Javier Milei: as suas propostas econômicas, como dolarizar a economia e passar uma motosserra no Banco Central, são feitas mais para agradar o eleitorado do que encontrar soluções reais CRÉDITO: JHG_ALAMY_FOTOARENA_2023
Javier Milei e a ultradireita argentina
Quem é o deputado que quer ser presidente da Argentina e é comparado a Donald Trump e Jair Bolsonaro
Sylvia Colombo | Edição 202, Julho 2023
De Buenos Aires
“A casta tem medo! A casta tem medo!”
Esse era o grito que se ouvia na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, no dia 14 de maio, quando Javier Milei chegou, cercado por seguranças, agitando os braços e saudando os fãs, em meio a uma atmosfera parecida com a de um show de rock ou de uma partida de futebol. Milei estava ali para falar sobre seu livro recém-lançado El Fin de la Inflación, em cuja capa é retratado como alguém com poderes mágicos, que espanta uma força invisível com as mãos. Mas seus admiradores não estavam muito preocupados com livros ou debates acadêmicos sobre economia.
“A casta tem medo! A casta tem medo!”
O grito de guerra se misturava com a bandeira de Gadsden, na qual se vê, sobre um fundo amarelo, a imagem de uma cobra com os dizeres Don’t tread on me (Não pise em mim). Usada na Guerra da Independência dos Estados Unidos, em 1776, a bandeira de Gadsden foi ressuscitada pela extrema direita norte-americana, que passou a levantá-la em manifestações contra a “casta”, espalhou-se pelo mundo e chegou à Argentina.
Milei, 52 anos, é economista, está no primeiro mandato como deputado e concorre à Presidência da Argentina na eleição do próximo dia 22 de outubro. Segundo as sondagens mais recentes, embora bastante preliminares porque a campanha está apenas no começo, Milei ocupa o terceiro lugar, oscilando entre 19% e 21% dos votos. Está atrás das duas principais forças políticas, a centro-esquerda e a centro-direita, que atraem em torno de 30% do eleitorado cada uma.
Seu partido, La Libertad Avanza, tem apenas dois anos de vida, dois deputados, nenhum senador, governador ou prefeito, mas Milei virou um fenômeno político. Está atraindo uma parte da direita e quase toda a extrema direita. A sua retórica ferozmente antiesquerda e anticomunista, bem como sua demonização do sistema político, colocam Milei ao lado de estrelas da extrema direita, como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Com eles, Milei compartilha algumas ideias centrais e o estilo provocador.
É amigo do deputado Eduardo Bolsonaro, que visita a Argentina de vez em quando na sua função de diplomata da ultradireita. Concluído o segundo turno da eleição brasileira, Milei telefonou não para o vitorioso, mas para Bolsonaro. “Queria felicitá-lo pelo excelente resultado que teve”, contou em um programa de tevê. Não parabenizou Lula e “muito menos o povo brasileiro” porque entende que o eleitorado “elegeu justamente quem vai destruí-lo”. Milei acha que os brasileiros, ao escolher Lula pela terceira vez, converteram-se ao “socialismo do século XXI”.
No Chile, Milei torceu pela vitória do advogado José Antonio Kast na eleição de dezembro de 2021. Kast, que chegou ao segundo turno, mas perdeu, é um admirador do ditador Augusto Pinochet e vem ocupando o espaço político antes tomado pela direita democrática chilena. Na Espanha, uma das alianças mais sólidas de Milei é com o Vox, o partido da extrema direita, que o convidou para participar de um ato público em outubro do ano passado. Na ocasião, Milei fez duras críticas à “ideologia de gênero”, o mantra internacional da ultradireita, e disparou: “Vamos à luta contra o zurderio”, usando um termo depreciativo para designar a esquerda (vem de zurdo, canhoto), algo semelhante à palavra “esquerdalha”.
Milei não se identifica totalmente como um extremista de direita, mas escolheu a deputada ultradireitista Victoria Villarruel para ser sua companheira de chapa. Villarruel comanda uma entidade de assistência aos que se dizem prejudicados pela guerrilha de esquerda na ditadura. Milei não chega a defender a ditadura militar da Argentina (1976-83), mas alia-se aos seus defensores. Acha que a esquerda exagera o número de vítimas da repressão do Estado e repudia os movimentos de mães e avós que buscam identificar os desaparecidos políticos e seus filhos. É contra a educação sexual nas escolas, contra o aborto e a favor das armas. Na economia, defende a dolarização da Argentina, a privatização de tudo o que for possível, a redução do tamanho do Estado, a saída do Mercosul e a extinção do Banco Central.
