Não estou sozinho: fui abandonado. Minha ex-mulher roubou-me a pele depois de um mês de casamento, cheia de indiferença pelo resto do meu corpo e orgulhosa por falar um pouco de francês ILUSTRAÇÃO: STANZE © LORENZO MATTOTI
Divórcio
A gente se abraçava o tempo inteiro também porque precisava conservar a pele. Abraçava meus amigos e minha pele se prendia ao resto do corpo
Ricardo Lísias | Edição 62, Novembro 2011
Dor e solidão são muito diferentes. Para me sentir realmente sozinho, preciso estar longe do meu país e não compreender nem uma palavra do que dizem. Nas poucas vezes em que senti uma dor muito intensa, estava perto das pessoas com quem convivo. A solidão pode não ser ruim. Uma vez, em uma ruazinha de Bonn, me senti muito sozinho, mas a vontade de chorar veio, estranhamente, da sensação de vitalidade que me invadiu. Estou longe de todos, não entendo nada do que dizem, mas daqui a alguns dias volto para casa. Sinto-me vivo e protegido.
Na última vez em que senti dor, fui descarnado. Se fosse uma tortura física, teria sido mais fácil. Minha pele se separou do resto do corpo. Eu andava lentamente em uma avenida bastante movimentada de São Paulo e estava sem pele. Também compreendia todas as palavras. Ninguém tentou conversar comigo, outra característica da dor violenta. Entrei no metrô e, em um vagão quase cheio, comecei a chorar. Tinha perdido a pele. Todo mundo ali, no vagão do metrô em que entrei descarnado, falava português. Ninguém me olhou, outra característica da dor profunda.
Também me senti sozinho na Polônia e aniquilado quando recebi uma ligação avisando que meu grande amigo André tinha se enforcado. Mas dessa vez a dor não me descarnou porque todos nós conversamos. A gente se abraçou muito no enterro do André.
Agora, nessa dor sem fim, ninguém me olha. Também não posso pedir ajuda porque a dor é tão grande que meus amigos e minha mãe não suportariam. Só poderei abraçá-los quando a dor for menor e tiver recuperado ao menos uma parte da minha pele.
Estou chorando em um vagão quase cheio do metrô de São Paulo e ninguém me olha. Não estou sozinho: fui abandonado. Minha ex-mulher roubou-me a pele depois de um mês de casamento, cheia de indiferença pelo resto do meu corpo e orgulhosa por falar um pouco de francês.
Descobri a crueldade onde eu esperava o amor.
Em Bonn me senti sozinho. Mas aqui está outra diferença da solidão para a dor: eu sabia que, de um jeito ou de outro, encontraria o caminho de volta. Agora, sem pele no metrô quase cheio de São Paulo (devem ser quatro da tarde), estou certo de que vou morrer.
Da Alemanha, arranjei uma passagem para Paris. Comprei um jornal local, sentei no trem e tive vontade de rir. Não sei nada de alemão, o que vou fazer com esse jornal? No entanto, rir de verdade, gargalhar feito um louco foi o que fiz em Paris.
Entrei no Louvre e fui direto à sala da Monalisa. Olhei aquele quadrinho e achei a mulher feia. Fiquei com vontade de rir. Mas quando vi que três ou quatro pessoas filmavam o quadro, aquela gente filmava a Monalisa, eles estavam parados e perplexos filmando um quadro!, morri de rir. Cruzei os corredores do Louvre gargalhando sem controle. Logo eu que não gosto quando as pessoas se descontrolam. Piores são os tipos bem-sucedidos que viajam para o exterior para ir a todos os museus de Paris, Nova York e Londres. Pessoas que viajam para aprender nunca vão saber nada.
Mas isso não é transcendência. Nem museu em Paris é arte. A fila na frente da Notre Dame muito menos. O esplendor não é um clichê. Transcendência é o que o Dusão, um cara que detesto, fez no funeral do meu amigo André.
Quando meu amigo se enforcou, senti de tudo. Dor, solidão, medo, culpa e arrependimento. Três dias antes bati o telefone para não ouvir mais as loucuras dele. Nessas situações, começam a voltar aqueles filminhos das coisas que fizemos juntos. Estou falando de amor.
Foi um funeral com gente nova. Muitos de nós estávamos no primeiro emprego. A gente sabia que a vida tinha acabado de mudar e, por isso, não parávamos de nos abraçar.
A gente se abraçava o tempo inteiro também porque precisava conservar a pele. Abraçava meus amigos e minha pele se prendia ao resto do corpo.
Agora, não. Estou descarnado no metrô, ninguém me abraça e a dor é grande. Queria muito estar sozinho em Bonn, ou em uma pracinha na Cracóvia, olhando o letreiro de um ônibus naquele alfabeto estranho e me perguntando: Onde estou?
Aceito ficar sozinho, mas quero minha pele de volta. Solidão é um sentimento que suporto, mas não posso ser descarnado.
