certificado de censura e o episódio de vaudeville chegou ao fim.
Ao se aproximar a abertura do Festival de Cannes, marcada para 29 de abril, as cartas do Brasil devem ter acentuado a ansiedade de Glauber Rocha. Os amigos consideravam o prêmio uma tarefa – “O negócio é ganhar o prêmio e voltar para a luta”; “Manda bala, companheiro, e arranca esse prêmio”; “Um prêmio teu ou do Nelson por aí nos garantiria ainda mais. Faço figa desde já”.
Exibido em competição, nos primeiros dias do festival, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, foi bem recebido. Já Deus e o Diabo, programado para três dias antes do encerramento, provocou controvérsia. Segundo o enviado especial do Correio da Manhã, Sergio Motta, o filme “encontrou em Cannes defensores quase tão entusiastas quanto os que possui no Brasil”, mas a plateia “permaneceu com uma interrogação ao terminar a projeção. Não compreendeu inteiramente o que viu; mais ainda, não o sentiu”.
Luís Edgar de Andrade, enviado especial do Jornal do Brasil, escreveu que “a exibição de Deus e o Diabo na Terra do Sol não chegou a entusiasmar o público na sessão da tarde, mas provocou reação favorável na sessão da noite”. Assinalou também que “o diretor, que assistiu à sessão do seu filme à tarde em mangas de camisa, sentiu-se indisposto e não pôde comparecer, à noite, à entrevista oficial que é concedida à imprensa internacional”. De acordo com Motta, Glauber teria se recusado a dar a entrevista por ter “tomado a falta de aplausos do público como sinal de hostilidade e incompreensão”. Quaisquer que tenham sido as razões do forfait, deve ter pesado a intenção de evitar perguntas sobre a situação política no Brasil.
“O Brasil é o grande favorito” do festival, escreveu na época o Jornal do Brasil. De fato, Vidas Secas saiu vitorioso de Cannes – recebeu três prêmios não oficiais, inclusive o da Organização Católica Internacional do Cinema (Ocic). Quanto a Deus e o Diabo, o júri oficial teria discutido sua premiação “durante vinte horas”. No entanto, pressões políticas, “reviravoltas que entraram pela noite e terminaram violentas na madrugada” levariam o filme a ser preterido “pela alegria colorida da França” – Os Guarda-Chuvas do Amor (Les Parapluies de Cherbourg, 1964), de Jacques Demy, recebeu o Grande Prêmio do Festival, dado pelo júri presidido por Fritz Lang.
De volta ao Brasil, o fato de ter acabado de participar do festival não inibiu Glauber Rocha de retomar as críticas que fizera antes de embarcar, denunciando a decadência do evento – “um produto exclusivo da mistificação publicitária das grandes produtoras” – e do cinema “dos holofotes multicoloridos e das vedetes exóticas e temperamentais”. Em longo depoimento ao JB, fez restrições à maioria dos filmes com os quais concorrera, declarando que “a nouvelle vague francesa é outra mentira construída pelo sistema de distribuição das grandes revistas e jornais franceses”. Elogios, só para Antes da Revolução (1964), de Bernardo Bertolucci, exibido na Semana da Crítica, e A Passageira (1961–63), de Andrzej Munk, “que merecia o Grand Prix de qualquer festival”. Quanto à concessão do Grande Prêmio, “para isso estava no júri o velho Fritz Lang. E Lang, brigando com René Clément – cada um liderando seu grupo –, afrontou e ganhou a luta contra Deus e o Diabo na Terra do Sol. Em Cannes, ganhar um prêmio ultrapassa as possibilidades de um filme. Tudo entra em jogo, do favor à complacência, da política aos interesses industriais, da afetividade à simpatia, fatores que mudam violentamente o final dos resultados”.
Deus e o Diabo na Terra do Sol estreou no Rio, em catorze cinemas, no dia 1º de junho, menos de três semanas depois de encerrado o festival. A atmosfera mudara desde as pré-estreias no cinema Ópera. A utopia redentora do filme, prenunciando “liberdade ampla”, estava em descompasso com os novos tempos de autoritarismo. Ainda assim, a acolhida da crítica, de forma geral, reviveu o estado de euforia experimentado dois meses e meio antes.