Milei tem posições estranhas à cartilha convencional da ultradireita. É a favor do casamento gay, por exemplo. Acha que é um contrato como qualquer outro, desde que feito entre pessoas maiores de idade. Não se trata, portanto, de um assunto do interesse do Estado. Quando fala sobre seu estado civil, contrariando o discurso que celebra a família tradicional, diz que não acredita no casamento. Por isso, é solteiro, vive apenas com seu cão, um mastim inglês chamado Conan e seus quatro filhotes. Sua última namorada conhecida foi uma cantora, Daniela Mori, intérprete de um hit local, Endúlzame que Soy Café (Me adoce que sou café). Com a candidatura presidencial, foi aconselhado a se casar, mas se mantém firme na sua oposição ao matrimônio.
Milei conjuga essas posições ora com liberalismo, ora com ultraliberalismo. Diz, inclusive, que é a favor da compra e venda de órgãos humanos porque, também aqui, se trata de uma transação comercial entre pessoas adultas na qual o Estado não deve se imiscuir. O cientista político Pablo Touzon, da Universidade de Buenos Aires e coautor dos livros ¿Qué Hacemos con Menem? (O que fazemos com Menem?) e La Grieta Desnuda: El Macrismo y su Época, (A fratura nua: o macrismo e sua época), este sobre os anos de governo de Mauricio Macri, entende que Milei é movido por uma espécie de ortodoxia ultraliberal temperada com elementos de extrema direita, em que o político vê a si próprio como um guerreiro contra o Estado.
Com esse currículo, Milei tornou-se um fenômeno político na Argentina. E, nos últimos meses, uma das obsessões dos analistas políticos do país é explicar a crescente adesão à sua candidatura.
Filho de um motorista de ônibus e uma dona de casa, Javier Milei nasceu em Buenos Aires, mas cresceu em Sáenz Peña, distrito de classe média da grande área metropolitana da capital, a Amba. Hoje com 13 milhões de habitantes, a Amba é o lugar onde pulsam os problemas mais agudos do país – a pobreza, o impacto da inflação, a desigualdade. “Meu pai trabalhou a vida inteira e mal pôde sustentar a família”, disse Milei a um programa de televisão.
Na juventude, ele se envolveu com suas maiores paixões – a música e o futebol. Participou de uma banda cover dos Rolling Stones, quando passou a usar a jaqueta de couro que faz parte até hoje do seu uniforme e adotou o cabelo cuidadosamente despenteado. (Ele diz que não se penteia desde os 13 anos.) Também fazia covers de cantores populares argentinos, como Leonardo Favio (1938-2012), cuja marca era um lenço amarrado à cabeça. Nos campos de futebol, tentou a carreira como goleiro do Chacarita Juniors – time de bairro, hoje na segunda divisão –, mas desistiu. Foi torcedor do Boca Juniors, mas agora torce para o River Plate.
Apesar das dificuldades financeiras, conseguiu estudar economia na Universidade de Belgrano, uma prestigiada instituição privada. Depois de formado, fez uma especialização na Universidade Torcuato Di Tella, também particular, e passou a dar aulas em instituições de ensino superior. Fora do meio acadêmico, acabou se estabelecendo como consultor de grupos financeiros, como o HSBC, e de empresários de peso, como Eduardo Eurnekian, um dos homens mais ricos da Argentina, dono da emissora de tevê América e de vários aeroportos. Nesse meio-tempo, incluindo o recente El Fin de la Inflación, escreveu onze livros, a maioria sobre economia.
Em 2017, aos 46 anos, já como um economista respeitado, Milei lançou um programa de rádio batizado de Demoliendo Mitos (Derrubando mitos), transmitido na emissora online Conexión Abierta e no YouTube. O programa era gravado num estúdio precário, às vezes na própria sala de trabalho de Milei, que aparecia no vídeo vestido de modo informal. Ali, ele começou a entoar certos mantras políticos, já sinalizando suas ambições eleitorais: “Não sou neoliberal, sou anarcocapitalista” e “Se não me elegerem, a Argentina cairá num abismo”. Usava os fatos da semana para atacar políticos e economistas, às vezes aos berros e usando termos chulos. Não deu muito certo. Atraiu menos de 15 mil seguidores, mas operou uma mágica: seu jeito espalhafatoso e agressivo caiu nas graças das emissoras de tevê ávidas por audiência.
