ILUSTRAÇÃO: ©HERGE_MOULINSART
E até parece que o passado é hoje
O Brasil perdeu no mar a carga útil que o VSB-30 levou ao espaço
Marcos Sá Corrêa | Edição 11, Agosto 2007
(Continuação da seção Chegada) A viagem cósmica do VSB-30 durou cerca de meia hora. Era o tempo previsto para subir a 242 quilômetros de altura, fazer uma curva na órbita terrestre e cair, como um ponto de interrogação sem fim, a cerca de 90 milhas náuticas da costa maranhense. Mais de 300 pessoas assistiram à decolagem do foguete em terra. No mar, não havia ninguém para esperar sua cápsula.
A amerissagem fechou, com êxito, a primeira parte da Operação Cumã II, a mais problemática. Ela ocupou na Agência Espacial Brasileira 200 especialistas, durante dois anos. Envolveu testes do foguete no Brasil e na Europa. Exigiu, até a última hora, ajustes finos da trajetória do foguete, por mudanças do vento. E, para cercar as previsões meteorológicas pelos sete lados, na véspera do disparo os cientistas consultaram a vidente Adelaide Scritori, da Fundação Cacique Cobra Coral, “luz que ilumina os fracos e confunde os poderosos”.
Tudo feito , como se vê, no maior rigor possível, para prevenir o chabu que em 2003 carbonizou um foguete na Base de Alcântara. Cumã é uma fruta, um peixe e uma baía da região. Mas também significa fuligem.
Concluído o vôo, a etapa seguinte parecia até prosaica. Tratava-se de catar no meio do Atlântico os módulos de carga do VSB-30, enfrentando um ambiente que, bem ou mal, o engenho humano domina há pelo menos 4.607 anos, quando os egípcios deixaram registrada para a posteridade um cruzeiro marítimo à Fenícia, para negociar madeira.
É visível que, no resgate, as precauções foram menores. O comando da operação mudou de mãos um dia antes do lançamento, passando do coronel Fernando Ventura ao major Anderson de Oliveira Júnior. O inferior hierárquico pegou a coordenação de uma equipe com 300 pessoas, um navio da Marinha, dois aviões Bandeirantes de patrulhamento costeiro, pára-quedistas, homens-rãs e dois helicópteros.
Tudo para trazer à base, são e salvo, um cone pouco maior que um botijão de cozinha, equipado com pára-quedas, flutuadores, luzes de localização e sinais de rádio. Em suas entranhas, além da bandeira brasileira em miniatura, viajavam giroscópios, acelerômetros e outros instrumentos capazes de decifrar, em seis minutos e doze segundos, os enigmas da vida em baixa gravidade, como a “cinética das enzimas” ou a “difusão térmica de nanopartículas metálicas em materiais vítreos”.
Presume-se que seus dados não obrigassem os jornais a reescreverem as manchetes do dia seguinte, nem desviassem a atenção nacional dos temas que a ocupavam naquele momento, como o desastre no aeroporto de Congonhas e o terçol do presidente Lula. Mas seis universidades – inclusive a de Hohenheim, na Alemanha – e quatro centros tecnológicos do governo brasileiro apostavam nada menos de nove experiências científicas naquela barafunda de fios e sensores. E, nesse ponto, o vôo da Cumã II acabou como acaba no país a maioria dos vôos ultimamente – cancelado.
A turma do resgate voltou de mãos abanando mais de cinco horas depois do lançamento. O tenente-coronel Fausto Ivan Barbosa, porta-voz da operação, avisou que não havia mais “chance alguma de encontrar a carga útil”. Isso ao mesmo tempo que a página oficial da Agência Espacial Brasileira anunciava o sucesso da carga inútil – ou seja, do foguete, que é tudo o que se desmanchou no ar para levar a sonda ao espaço.
Ao comunicar o fim das buscas, o tenente-coronel Barbosa deu o caso por perdido. Textualmente: “A maior probabilidade é de que o módulo tenha afundado”. Mas, dali para a frente, foi como se o VSB-30 flutuasse para sempre. Uma semana depois da descida, a página oficial ainda falava da Cumã II como se ela vagasse num ponto qualquer do futuro, onde os verbos perdem o sentido do tempo: “Cerca de 80 metros antes de cair no mar, a carga útil com os experimentos não é mais vista pelos radares do Centro de Lançamento de Alcântara devido à curvatura da Terra. No entanto, os dados de GPS (posicionamento por satélite) informam com exatidão o local da queda”, repetia a agência, em fins de julho.