O crítico Paulo Perdigão, depois de ter publicado um artigo, no final de março, dedicou outros dez ao filme entre abril e junho, no Diário de Notícias – caso único na imprensa mundial de overdose crítica. No primeiro da série, afirmava: “Nunca se fez no Brasil um filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol – e é difícil que existam muitos da sua estatura entre os que, de realização recente, afiancem no resto do mundo a vitalidade e a distinção da arte cinematográfica.”
No todo, o texto de Paulo Perdigão era mais comedido. Começava situando o filme em relação ao cinema brasileiro e assinalava um dos seus principais traços identitários – sua força e, ao mesmo tempo, um de seus flancos mais criticados. Trata-se, dizia Perdigão, de um filme que não conserva “vinculações de ordem direta” com o conjunto do cinema brasileiro. “Assim, sua primeira qualidade vem a ser a de corrigir as imperfeições, filtrar as influências e reter os caracteres válidos, perceptíveis, mas arrumados sem método do filme precursor, O Cangaceiro, de Lima Barreto – e desvia o rumo que, sob a influência mal captada deste, vinha tomando o gênero Nordeste, ou Northeastern.” Perdigão concluía dizendo que o filme “eleva-se à imponência de um cerimonial litúrgico ou da tragédia clássica shakespeariana – e dotado dessa envergadura e exuberância, proporciona um depoimento sacrílego, sensual, de beleza por vezes indescritível. Um filme que não se poupa em escrúpulos postiços, aflige e golpeia, arrebata e desmistifica, sacudido por fantástica volúpia criadora”.
“O melhor filme realizado no Brasil em muitos anos – ou, exatamente, o melhor depois de O Cangaceiro”, escreveu Antonio Moniz Vianna no Correio da Manhã. Elogio ferino, levando em conta o que o cineasta escrevera em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro sobre O Cangaceiro (1953): para Glauber, o filme tinha “densidade nula”, “paisagem falsa”, era “superficial”, “empolado” etc. E “Lima Barreto nada mais fez do que repetir um daqueles épicos mexicanos nos planaltos paulistas vestidos de Nordeste: e conservou o espírito melodramático, o pitoresco fácil, a chantagem dos grandes planos armados numa montagem de choque, que aproveitava efeitos de cinema russo e outros mais imediatos do cinema americano. Um western sem a grandeza humana e sem a pureza de um Paixão dos Fortes, de John Ford; uma epopeia sem movimento místico de No Tempo das Diligências, do mesmo Ford; um drama nacionalista sem o poder de convicção de um Alexandre Nevski, de Eisenstein; um canto de amor à terra, mesmo romântico, sem a autenticidade mais encontrada em alguns momentos de Emilio Fernández”.
Além da filiação a O Cangaceiro, o paternalismo de Moniz Vianna também deve ter ferido Glauber. A “não premiação de Deus e o Diabo na Terra do Sol [no Festival de Cannes]”, Moniz Vianna escreveu, “poderá mostrar-se benéfica, se concorrer para a redução de sintomas de autossuficiência que uma vitória possivelmente agravaria”.
Uma das poucas críticas negativas publicadas naquele momento foi a condenação moral do padre Guido Logger, do Serviço de Informações Cinematográficas da Ação Católica, reproduzida no jornal Luta Democrática. O filme, dizia o padre, “revela antes uma personalidade, não um cineasta”. E enfileirava restrições: “Tese marxista, ou anárquica, sempre confusamente lançada”; “Na defesa do ateísmo o filme funda-se apenas no fanatismo religioso, concluindo pela sua inutilidade”; “Como todo o filme é elaborado em meias teses, lançadas desordenadamente, a falha é coerente com o resto. O que não exclui a condenação da obra”.
Outro comentário duro foi o do diretor, crítico e fotógrafo B. J. Duarte, publicado na Folha de S.Paulo quando o filme estreou na capital paulista, no final de agosto: “A impressão que fica, ao acender das luzes depois da projeção […], é a de que Glauber Rocha deu um passo maior do que as pernas, claudicando grotescamente ao fim desse esforço no campo áspero do cinema. Seu filme é algo de deplorável em matéria de linguagem cinematográfica, […] narrativa fragmentada, descosida, muitas vezes incompreensível, eis o espetáculo de Deus e o Diabo na Terra do Sol, algo a que se assiste com enfado e fadiga, cujo final se recebe com alegria e desafogo. […] Primitivo, sem dúvida, seu filme o é; mas primário seria melhor qualificação. Primário na exposição do tema, primaríssimo em sua feitura e em seu acabamento, uma negação total do seu próprio título.”
