Cabeças de rinoceronte na CPI da Pandemia: há uma dose de encenação no empenho para descobrir uma verdade que todos já conhecem CREDITO: PEDRO ZOLLI_2021
Eichmann e os rinocerontes
Enquanto isso, o país assiste a uma cloroquina política
Fernando de Barros e Silva | Edição 177, Junho 2021
O país se aproxima das 500 mil mortes por Covid sem nenhuma indicação de que o pesadelo pandêmico esteja perto do final. Pelo contrário. Infectologistas e pesquisadores vêm repetindo há semanas, por toda parte, que a terceira onda da doença está contratada e vem aí. As medidas de isolamento social – que de resto, mesmo quando adotadas à revelia do governo federal, sempre foram frouxas e insuficientes – estão sendo abandonadas sem que a imensa maioria da população tenha sido imunizada. Há no país aglomerações demais e vacinas de menos num ambiente em que proliferam novas cepas do vírus e as UTIs de muitas cidades importantes estão operando no limite de sua capacidade. A combinação é explosiva. Tudo indica que o inverno brasileiro será cruel, como se já não estivéssemos suficientemente destroçados. Sabemos o nome e o sobrenome do motociclista responsável por essa tragédia sem fim.
… E você chegou, nosso precioso inimigo,/Você, criatura deserta, homem cercado de morte. Primo Levi escreveu esses versos em julho de 1960, logo depois que o carrasco nazista Adolf Eichmann foi preso na Argentina pela polícia secreta de Israel. Na sequência do poema, intitulado Para Adolf Eichmann, o escritor pergunta: O que saberá dizer agora, diante de nossa assembleia?/Jurará por um deus? Mas que deus? Sobrevivente de Auschwitz, Levi fazia alusão ao futuro julgamento do carrasco, que viria a ser sentenciado à morte em 1962 e enforcado a seguir. No poema, a vítima desejava outro destino para o algoz: Ó filho da morte, não lhe desejamos a morte./Que você viva tanto quanto ninguém nunca viveu:/Que viva insone cinco milhões de noites.
A evocação do Holocausto para falar da realidade brasileira pode soar imprópria a muita gente. De fato, ela é deliberadamente exagerada. O leitor pode pensar nas covas rasas enfileiradas em Manaus, ou nas pessoas sufocando sem oxigênio nos hospitais, e julgar se o recurso ao inominável faz algum sentido. Qual é a medida justa da punição para o que está acontecendo? Qual será a punição? Haverá alguma? Quando perguntaremos a Jair Bolsonaro: “Você, criatura deserta, homem cercado de morte/O que saberá dizer agora, diante de nossa assembleia?”
O que temos, por ora, é uma CPI. Ela consome a atenção de jornalistas e produz efeito catártico sobre a opinião pública. Não há dúvida de que incomoda e desgasta o governo em alguma medida, mas não há nenhuma convicção de que possa ir muito além disso. Talvez a “função política” da CPI seja na realidade essa – distribuir anestésicos a um país entubado a seco, produzir certo alívio no desespero, oxigenar o desalento, criar a sensação, ainda que ilusória, de que se está fazendo justiça. Esperamos sinceramente que sim, mas temo que a comissão do Senado seja uma espécie de cloroquina política, um falso tratamento – nesse caso tardio, e não precoce – para enfrentar Bolsonaro depois de dezesseis meses de descalabros. Há uma dose de encenação nesse empenho para descobrir uma verdade que todos já conhecem.
Em novembro de 1959, meses antes que Primo Levi escrevesse seu poema, O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, fazia sua estreia mundial em Düsseldorf, na Alemanha. A peça é um dos pontos altos do teatro do absurdo – expressão criada pelo crítico Martin Esslin no início dos anos 1960 para identificar uma das tendências mais importantes da dramaturgia no pós-guerra.
Num domingo de verão ensolarado, numa cidadezinha qualquer no interior da França, onde a vida se desenrola sem sobressaltos, moradores estão conversando trivialidades numa praça quando são surpreendidos pela aparição ruidosa de um rinoceronte. O paquiderme some como surgiu, do nada. Diante do espanto generalizado, o jovem protagonista comenta com o amigo: “Era um rinoceronte, e daí?” Algum tempo mais tarde, a cena se repete de maneira quase idêntica. Mas, na sua segunda passagem pela praça, o bicho esmaga o gato de uma das personagens, a “dona de casa”. Em meio ao lamento de alguns e à indiferença de outros, começam todos a debater seriamente se o animal tinha um ou dois chifres. Ocupam-se com isso horas a fio, o que faz lembrar a discussão brasileira: “Afinal, Bolsonaro é ou não é genocida?”
A peça avança e os rinocerontes passam a se multiplicar. É a população da cidade, vítima de uma epidemia, que está se metamorfoseando pouco a pouco no animal de aparência pré-histórica. Um a um, todos os habitantes vão perdendo a pele lisa, a fala, a humanidade. Todos, menos o protagonista, que se vê na situação desesperadora de preservar sua condição humana, agora monstruosa, no meio de uma multidão de paquidermes grunhindo.
Ionesco explora a ambivalência dos personagens (ou de cada personagem) em relação aos rinocerontes – e ao rinoceronte que potencialmente vive em cada um. O horror e o pânico convivem com a aceitação e às vezes com o fascínio diante do monstruoso. Pinço algumas falas da peça: “O que complica mais as coisas é que cada um de nós tem, entre os rinocerontes, um parente, um amigo”; “Se as coisas são assim é porque não podem ser de outra maneira”; “Talvez os anormais sejamos nós”; “Sejamos razoáveis. É preciso encontrar um modus vivendi para nos entendermos com eles”.
As coisas para Bolsonaro nunca estiveram tão complicadas. Mas ainda não decidimos se esse capítulo sinistro da nossa história será contado pelo poema de Primo Levi ou pelo teatro de Eugène Ionesco.
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