fractal
Edição especial: modo de usar
João Moreira Salles | Edição fields, Agosto 2014
Não é todo dia que o Brasil pode sacar louvores superlativos do armário. A data de 13 de agosto de 2014 será lembrada como uma dessas ocasiões, e não apenas porque nesse dia, em Seul, na Coreia do Sul, um carioca de 35 anos protagonizou o feito mais importante da história da ciência brasileira. Ao receber a Medalha Fields, maior honraria da matemática, Artur Avila era a expressão luminosa de um projeto de pouco mais de meio século: o de criar entre nós, no âmbito público, um ambiente intelectual em que a pesquisa científica de alta qualidade pudesse prosperar.
Avila é pesquisador do Impa – Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada – e do CNRS, centro de pesquisa francês. A parte brasileira de sua dupla filiação faz dele o primeiro medalhista vinculado a uma instituição acadêmica do mundo em desenvolvimento. Surpresa maior, foi no Impa que fez todos os seus estudos. Avila é o único laureado da história da Fields cuja formação se deve integralmente a uma instituição ao sul do Equador. Essa é a história singular que contamos neste número especial da piauí.
“Seria natural esperar que um povo completamente desprovido de tradição científica enveredasse pelos caminhos tortuosos das pesquisas de mau gosto ou pela enganadora suavidade dos problemas irrelevantes”, disse o matemático Elon Lages Lima, numa palestra a colegas. O ano era 1987 e ele já considerava “extraordinário” o fato de que, àquela altura, a matemática brasileira estivesse ocupada em produzir tão bons trabalhos.
Como se verá no perfil de Artur Avila, os matemáticos prezam o bom gosto, que descrevem como o dom de escolher sempre os problemas mais centrais, aqueles que, quando resolvidos, abrem vistas para todo o campo específico, se não para toda a matemática. Por razões óbvias, tais problemas são também os mais difíceis, e, se bom gosto se mede pela capacidade de identificá-los, segue-se que não pode haver bom gosto sem ambição. Guarde esse teoremazinho na cabeça; apesar de meio besta, ele ajuda a compreender o percurso que levou à Medalha Fields.
A aposta de três brasileiros – eis os seus nomes: Lélio Gama, Leopoldo Nachbin e Mauricio Peixoto – de criar, no início da década de 50, um centro de excelência em pesquisa matemática era ambiciosa e de bom gosto. Saía da cabeça de pesquisadores condicionados pela profissão a rejeitar “a suavidade dos problemas irrelevantes”. O projeto seria levado adiante por outros tantos matemáticos, quatro deles retratados em página dupla nesta revista. Graças a todos eles, existe hoje no país uma instituição de alma pública – o Impa – capaz de formar um medalhista Fields. A história de Gama, Nachbin e Peixoto, bem como a dos que deram seguimento à obra deles, está contada ao longo dos dois perfis reproduzidos aqui, o de Artur Avila (piauí_40, janeiro 2010) e o de Fernando Codá Marques (piauí_87,dezembro 2013).
O que é a Fields? A literatura se acostumou a chamá-la de Prêmio Nobel da matemática, e em importância para a disciplina, sim, ela é isso. A Medalha, porém, tem características próprias que de certa forma tornam sua conquista até mais difícil. Como se ganha uma Fields? É preciso cumprir duas tarefas simultâneas: (1) produzir matemática excepcional, é claro; e (2) se articular internacionalmente para que o mundo científico compreenda e reconheça o trabalho realizado. A primeira esquina – nome que damos aos pequenos perfis e reportagens que abrem a seção homônima da piauí – se incumbe de contar como e por que a Fields foi criada. A necessária articulação é tema da segunda esquina. A grande matemática se espraia pelos dois perfis.
Não é simples resumir em meia dúzia de frases as razões pelas quais Artur Avila ganhou a Medalha. “Ele trabalha em várias coisas muito diferentes, coisas difíceis, profundas, duras”, diz Marcelo Viana, pesquisador do Impa e coautor de Avila. O que são essas “coisas”, o leitor saberá no perfil, mas pode-se adiantar que são sempre problemas extraordinariamente abstratos e que Avila não se contenta em militar num só campo da matemática. Com instrumentos lógicos que manipula com destreza quase sem par – vários deles de sua própria autoria –, ele pula de campo em campo, como um médico-cirurgião que fosse chamado a resolver encrencas resultantes de diversas patologias espalhadas por vários órgãos vitais. Avila vai, ataca o problema, resolve e se retira.