Escrevendo no jornal Última Hora do Rio, Tati Moraes não poupou elogios, acompanhados da advertência de que a falta de empatia entre o filme e o público seria responsabilidade dos espectadores: “É preciso dizer mais uma vez que vê-lo é essencial […]. Consideramo-lo mesmo um filme-teste: quem não gostar dele alguma falha deve ter em sua sensibilidade.” E prosseguia: “Se realizado por um cineasta mais maduro, talvez não só tivesse menos força em sua indignação contra a injustiça, como acreditasse menos num futuro melhor. É altivo, sem concessões, veemente, às vezes confuso, como não podia deixar de ser, quando retrata a perplexidade de Manuel Vaqueiro em sua busca de uma solução para sua miserável vida. […] e depois, para a maravilhosa saída que ele avista, o símbolo… Um final de uma imensa beleza e imensa esperança. […] Para nosso gosto, Deus e o Diabo é, de todos os filmes brasileiros, o mais completo em todos os sentidos. Não poderíamos recomendá-lo mais ao público, mais do que recomendar, pedimos que não deixem de ir vê-lo, que não se privem de uma rara experiência em cinema.”
No mesmo dia, Ely Azeredo voltou a comentar o filme na Tribuna da Imprensa. Fazendo consideração de caráter pessoal com ar de denúncia, repetiu seus elogios rasgados ao filme: “Em Deus e o Diabo a militância marxista, superficial, não chega a ajudar nem a atrapalhar o que o autor leva a sério mesmo, que é o Cinema. […] Deus e o Diabo na Terra do Sol é revolução aberta e lúcida, com as mais potentes armas do homem-artista, e não a sujeição do homem e do artista aos bochinchos de maus odores gauchescos ou cubanos que nos preparavam outra forma de impasse. […] O resultado é um filme excepcional que muito pouca gente está vendo porque o público já se cansou de tudo que se anuncia sob o rótulo de ‘arte popular’, ‘arte social’ etc., inclusive por falta de uma autêntica revolta por trás do primarismo em alta. Deus e o Diabo sofre na bilheteria as consequências do vale-tudo ‘cinemanovista’. É uma constatação desagradável (mas necessária) de um fenômeno que não poderia ser mais inoportuno para o cinema brasileiro.”
Foi só depois de estar há quatro semanas em cartaz no Rio que a empresa distribuidora do filme requereu sua aprovação ao Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) do Ministério da Justiça, em Brasília. A essa incongruência se somaria outra – a menção feita por um dos censores federais aos “dignos colegas censores da Guanabara”, embora a censura estadual tivesse sido abolida em 1962. Enquanto o Serviço de Censura deliberava, o filme de Glauber participou, nos primeiros dias de julho, da Mostra Internacional do Cinema Livre de Porretta Terme, pequena cidade próxima a Bolonha, onde ganhou a Najade d’oro [Náiade de ouro], principal prêmio do festival. Do júri faziam parte, entre outros, Robert Benayoun, membro do movimento surrealista no pós-guerra e crítico da revista Positif, o crítico e historiador do cinema Marcel Martin, os cineastas Fernando Birri e Elio Petri.
Liberado sem cortes em 16 de julho, o filme recebeu a classificação “impróprio para menores de 18 anos”. Segundo um dos pareceres, continha “cenas de adultério e lesbianismo […] talvez dispensáveis” e “de maldade requintada e perversidade”.
