Bolsonaro e a PF: “As coisas têm um limite. Ontem foi o último dia (...) Acabou, porra!” CREDITO: ALLAN SIEBER_2020
Dois mil e vinte
George Orwell e o fascismo brasileiro
Fernando de Barros e Silva | Edição 165, Junho 2020
“O povo acreditará no que a mídia lhe disser para acreditar – George Orwell.” A frase atribuída ao escritor inglês circulou com extremo sucesso pelas redes sociais durante a campanha presidencial norte-americana, em 2016. Era, como se descobriu depois, um dos inúmeros memes veiculados pelas tropas de desinformação russas (os chamados “exércitos de trolls”) para favorecer a eleição de Donald Trump. A delinquência, neste caso específico, estava no fato de que Orwell jamais disse tal coisa. A autoria da frase é inventada. “Roubaram a autoridade moral de seu nome e a transformaram numa mentira para o mais orwelliano dos fins: a destruição da crença na verdade.” Quem narra o episódio é o veterano jornalista George Packer, autor de vários livros, num ensaio chamado O Duplipensamento É Mais Forte do que Orwell Imaginava: O que 1984 Significa Atualmente. O ensaio foi publicado pela revista The Atlantic em julho de 2019 e incluído, ao lado de outros textos críticos, na edição comemorativa do romance que a Companhia das Letras lançou no Brasil.
1984 é a mais famosa distopia produzida pela literatura no século XX. Logo que saiu, em 1949, no início da Guerra Fria, a obra foi lida pela maioria dos resenhistas como uma crítica ao regime soviético. Orwell teve tempo de dizer, antes de morrer, vítima de tuberculose, no início de 1950, que não havia se inspirado em nenhum governo específico; seu livro era antes uma sátira, sombria e devastadora, de tendências totalitárias no mundo ocidental, inclusive no ambiente intelectual. “Se não for combatido, o totalitarismo pode triunfar em qualquer parte”, disse. Nas palavras de Packer, Orwell entendia seu último romance como um alerta, não como uma previsão.
A despeito disso – e da fama que alcançou –, 1984 foi muitas vezes objeto de reparos: “Orwell entendeu errado. As coisas não saíram tão mal. A União Soviética agora é passado. A tecnologia é libertadora”, enumera Packer, recolhendo argumentos ouvidos por aí. Isso fazia mais sentido até 2016. A chegada de alguém como Trump à Presidência dos Estados Unidos – e a forma como ela se viabilizou, catapultada pela terra sem lei das novas redes sociais – deu ao pesadelo orwelliano uma nova encarnação.
Quem afinal entendeu errado foram os polianas da globalização liberal. À luz do que ocorre hoje em várias partes do mundo, a ideia de que a tecnologia é libertadora era no mínimo precipitada. Parece ser exatamente o contrário: a democratização das comunicações (cada um fala o que quiser, para quem quiser, na hora que quiser, e ouve ou lê o que quiser, quando bem entender) traz com ela possibilidades novas e virtualmente infinitas de manipulação da informação. Vivemos, para acompanhar Packer, num ambiente em que não há carência, mas um exagero de informações, a partir de um exagero de fontes pouco ou nada confiáveis; um ambiente ultrafragmentado, no qual impera não o excesso de autoridade, mas o seu desaparecimento. É o mundo em que surgem os “engenheiros do caos”, título do livro do cientista político Giuliano Da Empoli sobre a máquina de fabricar fake news e a indústria da pós-verdade. Um mundo no qual ficou muito difícil discernir entre liberdade de expressão e licença para delinquir.