A propósito, é bom lembrar que a Medalha Fields é entregue na cerimônia de abertura do Congresso Internacional de Matemáticos, evento que ocorre de quatro em quatro anos. Surgidos na virada para o século XX, esses congressos pretendiam evitar que os diferentes campos da matemática, como certos bichos que ficam ilhados, se isolassem tanto que, no decorrer do tempo, deixassem de fertilizar o tronco comum. O encontro quadrienal pode ser visto como uma tentativa de controlar a evolução das espécies matemáticas, outro modo de dizer que tenta mitigar os efeitos da especialização excessiva. Ali se reúnem pessoas que já mal trazem os mesmos cromossomos, na esperança de que alguma promiscuidade genética ainda seja possível.
Artur Avila, por esse ângulo, é um fauno. Quando o escolheram para dar uma das palestras mais prestigiosas do congresso de 2010, seu nome havia sido indicado por quatro campos de investigação (e não três, como publicamos em 2010). Quatro áreas julgaram que as contribuições de Avila à matemática expandiram seus territórios específicos de atuação.
São muitos os matemáticos que vêm avançando por picadas abertas por ele. O próprio Avila, é claro, se abastece em seara alheia. Da gente que faz a sua cabeça, ninguém merece mais destaque do que quem o formou. Os matemáticos dão enorme importância à própria genealogia: fui aluno de Fulano, que foi aluno de Beltrano, que foi aluno de Sicrano e assim por diante, o conhecimento percolando as gerações, definindo um modo de fazer as coisas, um gosto comum. Avila é filho acadêmico de Welington de Melo, que foi discípulo de Jacob Palis, que foi aluno do americano Stephen Smale, Medalha Fields 1966. Esta edição dedica uma esquina a cada membro da linhagem.
Avila também deve tributos a um francês nascido na Polônia – Benoît Mandelbrot, que para muitos nem matemático era –, cujo obituário foi publicado originalmente na piauí_50, de novembro de 2010. Um dos objetos mais fascinantes da matemática leva o nome desse pensador que mudou nossa maneira de entender a geometria do mundo natural. Mandelbrot inventou a palavra para designar as formas imperfeitas, cheias de reentrâncias, pontas e irregularidades, que existem in rerum natura: nuvens, linhas costeiras, alvéolos, relâmpagos, os galhos de uma árvore. Essas coisas são feitas de ordem e caos, combinação a que Avila consagra tempo, neurônios e afeto.
O conjunto de Mandelbrot – objeto inesgotável gerado a partir de uma equação de grande simplicidade, ZZ2 + C – lembra um besourinho. É com um enxame desses fractais que Avila se diverte na capa da revista, numa ilustração quase factual, pois é assim mesmo que ele costuma fazer matemática: deitado na cama, girando objetos na cabeça e achando tudo muito bonito. Por licença poética, a equação de que tanto gosta foi bordada no lençol. Idem para as divisas da Medalha Fields que enfeitam o travesseiro.
A União Internacional de Matemática, entidade que atribui a Fields, classifica o Brasil no nível 4 de uma escala em que o quinto nível corresponde à elite dos países produtores de matemática. É um indicador de que a ciência já dispõe aqui de massa crítica. Nesse conjunto de pesquisadores, existem alguns que, a exemplo de Avila, têm publicado resultados excepcionais. Fernando Codá Marques é um deles. No início de 2012, trabalhando em coautoria com o português André Neves, ele provou uma conjectura que perseguia os melhores geômetras do planeta havia cinquenta anos. É um dos grandes resultados em geometria na última década, como mostra o perfil de Codá.
Diante desse cenário, cabe perguntar: teremos já conquistado assento como protagonistas no banquete da matemática mundial? A resposta é simples: não. “Somos recém-chegados”, como diz Marcelo Viana, “estamos aprendendo a jogar o jogo. Quando, a cada quatro anos, com regularidade, formos cogitados para a Medalha, aí, sim, será o cume.”
Não se constrói uma cultura de pesquisa apenas com talentos excepcionais. Hoje a matemática do Brasil é bastante requintada no topo, mas subir o patamar médio dos matemáticos ainda vai dar muito trabalho. Somos como certas cidades emergentes em que se come bem em três ou quatro restaurantes e mal em todos os outros. A metáfora gastronômica não é imprópria, já que os matemáticos falam tanto em gosto. De fato, uma cultura de boa comida passa a existir quando o forasteiro não precisa consultar o guia para saber onde satisfazer o apetite, pois qualquer canto da cidade poderá lhe oferecer uma refeição decente. Estamos longe disso, como mostra o artigo que encerra este número especial.
Leia Mais