Embora faltem dados, há indicações seguras de que, ao contrário do que é costume afirmar, a obra não teve grande sucesso comercial. O apelo de Tati Moraes a seus leitores, cinco dias depois da estreia, sugeria que não estava tendo bom público. E Ely Azeredo, no mesmo dia, foi mais direto, ao afirmar que “muito pouca gente está vendo” a fita, que “sofre na bilheteria”. Ao comparar o resultado de bilheteria com os fracassos de outros filmes que produziu na mesma época, o produtor e distribuidor Jarbas Barbosa contou que Deus e o Diabo “ainda deu alguma coisa”. O próprio Glauber escreveu “que o filme não fosse bem na Bahia eu já esperava. Não faz mal, a renda foi razoavelmente boa – e com as demais rendas do mercado o filme vai se pagando e é dos poucos que conseguem”.
Com escalas no México e nos Estados Unidos, Glauber partiu rumo à Itália, no final de 1964, em nova etapa do seu périplo intercontinental. Antes de viajar, mandou uma carta ao cronista José Carlos Oliveira, que a publicou no Jornal do Brasil. “O nosso cinema está ameaçado de morte”, dizia. E, depois de historiar o surgimento do Cinema Novo, continuava: “No momento em que o prestígio do Cinema Novo provoca financiamentos estaduais, leis federais, desperta interesses de produtores, sabe o que é que acontece no bojo do cinema nacional? Maliciosamente, sub-repticiamente, setores da produção aliados a outros setores oficiais, não ligados mas conduzidos pelo mesmo instinto de autoproteção quanto aos interesses comerciais e à própria mediocridade, começam a fazer a mais sórdida campanha sobre o que eles chamam de filme de arte, de filme de gênio, de filmes violentos, de filmes prejudiciais. E você sabe, meu caro Carlinhos, qual tem sido o maior exemplo negativo, qual tem sido o principal réu para esta inquisição subdesenvolvida? O nosso pobre Deus e o Diabo. ‘Cuidado – dizem – que não se repitam novos Deus e o Diabo!’ O negócio é fazer filmes doces, róseos, quadrados, neorrealistas ou americanos, imitativos da nouvelle vague ou comédias musicais. Vamos estimular o bom artesanato em função da cultura apimentada, vamos tirar o brinquedo das mãos destes meninos pretensiosos e geniais! Não é mentira não, por escandaloso que pareça! O nosso cineminha já está com ares de macarthismo! Eu, de um momento para outro, me vejo acuado, sem possibilidades de trabalhar. Acordo de manhã já pensando nas fofocas que poderão fazer nos ouvidos do Zé Luiz [Magalhães Lins, diretor do Banco Nacional, financiador da primeira leva de filmes do Cinema Novo]: Cuidado, que o Glauber Rocha é louco, irresponsável, transviado, anarquista, demagogo e até homossexual! O Cinema Novo é isto! Cuidado!”
A caminho da Itália, Glauber esteve em Acapulco, onde Deus e o Diabo foi exibido na seção informativa do festival e ganhou o prêmio da Associação dos Críticos Mexicanos junto com O Evangelho Segundo Mateus, de Pier Paolo Pasolini. Glauber foi também ao congresso da Fundação Interamericana das Artes, patrocinado pela Fundação Rockefeller, em Chichén Itzá, no Yucatán e, na cidade do México, visitou o Estúdio Churubusco, onde fez figuração em Simão do Deserto (1965), de Luis Buñuel.
Depois de passar por Los Angeles, voou para Milão, a caminho do Congresso Terceiro Mundo e Comunidade Mundial, em Gênova, realizado de 21 a 30 de janeiro de 1965, no qual fez a palestra “Cinema Novo e Cinema Mundial”, rebatizada depois de “Uma estética da fome”. Deus e o Diabo foi exibido no encerramento. Ao comentar o evento, Novais Teixeira, enviado especial de O Estado de S. Paulo, escreveu que “há na fita uma intuição cultural tão prodigiosa, um ímpeto de ritmo tão galopante, uns lampejos de expressão cinematográfica tão grandiosos que os próprios desacertos de realização são arrastados como pedregulhos pelo vendaval de uma inspiração que tudo leva de vencida. Este cabrito selvagem de insolências e desplantes, empolgado pelos sertões sociais e poéticos do seu país, merece a atenção brasileira, oficial e extraoficial. Há nele, latente, a força de um cineasta de dimensões internacionais. Se nos enganamos, logo se verá…”.