Começou então a participar das farándulas, como são chamados os programas do horário nobre da tevê argentina que reúnem convidados de todo o tipo – empresários, modelos, políticos, jogadores de futebol – e todo mundo dá opinião sobre tudo, dos assuntos mais vulgares às grandes questões nacionais. É uma algaravia que mistura debate, noticiário e show de variedades. E as disputas e anedotas acabam transbordando para as redes sociais e reverberando no debate público em geral.
Nas farándulas, Milei manteve o personagem histriônico que criara, mas, sentindo que sua popularidade crescia, foi ficando cada vez mais desbocado, mais exibicionista, mais provocador. Já não falava apenas de economia. Falava de tudo e nunca se furtava a contar alguma história pessoal peculiar. Em um programa, disse, cheio de suspense e um falso ar de seriedade, que fora instrutor de sexo tântrico e frequentador de orgias, mas, como resistia ao máximo a atingir o gozo, acabou ganhando o apelido de vaca mala (vaca má) porque “dava pouco leite”. Em outro programa, revelou que não fala com seus pais há mais de uma década, embora sua mãe tenha assumido agora uma função importante na sua campanha. Segundo ele, seu pai o tratava com violência física e psicológica. Chamou-o de “nefasto” e disse que sua mãe era “cúmplice”.
Em 2019, o economista José Luis Espert, um dos amigos mais próximos de Milei, resolveu criar um partido para reunir economistas liberais. Lançou a Frente Despertar e concorreu, ele mesmo, à Presidência da Argentina. Colheu um fracasso espetacular, com 1,4% dos votos. Dois anos depois, em 2021, Espert voltou às urnas, desta vez disputando uma cadeira de deputado. Milei ligou-se à empreitada, mas logo desanimou e resolveu lançar-se sozinho na política. Criou então o partido La Libertad Avanza e também concorreu a deputado. (Ambos foram eleitos, mas a relação entre eles azedou. Hoje são inimigos.)
Na campanha, Milei aprimorou seu talento cênico para arengar às massas. Seus comícios ao ar livre, levados aos bairros de classe média e à periferia, eram planejados como espetáculos ruidosos. Pareciam shows, com fumaça seca lançada ao público e música de abertura no estilo heavy metal. Milei entrava no palco pulando e gritando suas frases prediletas. Uma delas: “Não vim aqui para guiar cordeiros, mas para comandar leões.” Concorrendo pela cidade de Buenos Aires, recebeu 17% dos votos e tornou-se um dos dois parlamentares do La Libertad Avanza.
Como costuma acontecer com os que fazem campanha na base da provocação, Milei não se empenhou muito no trabalho legislativo. Seus colegas de Parlamento dizem que ele usa o cargo mais para fazer propaganda do que para apresentar propostas. Não se tem notícia de nenhum projeto relevante que tenha sugerido. Também não fez muitos amigos entre os deputados. Toda vez que entra em votação um projeto dos peronistas, a força de centro-esquerda que governa a Argentina, Milei deixa o plenário para não dar quórum. Se o quórum é alcançado, volta – e vota contra.
“Milei é um bom economista teórico, sabe livros de cor, mas é mau político, não está buscando articular apoios no Congresso, onde dificilmente teria maioria para governar”, disse à piauí o deputado Martin Tetaz, de centro-direita, que já gravou mais de um vídeo para denunciar a indisposição de Milei para o trabalho. Num deles, Tetaz aparece levando um convite até o gabinete de Milei no Congresso para que aceite realizar um debate com ele, que também é economista. Ele bate na porta seguidas vezes, em vão.
Milei tem a mesma inclinação da extrema direita no Brasil, que gosta de provocar os adversários inventando trocadilhos e apelidos jocosos. A coalizão dos peronistas hoje se chama Unión de la Patria, mas quando seu nome era Frente de Todos, Milei apelidou-a de Frente de Chorros (Frente de ladrões). A coligação Juntos por el Cambio (Juntos pela mudança), que reúne a centro-direita e compõe a segunda força política, ele chama de Juntos por el Cargo, para chamar a atenção às práticas fisiológicas de seus políticos.