Eu e os amigos do André nos abraçávamos para manter a pele. A 1 metro da gente o corpo enforcado do André parecia me dizer: a sua pele está aí. Já não lembro se o abracei, mas até hoje sinto o momento em que segurei, no funeral, as mãos mornas do meu grande amigo enforcado.
Um pouco depois, o Dusão transcendeu. A gente estava se abraçando, ele olhou para o alto e começou a berrar: Senhor Papa, senhor Deus, senhor Buda e todos vocês, Senhores Sagrados, o André se enforcou sim, ele se matou mesmo, mas ele vai para o Céu. O André se matou, mas ele vai para o Céu.
Todos concordamos.
Não me sinto sozinho. A minha pele me abandonou. Perdi o controle da minha vida. Por isso, gosto quando estou comedido: o mundo se fecha e a minha pele não foge. A verdadeira arte é silenciosa, como a literatura. Não há nada de artístico no que estou fazendo no vagão quase cheio do metrô de São Paulo. Estou descontrolado, chorando sem parar.
Pessoas controladas gostam de se fechar em um quarto. Depois que se trancam, a pele perde a tensão. Eu a abraço. Aos poucos vamos nos soltando. Demora, mas contemplo quem me controla. Nós dois nos olhamos e aos poucos o controle diminui. Então por fim a pele explode e nos descontrolamos. Ejaculo.
Agora, porém, estou na rua chorando com o corpo inteiramente descarnado.
Tenho que sair do metrô. Não estou sozinho: minha ex-mulher me descarnou. Nada disso tem ligação com o André. Tem sim: se estivesse vivo, eu telefonaria e, depois de duas frases, meu amigo me interromperia: Ricardo, fica onde você está, vou pegar um táxi para te encontrar. O meu amigo André nunca me abandonou, mas o deixei sozinho no pior momento da vida dele.
Na rua, procurando minha pele e sem ninguém para olhar para mim, começo a me lembrar do André. A lembrança mais forte é a de como ele era bonito. O André era um homem lindo. Eu não me importava de andar ao lado dele: tinha orgulho. Ele é meu grande amigo. As meninas olhavam doidas para ele. Esse cara é meu amigão.
Minha pele está mais perto. Penso em como o André era bonito e finalmente sinto algum calor. Antes de ficar medonho por causa dos remédios, o André era um homem lindo. Minha pele talvez volte.
A gente às vezes ia a uma casa de massagem. O André sempre escolhia a mesma garota. Aline, digamos assim. Para respeitá-lo, nunca quis que ela me massageasse. Minha pele está voltando.
Na terceira ou quarta vez, quando chegamos, a moça da portaria, mal conseguindo disfarçar, pegou o interfone e avisou: Meninas, aquele cara voltou. Aquele cara era o meu amigo André. Acho que elas se ouriçaram. Quem será que o homem lindo vai escolher? Ele escolheu a Aline.
Estou imaginando onde deve estar hoje essa Aline, cinco anos depois, quando perdi a minha pele e o André morreu.
Na rua, sinto-me um pouco melhor. O metrô de São Paulo é limpo, mas nivela todo mundo. Museus fazem isso com a arte. Eu amei o metrô de Paris. Estava apaixonado. Estou sem pele.
Se encontrasse a Aline do André, talvez ela pudesse me falar dele. Faz cinco anos, mas ele era bonito o suficiente para que uma mulher jamais o esquecesse. Qualquer mulher. Concentro-me para segurar os soluços e lembrar o endereço da casa de massagens. Meia década apaga muita coisa, mas não tudo. Tenho medo de que nem uma vida apague tudo.
Na recepção, pergunto se a Aline ainda trabalha aqui. Temos uma Aline. Meu coração dispara. Vou para o quarto e, como ela demora, pego essa folha para escrever. Estou sem chorar há quase uma hora.
A porta se abriu. A Aline me olha através do espelho. Escrevendo aqui? Tenho medo de responder. Como todas, ela aparece com uma roupinha vulgar, mas tem um sorriso ingênuo. Está se aproximando aos poucos. Não me viro e sinto seus dedos e os seios arranhando levemente minhas costas. Como estou sem pele, dói um pouco. Ela percebe e para.
Você trabalha aqui há muito tempo? Uns seis meses, responde. Então não é a Aline do André… Fico com vontade de chorar. Paguei, posso fazer tudo com você? Nem tudo. Ela se deita e me olha. Deito-me ao lado e ela curva o corpo, deixando as costas para mim. Abraço-a e ela ensaia um movimento erótico que, na mesma hora, interrompo.
Fica em silêncio e tenta dormir, peço. Ela me olha espantada através do espelho, e fecha os olhos. Cubro-a com um lençol que tinham deixado ali. Não estou chorando, minha pele não voltou, mas sinto afeto por uma mulher de novo. É uma puta. A mortalha está bem colocada, mas protejo um pouco mais o pescoço da Aline. Ela sorri como minha ex-mulher fazia. Fico olhando-a fingir o sono.
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