A barraca nova de Dilma chegou finalmente na quinta-feira, com cinco dias de atraso FOTO: ROGÉRIO REIS
Dilma contra o choque de ordem
A bagunça que beneficia atravessadores e políticos
Clara Becker | Edição 40, Janeiro 2010
A previsão de sol com nuvens, mínima de 22 graus e máxima de 37, para o sábado, dia 12 de dezembro, trouxe alívio para Dilma Ana Abdia. Ela estava preocupada com o déficit orçamentário depois de quase dez dias consecutivos de chuva. Às seis e meia da manhã, quando estacionou na avenida Vieira Souto para descarregar a Kombi e se aproximou do calçadão, Dilma viu que esse não seria um sábado qualquer. Aos 54 anos, dando duro em Ipanema há dezessete, constatou que o Choque de Ordem agora era para valer.
A operação da Secretaria Especial da Ordem Pública, a Seop, pretendia ordenar as praias do Rio. Ela proíbe fabricar, assar ou cozinhar alimentos. Estão banidos, portanto, o camarão no espeto, o queijo coalho e o milho cozido ou assado. Proibidos estão também o frescobol e o futebol perto do mar. Ocorre que tudo isso já estava proibido desde a primeira gestão de Cesar Maia na prefeitura. O que o atual prefeito pretende é, na aparência, botar fiscais para fazer valer a lei. Para além das aparências, o Choque de Ordem nas praias visa beneficiar grandes empresas, que serão fornecedoras exclusivas aos barraqueiros, e velhos aliados do prefeito, que servem de atravessadores.
Para fazer cumprir as normas, a prefeitura diz que colocará na areia e no calçadão 400 fiscais adornados com uma parafernália vistosa: patinetes elétricos, picapes, reboques, caminhões, carros elétricos, Tendas Gerenciais e Operacionais e um contêiner, no Jardim de Alah, que servirá de Centro de Operações Regional.
O sol ainda não tinha acabado de nascer e na praia já se encontrava quase uma centena de barracas espalhadas nas areias. O novo kit dos barraqueiros, que compreende uma barraca, duas caixas isotérmicas, trinta guarda-sóis vermelhos, sessenta cadeiras amarelas e dois suportes para lixo, fora distribuído na madrugada. A aparelhagem foi recebida com um misto de revolta e curiosidade. Miguel recebeu um contêiner a menos e no que veio a fibra já estava rachada. A barraca da Janaína estava torta. “Onde é que esta barraca vai aguentar o sudoeste?”, perguntou ela.
Denise, uma senhora de 65 anos, mais de quarenta de praia, que diz ser a primeira barraqueira mulher de Ipanema, apontou chorando para um furgão. Nele estavam seus mais de 100 guarda-sóis e 200 cadeiras, que a partir daquele dia estavam proibidos.
Sem ninguém para dar explicações e nenhum tipo de identificação no novo material, os barraqueiros não sabiam qual era a barraca de cada um. Como no recadastramento o ponto de origem não foi respeitado, muitos deles tiveram seus pontos trocados.
Jorginho, que trabalha há trinta anos no ponto gay de Ipanema, em frente à rua Farme de Amoedo, foi mandado para o Posto 9. “Quero meu ponto de volta, os gays são honestos e amigos, consomem muito e não dão calote”, disse. Denise e Vânia tampouco sabiam o que fazer: suas licenças tinham ambas o mesmo número, 272, e não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo.
Dilma não recebeu nem a barraca padrão nem a tenda provisória. No seu ponto, que só andou 3 metros para a direita, tinha apenas meia estrutura de uma tenda. Dilma não teve dúvidas: tirou a “caveira” e montou sua barraca antiga com a lona do lado do avesso. Os clientes de Dilma, a maioria conhecida pelo nome, não tiveram dificuldades em encontrá-la. Já fregueses de outros barraqueiros ficaram desorientados com a falta de identificação. As cadeiras idênticas também impossibilitam que os barraqueiros saibam quem está consumindo em qual barraca. O controle, já precário, ficou ainda mais confuso.
Às oito horas da manhã, chegou uma banhista com dois poodles e um golden retriever. Os cães correram na areia e tomaram banho de mar, apesar da proibição. E beberam água direto de um coco, que havia sido proibida pelo secretário da Ordem Pública, Rodrigo Bethlem. Segundo os barraqueiros, ele seria admirador de uma empresa que vende água de coco em caixinhas. A gritaria foi tanta que Eduardo Paes voltou a autorizar a venda de cocos. Tampouco foram confiscadas as raquetes do frescobol ou bolas de quem se exibia à beira-mar. Vendiam-se queijo coalho e milho.
Às oito e meia os primeiros fiscais passaram, Dilma reclamou, e disse que trabalharia com o material antigo, sim. Eles verificaram a licença e foram embora. A fiscalização passou ainda mais duas vezes até as onze da manhã e mais uma às quatro da tarde. Na terceira mandaram que Dilma retirasse a propaganda da cerveja de suas caixas de isopor. Os barraqueiros tiveram que arranjar tinta e Color Jet para cobrir a publicidade.
Quem está por trás do choque de desordem é a PróRio, uma federação composta por quatro associações de barraqueiros. O presidente da entidade, João Marcello Barreto, nunca foi barraqueiro, longe disso. Ele é filho de João Barreto, presidente da Orla Rio, empresa que tem a concessão dos quiosques cariocas. Não é pela paisagem que a família Barreto gosta da praia. Segundo uma pesquisa de 2006, a economia da praia movimenta 80 milhões de reais por mês.
O deputado estadual Paulo Ramos, que move ações contra a empresa desde 1999, acredita que as novas medidas aprofundam a privatização da orla. “Os quiosqueiros são explorados e só podem vender os produtos que fazem contrato com a Orla Rio”, disse ele. “Já deveria ter havido nova licitação, mas o contrato da empresa é sempre renovado automaticamente.”
A PróRio disse que os barraqueiros não são obrigados a vender com exclusividade mercadorias das empresas que irão arcar com os custos das novas barracas. Mas, no convênio assinado por João Marcello Barreto e pelo secretário Rodrigo Bethlem, lê-se que os barraqueiros devem vender “exclusivamente produtos provenientes das empresas” que participam no negócio.
O depósito previsto no convênio para guardar e limpar os novos apetrechos ainda não foi feito. Por isso, o material que seria entregue todo dia às seis da manhã e recolhido às oito da noite dormiu na praia. Gerber, que tem barraca no Leblon, deu pela falta de dez barracas e dez cadeiras quando chegou à praia no dia seguinte. “Eles não podem exigir que eu durma na praia para tomar conta da barraca”, disse.
No fim do dia, Dilma ficou feliz por não ter recebido o material novo: não teve que se preocupar em abandonar as coisas na areia. A nova barraca só chegaria na quinta-feira, com cinco dias de atraso. Já anoitecendo, Miguel foi realista: “Já vi tudo, hoje pode um pouco, amanhã vai poder mais ainda e quando a fiscalização for embora em março vamos poder mais do que nunca”, disse ele, rindo.
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