Como candidato presidencial, mantém o estilo histriônico. Nas aparições públicas – no palco, na tevê, nas redes sociais – dá declarações eloquentes e raivosas, em meio a lances teatrais. Longe das câmeras, no entanto, o personagem some. Milei é um sujeito calmo, se expressa de modo pausado e desapaixonado. Mas, quando um holofote se acende, ele arregala os olhos azuis, ergue os braços e começa a atirar palavrões e insultos contra os opositores.
Javier Milei não tem apoio da grande mídia, mas, como os principais veículos são hostis ao peronismo, como os jornais Clarín e La Nación, ele acaba tendo visibilidade. Nas emissoras mais alinhadas com o governo, no entanto, como o canal C5N, é um proscrito. “O país precisa de um personagem assim, que entusiasme as pessoas, com pinta de transgressor”, festeja o ensaísta político peruano Jaime Bayly, um prócer da direita latino-americana na imprensa e profundo conhecedor da política no continente. “Os argentinos já sofreram muito, é boa a chegada de alguém tão vibrante em cena”, disse ele, em conversa com a piauí.
Nas redes sociais, Milei dança, canta e costuma exibir uma motosserra, para ilustrar sua proposta de podar a administração pública. Propõe reduzir os ministérios de dezoito para oito, além de eliminar setores inúteis da burocracia estatal. Ele tem centenas de páginas no YouTube e contas no TikTok, onde seus fãs postam vídeos de propaganda do candidato. Hoje, Milei tem 750 mil seguidores no Twitter e 1,7 milhão no Instagram. São números vistosos para redes sociais na Argentina, embora estejam aquém da audiência do presidente peronista Alberto Fernández, que tem 2,3 milhões de seguidores no Twitter e 2,5 milhões no Instagram.
Na sua estrutura de campanha, há duas figuras importantes. Karina, sua irmã – a quem ele chama de “o chefe”, no masculino mesmo –, organiza a agenda do candidato, faz a ponte com a imprensa, coordena a equipe de redes sociais e lhe dá conselhos. Na única entrevista que concedeu até hoje, para o Clarín, Karina disse que não sabe por que o irmão resolveu se meter com a política. “Ele chegava a ganhar 10 mil dólares por palestra”, disse ela. “Poderia ficar muito bem assim, sem se meter na lama da política.”
A outra peça-chave é Fernando Cerimedo, especialista em política digital. Cerimedo, que trabalha de graça porque se diz alinhado com as ideias de Milei, tem um currículo para mostrar. Trabalhou para Mauricio Macri, o político de centro-direita que presidiu o país de 2015 a 2019. Em 2018, Cerimedo ajudou na campanha de Jair Bolsonaro e, depois da vitória de Lula em outubro de 2022, fez um vídeo no YouTube denunciando “fraude” nas eleições brasileiras. Em setembro passado, ele comandou a vitoriosa campanha digital que rejeitou a proposta de nova Constituição do Chile, impondo uma dura derrota à esquerda e, em especial, ao presidente Gabriel Boric.
As dificuldades da campanha de Milei, no entanto, são óbvias. Seu partido é eleitoralmente inexpressivo. Por isso, Milei tem viajado pelo interior em busca de apoio. Em Tucumán, a província histórica onde foi declarada a independência da Argentina em 1816, aliou-se a familiares do general Antonio Domingo Bussi, um genocida condenado por sequestros e mortes durante a ditadura, morto aos 85 anos. Seu filho, Ricardo Bussi, concorreu ao governo de Tucumán e, apesar do apoio de Milei, amargou um humilhante terceiro lugar, a mais de 30 pontos do segundo colocado. Em Salta, província montanhosa do noroeste argentino, Milei escolheu como aliado o político e empresário ultraconservador Alfredo Olmedo, que defende a construção de um muro para barrar a entrada de imigrantes bolivianos na Argentina. Em La Rioja, fechou o apoio do clã do ex-presidente Carlos Menem, que presidiu o país por uma década e morreu em 2021. Menem era um peronista liberal.
De todo o modo, as alianças regionais de Milei estão longe de sugerir a montagem de uma força em nível nacional. As pesquisas informam que, se Milei conseguir consolidar o maior arco de apoios possível neste momento, ainda assim não elegerá mais do que dezesseis deputados e cinco senadores. É um número tão irrelevante num Parlamento com 257 cadeiras de deputados e 72 de senadores que obrigaria Milei a buscar apoio numa casa que, até aqui, ele despreza. Confrontado com esse cenário, Milei desconversa, dizendo que a saída seria convocar referendos.
