ILUSTRAÇÃO: JULIO IBARRA_2013
El libro azul
As profecias de Chávez, doa a quem doer
Carol Pires | Edição 88, Janeiro 2014
Em 58 anos de vida, catorze deles como presidente da Venezuela, Hugo Rafael Chávez Frías deixou uma profícua coleção de frases. Das tiradas que desfiou, ficaram para a posteridade sobretudo aquelas em que escarnece dos adversários. George W. Bush foi taxado de el diablo – e o bolivariano ainda evocou Noam Chomsky e Aristóteles para corroborar seu julgamento. Quatro meses depois, vaticinou que um bispo que criticava seu governo seria sumariamente despachado para o inferno. Mais expedito foi o rei Juan Carlos, que antes de levar alguma carraspana tomou a dianteira e tascou um ¿Por qué no te callas? no caudilho. A resposta não tardou: antes de se meter a besta, que o monarca espanhol experimentasse se submeter a uma eleição.
E dá-lhe sanções à Espanha.
A produção textual de Chávez, em contrapartida, é minguada. Cuentos del Arañero (nome de um pássaro comum em Sabaneta, sua cidade natal) é um viveiro de anedotas da juventude e da política, ditadas a dois jornalistas. Outras obras em que figura como autor não passam de compilações de entrevistas ou discursos. Em novembro, contudo, seu sucessor, Nicolás Maduro, ressuscitou El Libro Azul, texto que o comandante escreveu de próprio punho. Diante das câmeras, o presidente exibiu-o a seus compatriotas, dizendo: “Eis o testamento político de Chávez, para que saibamos de onde viemos, para onde vamos, e por quê.”
Mais que um testamento, o Livro Azul é uma antiga plataforma política. Concebido na prisão em 1992, quando o então tenente-coronel Chávez tinha se resignado a cumprir pena pela tentativa de golpe contra o presidente Carlos Andrés Pérez, o opúsculo tem como eixo o Projeto Nacional Simón Bolívar. Chávez previa que cumpriria o projeto em vinte anos, e não se pode dizer que tenha procrastinado.
O livro é Chávez vintage – pré-Fidel Castro, pré-Gramsci, pré-Chomsky. No horizonte intelectual de seu autor, à época assomavam as figuras iluministas de Rousseau e Montesquieu, manancial onde bebeu a trinca de próceres venezuelanos cujo pensamento articularia a “árvores de três raízes”.
Ezequiel Zamora, caudilho do século XIX, é a raiz número um. Esse “liberal romântico”, defensor da reforma agrária, teria sido o precursor do vale-leite, ao determinar que todo latifundiário entregasse ao Estado dez vacas leiteiras, de modo a permitir que cada família pobre pudesse ordenhar o equivalente a um litro por dia. O caudilho ainda cunharia o lema “Horror à oligarquia”, que Chávez viria a empregar com gosto a cada novo embate com os “esquálidos”, epíteto que atribuía aos ricos e àqueles que não o apoiavam.
A Raiz Número Dois, que aqui merece ser grafada com todas as maiúsculas, é Simón Bolívar. A acomodados, incrédulos e inimigos, Chávez retruca no livro com a invectiva do Libertador contra os que insistiam que as lutas de independência podiam esperar: “Trezentos anos de paciência já não bastam?” O tripé se completa com Simón Rodríguez, antigo professor de Bolívar e seu colega no panteão dos heróis da pátria. Rodríguez, que pregava um modelo original para a América hispânica, distante da imitação servil das potências de fora, patenteou a máxima “Ou inventamos ou erramos”, mencionada sete vezes no Livro Azul.