Mesmo considerando Deus e o Diabo na Terra do Sol “o principal réu de uma inquisição subdesenvolvida”, Glauber Rocha acreditava que o filme fosse “candidato natural” ao principal prêmio de 30 milhões de cruzeiros (equivalente hoje a cerca de 570 mil reais), a ser dado pela Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica (Caic), do então estado da Guanabara, em março de 1965 (conforme ele próprio declarou a Raquel Gerber no livro O Mito da Civilização Atlântica). Glauber soubera, porém, que “nosso tirano Governador [Carlos Lacerda] não gostou do filme e o prejudicará certamente […]: segundo suas [do governador] palavras textuais, ‘Não tenho dinheiro para estimular a vanguarda, ainda mais quando o cineasta pensa em estimular a luta de classes; entre a chanchada e a vanguarda há um longo campo, até mesmo o da mediocridade; sem a mediocridade não pode haver vanguarda’, e por aí foi dizendo besteiras… que fazer?” (Cartas ao Mundo).
Confirmando a previsão de Glauber, o grande prêmio, anunciado em 12 de março de 1965, não foi dado a Deus e o Diabo. A comissão formada por Carlos Lacerda, o secretário de Turismo, o diretor de Cinemas e Teatros, um representante do Banco do Estado e um quinto integrante indicado pelo governador atribuiu os 30 milhões de cruzeiros a Viagem aos Seios de Duília, adaptação de um conto de Aníbal Machado, dirigida pelo veterano diretor argentino Carlos Hugo Christensen.
Quatro meses antes, a propósito de Viagem aos Seios de Duília, Glauber Rocha escrevera no Diário Carioca que os “esquemas de trabalho” de Christensen “tomam ares estranhos, seu mundo interior, sua concepção das coisas enquanto diretor e produtor é anacrônica em relação ao fato cinematográfico brasileiro de 1964”. Para Glauber, Viagem aos Seios de Duília era um filme “antigo” com “intenções sensacionalistas”, que “não emociona, não transporta, mas não aborrece. É essa temperatura morna que mais tememos no Brasil”.
Quando a premiação da Caic foi anunciada, o secretário-executivo da comissão era o mesmo Antonio Moniz Vianna que considerara Deus e o Diabo na Terra do Sol inferior a O Cangaceiro. Dois dias antes do artigo de Glauber sobre Viagem aos Seios de Duília, ele fizera o elogio do filme de Christensen no Correio da Manhã: “Um dos filmes mais dignos e importantes entre os produzidos no Brasil nos últimos tempos, Viagem aos Seios de Duília é também raro em virtude de esquivar-se a qualquer concessão.” Para Moniz Vianna, “desde o início, a direção de Christensen já encontrou o verdadeiro tom dramático. […] Viagem aos Seios de Duília tem muitas virtudes, sobretudo uma narrativa delicada e coesa, em imagem e introspecção”.
Houve, nas palavras de Glauber, “um claro desejo de humilhação” por parte do governador ao “contrariar a opinião dos críticos” e reduzir seu filme “a honroso fim da fila, ao lado de Um Morto ao Telefone (1963), de Watson Macedo”. Ele sequer mencionou o segundo prêmio, de 10 milhões, dado a Procura-se uma Rosa (1964), adaptação da peça de Pedro Bloch dirigida por Jece Valadão, nem O Quinto Poder (1962), de Alberto Pieralisi, que também ganhou 5 milhões (equivalente hoje a cerca de 95 mil reais), mesmo valor destinado a Deus e o Diabo e a Um Morto ao Telefone.
Deliberada ou não, a premiação foi o segundo marco decisivo, depois do golpe de abril de 1964, do processo que levou à liquidação do Cinema Novo. Sobre a provável influência de Moniz Vianna no resultado, só é possível especular. A responsabilidade, em última instância, cabia ao governador. Além de emérito golpista, o autocrático Carlos Lacerda, um dos líderes civis do movimento de 1º de abril de 1964, tinha aspirações presidenciais e “se proclamou grande crítico” de cinema, nas palavras de Glauber Rocha (O Mito da Civilização Atlântica).
Com os 40% do prêmio a que tinha direito (equivalente hoje a cerca de 38 mil reais), Glauber declarou ter reformado suas notas promissórias e ido à luta “para arrumar a produção de Terra em Transe”, seu próximo filme.