Em boa medida, o desempenho de Milei nas pesquisas se explica pelo fato de que seus adversários só começaram a ser escolhidos no dia 24 de junho. Até então, ele fazia campanha sem concorrentes definidos. (As pesquisas mostram que 15% dos eleitores estão no grupo dos indecisos e do voto em branco.) A centro-direita, representada na aliança Juntos por el Cambio, é liderada pelo ex-presidente Mauricio Macri e ainda se divide entre dois nomes: Horacio Rodríguez Larreta, que comanda Buenos Aires, a capital que tem status parecido com o do Distrito Federal no Brasil, e Patricia Bullrich, ex-ministra de Segurança de Macri. Bullrich é uma personagem singular. Descende de duas famílias tradicionais e influentes na Argentina nos anos 1970, atuou num grupo guerrilheiro de esquerda durante a ditadura, os Montoneros, depois se alinhou ao peronismo e, com o tempo, foi-se inclinando para a direita, onde está hoje.
Os peronistas da Unión de la Patria, por sua vez, não poderão contar nem com o atual presidente Alberto Fernández, que, impopular devido à crise econômica, desistiu de concorrer à reeleição, nem com Cristina Kirchner, que governou o país de 2007 a 2015, é a atual vice-presidente e continua sendo a figura mais proeminente do peronismo. Havia três nomes principais na disputa. O embaixador Daniel Scioli, que representa a Argentina em Brasília, e dois ministros: Eduardo “Wado” de Pedro (do Interior) e Sergio Massa (da Economia). No dia 24 de junho, Massa acabou sendo o nome escolhido pelos peronistas.
A Frente de Izquierda y de Trabajadores, embora venha apresentando um crescimento tímido, não está no pelotão de frente. Na história argentina, a esquerda, de modo geral, foi engolida pelo peronismo. No entanto, se não têm força para disputar a Casa Rosada, as legendas de esquerda entrarão em cena para derrotar Milei. “Ele tem uma intenção de votos ao redor de 20%, mas isso não corresponde a uma construção política de quadros, de militantes. Essa estrutura, nós já temos historicamente e pretendemos aumentá-la, porque será nossa maneira de ajudar a derrotá-lo”, disse à piauí o ex-deputado Christian Castillo, do Partido de los Trabajadores Socialistas, que integra a Frente de Izquierda.
Pelas regras eleitorais, todos os candidatos precisam se submeter a uma espécie de primárias, as chamadas Paso (Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), que serão realizadas no dia 13 de agosto. Todos os eleitores são chamados a votar para escolher os candidatos de cada chapa. Como não deve haver disputa no caso dos peronistas, nem da ultradireita, as Paso serão fundamentais para escolher o candidato da direita democrática, definindo a disputa entre Larreta e Bullrich. Do dia 13 de agosto em diante, com todos os presidenciáveis oficialmente definidos, Milei, pela primeira vez nos últimos nove meses, deixará de ser o único candidato na pista.
A crise econômica da Argentina, assim como dificulta a vida dos peronistas, facilita a vida dos adversários – sobretudo de Milei, que tem a vantagem de nunca ter ocupado o centro de poder nessas últimas décadas de tumulto intermitente. Nos debates de tevê, aos quais é convidado ora como candidato, ora como economista, ele desce o sarrafo no governo. A situação, de fato, é dramática. A inflação já passa dos 100% ao ano, o dólar paralelo custa o dobro do oficial, as reservas cambiais do país estão secando. O desemprego é crescente, a pobreza atinge mais de 40% da população e, para completar, o país vive uma seca severa, o que é mortal para uma economia tão dependente da agroindústria e da pecuária.
O arrocho econômico é tão severo que os protestos são quase diários em Buenos Aires, articulados por diferentes categorias profissionais. Junto com a crise econômica, ampliou-se o sentimento de insegurança pública entre os argentinos. No período de doze meses, entre maio de 2021 a maio de 2022, o número de domicílios em centros urbanos cujos moradores sofreram algum tipo de violência cresceu 4,1 pontos percentuais, segundo o Laboratório de Pesquisa sobre Crime, Instituições e Política (Licip) da Universidade Torcuato Di Tella.