Sem querer já estamos falando do Brasil de Jair Bolsonaro. Em 1984, temos o Ministério da Verdade, cuja missão é propagar a mentira, falsear a história e destruir informações. Temos o Ministério do Amor, onde o protagonista é submetido a torturas dilacerantes. Por aqui, temos hoje um cortador de lenha no Ministério do Meio Ambiente. Seu propósito, como deixou claríssimo na reunião de 22 de abril, é facilitar o caminho para a devastação ambiental. Mais orwelliano, impossível. O ministro da Educação não sabe escrever. É uma figura de boçalidade rara, capaz de sugerir ao presidente, na presença de seus pares, a prisão dos “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal. Abraham Weintraub consegue se destacar mesmo nesse timaço de notáveis. O Ministério da Saúde, por sua vez, foi sendo desvirtuado ao longo da pandemia, até o ponto em que desistiu de se pautar pela ciência para se transformar numa caixa de ressonância da crença mística (e criminosa) do presidente nos poderes da “cloroquina, cloroquina, cloroquina de Jesus”. Bolsonaro empilhou no comando provisório da pasta militares sem nenhum conhecimento na área. Os burocratas do Estado de Oceânia teriam gosto de ver do que é capaz um matuto fanático de extrema direita quando chega ao poder num buraco quente da América do Sul.
No romance de Orwell, o duplipensar se caracteriza pela capacidade de “dizer mentiras deliberadas e ao mesmo tempo acreditar genuinamente nelas”. Bolsonaro e seus asseclas são graduados nisso. A novafala entre nós opera pela apropriação de conceitos e a inversão do sentido das palavras, onde liberdade significa prisão, democracia significa ditadura, liberdade de expressão significa fake news. A linguagem também sofre um processo de degradação no bolsonarismo. Não me refiro aos palavrões, essa cafajestada de botequim. As reuniões do finado miliciano Adriano da Nóbrega em Rio das Pedras talvez fossem menos fornidas de expressões chulas. Mas deixemos isso de lado. Fiquemos com o que é substantivo.
Ao defender que o governo precisa “escancarar a questão do armamento”, Bolsonaro justifica sua cobrança aos ministros dizendo: “Eu quero dar um puta de um recado para esses bosta! Por que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura!” Os “bosta”, como se sabe, são prefeitos e governadores, e a “ditadura” são as medidas de isolamento social. A retórica da defesa da liberdade, de uma suposta resistência democrática, é, na verdade, uma orientação de governo para que se apresse a formação de milícias civis, de falanges dispostas a sair dando tiros nas ruas por Bolsonaro, se ele assim convocar. Benito Mussolini pregava exatamente a mesma coisa na Itália fascista. Aqui ao lado, na Venezuela, Hugo Chávez e Nicolás Maduro também armaram a população civil para precipitar a formação das milícias bolivarianas.
No final de maio, quando a Polícia Federal cumpriu os mandados de busca e apreensão no inquérito das fake news, vários dos alvos reagiram com ameaças ao ministro Alexandre de Moraes e desafios ao STF. “Tribunal do Reich”, disse o ex-deputado Roberto Jefferson, eterno chefe de milícia da fisiologia parlamentar. Weintraub comparou a ação da PF à Kristallnacht, o terrível ataque dos nazistas contra judeus na Alemanha, em 1938, nada menos. E o blogueiro Allan dos Santos, em tuíte endereçado diretamente a Bolsonaro, disse ser “NECESSÁRIO PRENDER esses tiranos”, referindo-se aos ministros do STF. No dia seguinte, em discurso na entrada do Palácio da Alvorada, onde costuma destratar jornalistas, Bolsonaro fez eco à ousadia dos investigados que lhe apoiam: “As coisas têm um limite. Ontem foi o último dia (…) Acabou, porra! Não dá para admitir mais a atitude de certas pessoas individuais.” A “pessoa individual” que o presidente ameaçava era Alexandre de Moraes. Na novafala bolsonarista, tais agressões significam “equilíbrio e respeito entre os poderes da República”.
Os fascistas brasileiros incensados por Bolsonaro se dizem vítimas do fascismo. Os inimigos da democracia que cercam o presidente da República se dizem vítimas da tirania. O bolsonarismo injeta doses cavalares de truculência, delírio e morbidez no roteiro de um filme que já conhecemos. Não há hipótese de final feliz.
Acabo de receber um meme. Diz o seguinte: “As instituições estão funcionando e a democracia está consolidada no país – George Orwell.”
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