Na internet, aparentemente, tudo podia acontecer: “É importante que haja visibilidade na água caso os experimentos submerjam, tanto que esse fator é analisado antes mesmo do lançamento”. Um clique, e a página da agência espacial proclamava o “sucesso” da missão. Outro, e a notícia do lançamento, com pequenos retoques, voltava como um “êxito parcial”, pois “houve oscilações no sinal de telemetria, o que dificultou a operação de resgate”.
Não foi por inexperiência. O programa espacial brasileiro tem longa história. Data de 1961, quando o governo Jânio Quadros criou o GOCNAE, Grupo de Organização da Comissão Nacional das Atividades Espaciais. Isso na mesma ocasião em que o presidente John Kennedy prometia, nos Estados Unidos, botar um americano na Lua até o fim daquela década. A NASA tinha então três anos de idade e estava metida numa enrascada acachapante. O astronauta soviético Yuri Gagarin acabara de constatar, sobrevoando o planeta a 300 quilômetros de altitude, que a Terra era azul.
Há crises que servem para alguma coisa. Os americanos Neil Armstrong e Edwin Aldrin desembarcaram na Lua em julho de 1969, quase seis anos depois do assassinato de Kennedy, mas meio ano antes de vencer o prazo que ele dera à NASA. O tempo passou. Os tripulantes da Apolo 11 são hoje quase octogenários. E aqui o programa espacial também vai sobrevivendo a Jânio Quadros, devagar e sempre.
Dois anos depois da renúncia do presidente que o instituíra, o GOCNAE virou CNAE, só com C de comissão, mas sem o G e o O do grupo de organização. Em seguida veio GTEPE, com G de grupo. E em 1966, promovido a Grupo Executivo, passando a GETEPE. Só de 1971 para cá, o Brasil já lançou a COBAE, o IAE e a AEB. E não vale a pena traduzir as siglas, porque elas no fundo querem todas dizer a mesma coisa. Em outras palavras: lá vamos nós. Só estão aqui para provar que nosso programa espacial tem mais estágios que os foguetes americanos.
Passado nunca lhe faltou. E agora parece estar sobrando. A seis quilômetros da base espacial fica Alcântara, autêntico monumento ao que acontece no Brasil quando o futuro anda para trás. A cidade do século XVII já foi mais importante que São Luís, quando São Luís era mais importante que Salvador e Rio de Janeiro, para nem falar de São Paulo, que não passava então de uma aldeia no planalto de Piratininga. Hoje Alcântara é um conjunto tombado de ruínas coloniais, entre pescadores e agricultores que vivem, no duro, dos 85 reais do Bolsa-Família.
Mas a cidade não está tão longe do presente quanto sua decrepitude indica. Teve recentemente um prefeito derrubado por corrupção, o que é sinal de atualidade. E perdeu, ninguém sabe onde, uma verba federal para restaurar seus sobrados históricos, com fachadas de azulejos mais antigas que as da Alfama, em Lisboa. O que está na ordem do dia no município é a titulação de quilombos, tocada pela Fundação Cultural Palmares, de Brasília. Três quilombos já foram delimitados pelo Incra. E a base espacial foi parar no meio de seus 5 000 hectares.
Não seria nada demais, se o país ainda quisesse, como em 1961, chegar ao futuro de foguete. Mas hoje ele tem mais pressa de acertar as contas com o passado. Quase 50 anos depois, os brasileiros mal puderam ouvir o tenente-coronel Barbosa explicar que a Cumã II era mesmo “uma operação muito grande e muito difícil de ser atingida”, porque estavam às voltas com notícias de que a Bolsa de Valores caiu 3,8%, o dólar ganhou 1,1% sobre o real e uma comissão parlamentar reconheceu que o senador Renan Calheiros vendia bois a um frigorífico-fantasma com notas frias. As histórias de sempre.
* Fotos da galeria: Comando Geral de Tecnologia Espacial e Centro de Lançamento de Alcântara
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