Quarenta e oito horas depois de a premiação da Caic ser anunciada, no dia do 26º aniversário de Glauber, o cineasta se sentia “acuado”. Decorrido apenas um ano desde as memoráveis sessões inaugurais de Deus e o Diabo, ele dava sinais de ter sido golpeado e nunca deixou de se debater nos dezesseis anos seguintes.
Permanece vivo na memória o deslumbramento de quem assistiu a Deus e o Diabo na Terra do Sol aos 18 anos, em 1964. E hoje? O filme é uma relíquia valiosa ou desperta o interesse de quem o vê agora pela primeira vez?
A prova do tempo costuma ser impiedosa com filmes não realistas. No caso de Deus e o Diabo, a encenação estilizada – um dos seus aspectos mais originais e fascinantes – que sempre foi um obstáculo a sua boa recepção tornou-se uma dificuldade crônica com o passar das décadas. Síntese inédita, o filme funde múltiplos elementos – históricos, literários, musicais, cinematográficos etc. – para compor a narrativa da busca de libertação do vaqueiro Manuel. Mas o amálgama que se vê e ouve na tela, criado pela junção de componentes heterogêneos, algo novo quando o filme estreou, deixou de ser tão original.
Imperfeições, o filme certamente tem. Irregular, oscila entre sequências brilhantes e algumas encenações precárias, fruto do desnível de interpretação de alguns atores e da heterogeneidade de estilos visuais e narrativos, uns mais adaptados do que outros ao temperamento artístico de Glauber Rocha. Alternando momentos de narrativa elíptica e teatralizada – eficazes e de grande impacto – com outros em que a ação se estende e repete, Deus e o Diabo gratifica, mas também pune o espectador, levando-o inclusive a momentos de exasperação pela lentidão e redundância.
Pouco apto a formas narrativas usuais, Glauber Rocha costumava “divagar sobre os westerns e sua capacidade de dialogar com a plateia, sem conseguir, apesar do talento enorme, colocar em prática seus devaneios de cinéfilo e de fã” – observação aguda do cineasta David Neves feita em Cartas do Meu Bar. A maneira que Glauber Rocha encontrou de lidar com essa inaptidão foi se propor a reinventar o cinema – tarefa grandiosa fadada ao fracasso.
Raros filmes do Cinema Novo, na primeira metade da década de 60, procuraram estabelecer algum elo com o público. O projeto estético e político se sobrepunha ao resultado comercial. Predominava a crença messiânica de que os filmes se justificavam por si mesmos e que medidas protecionistas eram um direito adquirido dos cineastas. A falta de sintonia entre filmes e espectadores, além dos termos desiguais da competição no mercado exibidor, prenunciava o impasse que, a partir de 1965, levaria o cinema brasileiro a se tornar cada vez mais dependente do Estado.
Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a partir do golpe de abril de 1964, a fascinação pelo personagem de Antônio das Mortes, braço armado da Igreja e dos coronéis, tornou-se especialmente perturbadora. À medida que o regime ficava cada vez mais repressivo, como admitir a sedução exercida pelo exterminador de beatos, cangaceiros e seus seguidores? A voz soturna de Antônio das Mortes atraía e levava à identificação com o agente da repressão – conflito insuportável, que é um dos pontos mais fortes do filme.
No final de Deus e o Diabo, Sebastião e Corisco estão mortos. Manuel e Rosa são deixados para trás. O plano do mar, encerrando o filme, sugere uma libertação que, fora da tela, afinal não ocorreu. Glauber Rocha foi levado a fazer o caminho de volta, do mar para a terra, na abertura do seu filme seguinte – Terra em Transe –, e a confrontar mais uma vez dilemas que estavam além do seu alcance.[1]
[1] Este artigo contou com a inestimável colaboração do setor de documentação da Cinemateca Brasileira (CB) e da Cinemateca do Museu de Arte Moderna. Em especial, de Gabriela Sousa de Queiroz, da CB, de Gilberto Santeiro, curador da Cinemateca do MAM, e também de Adelina Cruz, pesquisadora do CPDOC da Fundação Getulio Vargas, aos quais agradeço.
*Atualizado em 16 de maio de 2022, às 18h
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