Nesse cenário, Milei apresenta-se como a solução radical para problemas crônicos do país. As pesquisas mostram que o kirchnerismo – que começou com a eleição de Nestor Kirchner em 2003 e se mantém vivo duas décadas depois pela força política de Cristina – está prestes a sofrer uma derrocada, depois de ter perdido 40% do seu eleitorado no pleito legislativo de 2021. O grande culpado, claro, é a crise econômica e seu rastro de misérias. Os analistas especulam que, na disputa presidencial de outubro, esse eleitor poderá oscilar entre não votar em ninguém ou votar em Milei.
O consultor Jorge Giacobbe, da Giacobbe & Asociados, conhecida empresa de pesquisa de opinião, afirma que Milei está atraindo o “voto de desgosto e de castigo”, entre os quais há muitos ex-eleitores de Cristina Kirchner. “Para os jovens eleitores, toda a questão da luta pelos direitos humanos, da repressão na ditadura, é coisa do passado”, diz Giacobbe. “A prioridade deles é pedir por melhores empregos, mais oportunidades de trabalho e melhoria nos benefícios sociais.” Calcula-se que metade dos eleitores de Milei são homens entre 18 e 29 anos.
O eleitorado argentino tem forte concentração geográfica: 37% dos eleitores estão na cidade de Buenos Aires e na Amba. Do ponto de vista eleitoral, essa massa tem a mesma influência que é exercida, no cenário brasileiro, pelos quatro estados da Região Sudeste. Na prática, é ali, em Buenos Aires e arredores, que se decidem as eleições. Nos comícios de Milei, a presença de jovens é visível, sobretudo na Amba, onde é expressiva a massa de empregados informais ou desempregados.
Em uma visita a Berazategui, cidade localizada na Amba, a piauí conversou com jovens que se reuniam numa praça. Eles usavam camisetas de Milei e portavam bandeiras do candidato. Gonzalo Salgado, ao ser indagado em quem votaria se não fosse no Peluca (Peruca) – apelido de Milei – respondeu de pronto: “Em Cristina.” Seus dois colegas assentiram com a cabeça. Cristina Kirchner não é candidata. “Há um nível de ignorância política na Argentina hoje que talvez nunca se tenha visto. Não é desinformação ou fake news, é ignorância mesmo”, diz Giacobbe. “É o resultado de anos de destruição do nosso sistema educacional.”
As propostas econômicas de Milei que tanto atraem essa juventude, porém, parecem mais talhadas para causar sensação no eleitorado do que para encontrar soluções reais, como a ideia de dolarizar a economia, mais ou menos nos moldes do que ocorreu durante toda a década de 1990, no governo de Carlos Menem. A piauí perguntou para Milei como seria a dolarização. Ele falou do período com ar de nostalgia. “A conversibilidade foi lançada em 1º de abril de 1991”, disse ele, referindo-se à época em que tinha 20 anos. “Em janeiro de 1993, éramos o país com a menor inflação do mundo.” Em seguida, Milei descreveu: “O que eu proponho é a livre competição das moedas e a reforma do sistema financeiro. Assim, o mais provável é que os argentinos escolham o dólar naturalmente e, a partir daí, dolarizamos.”
A ideia de trocar o peso pelo dólar incendeia a imaginação do eleitor mais jovem, da classe média e das periferias de Buenos Aires, com a promessa de produtos importados mais baratos, acesso a viagens ao exterior e salários pagos em moeda forte. “Só serve para atrair eleitores que não são ideológicos, mas estão com raiva por causa da situação econômica do país”, critica Tetaz, o deputado que bateu na porta do gabinete de Milei. A proposta pode ter impacto eleitoral, mas é rejeitada até por aliados de Milei, já que o país nem tem reservas em dólares para dar lastro à medida. “Em 1998 e 1999, a dolarização era uma operação de política econômica, financeira e diplomática muito viável”, disse à piauí o economista Roque Fernández, possível candidato a ministro da Economia num governo Milei. “Mas hoje não é.”
O “plano motosserra” de Milei, que inclui a extinção do Banco Central, também não é levado muito a sério pelos aliados. Diana Mondino, que deve se candidatar a deputada , deu uma entrevista ao canal de televisão LN+, pertencente ao jornal conservador La Nación, em que procurou dizer que a extinção do BC não é exatamente o que parece. “É um modo de dizer”, explicou Mondino. “Passar a motosserra no Banco Central não será eliminá-lo, mas sim controlar mais as emissões por parte dele.” No entanto, no seu livro El Fin de la Inflación, Milei explica como acabaria com o Banco Central e, também, com o chamado cepo al dolar, que proíbe que um cidadão argentino compre mais de 200 dólares mensais no câmbio oficial.