Maduro tenta seguir o ensinamento rodrigueano ao pé da letra. Ao que parece, vem inventando e errando. Dado que carisma é um negócio intransferível, o ex-chanceler e ex-sindicalista peleja para firmar-se como herdeiro legítimo de seu mentor. Entre 5 de março de 2013, quando comunicou a morte de Chávez, e a data em que foi eleito presidente, 14 de abril, ele citou o antecessor 7 401 vezes – o site madurodice.com teve a pachorra de contar. Isso equivale a 185 vezes por dia, 7,7 vezes por hora ou um Chávez a cada 8 minutos. A quem se impressiona com tamanho furor associativo, é preciso lembrar que o finado líder não deixa o atual em paz, tendo o costume de visitá-lo sob o avatar de passarinho. É natural o desejo de relatar o fenômeno, espantoso seria silenciar a respeito. A imagem do antecessor também apareceu ao atual quando este inspecionava obras do metrô de Caracas, embora dessa vez não fosse o pajarito, mas sim o rosto do Comandante nas paredes do túnel.
Em 17 de novembro, num evento público, o atual presidente abriu aleatoriamente o Livro Azul e introduziu a leitura com as seguintes palavras: “E disse o profeta Chávez…” Fez então uma pausa e acrescentou: “Agora dirão que chamei Chávez de profeta. Sim, ele é profeta, nosso profeta. Doa a quem doer, arda a quem arder.” E por lhe parecer justo e bom, ordenou que o volume fosse distribuído nas academias militares.
A Presidência mandou imprimir 55 mil exemplares. O manual também foi encartado em jornais favoráveis ao governo.
Talvez Maduro não tenha exagerado ao considerar profeta o antigo potentado. Em modestas cinquenta páginas no formato de bolso – ou doze, na versão em PDF da internet –, o Livro Azul antecipa o naufrágio dos partidos tradicionais venezuelanos, fato que ocorreria com a eleição de seu autor, em 1998. Bingo!
O livro também propõe o estabelecimento de uma nova Constituição, com “democracia participativa”. É outra profecia que veio a se cumprir: ao menos em sua primeira versão, a nova Constituição da República Bolivariana foi tida como a mais democrática da história venezuelana. (Mais tarde, contudo, Chávez contrariaria o espírito da Carta, rompendo a promessa de seus escritos do cárcere de combater a concentração do poder. Nem Jeremias acertou todas.)
O Livro Azul evoca outros volumes da propaganda revolucionária cujo título também alude a alguma cor. O Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung, coletânea de citações do Timoneiro, foi compilado no início dos anos 60, depois do fracasso do Grande Salto para a Frente – o programa chinês de aceleração da indústria que provocou fome em massa no campo. Mao estava desgastado, mas vivo o suficiente para logo depois lançar a Revolução Cultural, acusando os adversários de desvios burgueses.
Muammar Kadafi publicou seu Livro Verde em 1975, seis anos depois de chegar ao poder. Ainda que apregoasse sua “República das massas”, sem Parlamento nem partidos, não deixava de louvar itens do capitalismo de massas, como os automóveis particulares – com o petróleo recém-nacionalizado e o preço do barril nas alturas, era uma proposta de baixo risco para o líbio.
Na Venezuela, a reedição do Livro Azul ainda não mostrou efeitos mensuráveis. Diante da inflação alta, dos apagões e da falta de produtos básicos – o país importa quase tudo, salvo gasolina –, Maduro se viu forçado a se valer de expedientes menos literários, ainda que não menos fantasiosos. Antecipou o Natal para 1º de novembro e baixou por decreto os preços no varejo. Em dezembro, os chavistas puderam cantar vitória nas eleições municipais com um jingle em que Maduro é “San Nicolás”, o nome civil do Papai Noel por lá: Tum! Tum!/ Quem é?/ Gente de paz/ Baixem os preços/ Chegou Nicolás.
Eis um ponto em que o profeta Chávez talvez tenha falhado. Ao prever no Livro Azul que a árvore das três raízes levaria à “utopia concreta”, não se sabe se era bem em máquinas de lavar, computadores e tevês de plasma que estava pensando.
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