O certo é que a precariedade econômica da Argentina, somada à ascensão global da extrema direita, ajudou a produzir um candidato como Milei. “A novidade desta eleição é a fratura que se produziu entre a sociedade argentina em seu conjunto contra o sistema político em sua totalidade”, diz o analista Jorge Castro, colunista do Clarín e autor dos livros El Desarrollismo del Siglo XXI (O desenvolvimentismo do século XXI) e China y la Argentina en el Siglo XXI. “Temos uma situação macroeconômica terrível, aumentando a polarização e, com isso, gerando políticos mais histriônicos.”
Em razão de uma cascata de semelhanças – a demonização do sistema político tradicional, o anticomunismo raivoso, o revisionismo histórico dos crimes da ditadura militar, o intercâmbio com a extrema direita global, o estilo divisionista e provocador –, Javier Milei tem sido comparado com alguma frequência a Jair Bolsonaro. São paralelos reais, mas há distinções entre ambos.
A mais notória talvez seja a proximidade com os militares. Milei já defendeu a presença do Exército em lugares onde há grande índice de violência, mas nunca se cercou de fardados, nem tem laços com as Forças Armadas. “Desde a Guerra das Malvinas, os militares na Argentina passaram a ser irrelevantes na política. No Brasil, eles ainda têm relevância”, compara o historiador Sergio Morresi, autor de La Nueva Derecha Argentina: La Democracia Sin Política. Morresi também ressalta que, ao contrário de Bolsonaro, que fez campanha pela reeleição pulando de culto em culto, Milei não se relaciona com igrejas, nem levanta pautas religiosas. O cientista político argentino Andrés Malamud, pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, aponta ainda outra diferença. “No caso de Milei, a ideologia é secundária: seu eleitorado é antiestablishment, mas não necessariamente antissistema”, diz.
São aspectos que importam, embora não alterem a essência. O historiador Federico Finchelstein, estudioso do fascismo e do nazismo, aponta um aspecto comum que ultrapassa os candidatos. “A Argentina está cada vez mais parecida com os Estados Unidos e com o Brasil, no sentido de que não querem mais saber da história”, diz Finchelstein, que dá aulas na New School for Social Research, em Nova York, onde dirige um programa de estudos latino-americanos. Ele dá um exemplo: “Milei não compra diretamente um confronto na área dos direitos humanos, mas, para ganhar o eleitor que refuta esse tópico, ele entrega o assunto para outras pessoas ao seu lado, como Victoria Villarruel, a candidata a vice-presidente.”
Finchelstein chama a atenção para o discurso linha-dura com relação à segurança pública, outro traço comum entre Bolsonaro e Milei. “O tema da segurança vem ganhando especial atenção entre os argentinos, algo que não era tão comum no passado”, disse ele, em conversa com a piauí. Essa preocupação se reflete no modo como os principais meios de comunicação argentinos vêm noticiando o aumento da criminalidade, em tom alarmista e algo sensacionalista. Nas manifestações de rua é possível até mesmo ver cartazes que pedem “Bukele para presidente da Argentina”. Nayib Bukele, presidente de El Salvador, um direitista feroz, vem encantando os extremistas de direita da América Latina com uma política de segurança brutal, mas que vem mostrando certa eficácia contra o crime organizado.
A questão central é saber que rumo a Argentina tomará. Matías Kulfas, ex-ministro do Desenvolvimento Produtivo do governo de Alberto Fernández que acaba de lançar o livro Un Peronismo para el Siglo xxi, aposta que seu país conseguirá se blindar da extrema direita. “Há um fenômeno de novidade em Milei, que se conecta com outros países, mas creio que nosso sistema político vai oferecer uma alternativa que evite isso”, disse ele à piauí, referindo-se a um triunfo da ultradireita e suas provocações.
O “isso” apareceu na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, no momento em que Milei terminava sua barulhenta apresentação do livro El Fin de la Inflación. Por um corredor vizinho do evento, passava o ex-presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, político de esquerda que fora autografar seu livro Semillas al Viento (Sementes ao vento). Ao vê-lo, os seguidores de Milei começaram a hostilizá-lo. Um rapaz não se conteve e gritou: “Velho sujo!” Mujica, de 88 anos, seguiu em frente, sem dar a mínima para quem o insultava, enquanto outro berrou: “Comunista asqueroso”. Eis o pântano.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_202 com o título “El provocador”.
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